segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Notícias da África


Notícias da África
José Bonifácio ouvia e anotava informações sobre geografia e cultura africanas que lhe eram transmitidas por escravos
Alberto da Costa e Silva

Numa carta de 30 de novembro de 1826, José Bonifácio de Andrada e Silva dava, de Talance, a Antônio de Menezes Vasconcellos de Drummond (1794-1865), em Paris, instruções sobre a publicação de uma “Notícia do interior da África e curso do Níger”: que fosse entregue ao Journal Géographique ou aos anais de viagens de Malte-Brun e Eyriès. Quatro meses depois voltaria ao assunto, dando ao amigo poder para reduzir o artigo, como queriam as revistas. O texto de José Bonifácio nunca foi publicado ou está esquecido nas páginas de alguma revista francesa. Tampouco se sabe onde repousa o original manuscrito. Conhecemos, contudo, parte do seu conteúdo, porque Menezes de Drummond – era assim que assinava – publicou em dezembro de 1826, no Journal des voyages, découvertes et navigations modernes, um longo trabalho em francês intitulado “Cartas sobre a África antiga e moderna”, no qual se refere a Andrada e aos comentários que este estava escrevendo sobre o périplo de Hanon (cartaginês que teria, no século V a.C., navegado ao redor do continente africano).

Drummond afirma dever a José Bonifácio noções preciosas sobre o curso do Rio Níger, obtidas em 1819, durante conversas com seis escravos hauçás. O Andrada tomara a iniciativa desses diálogos porque, tendo muito meditado sobre o assunto, estava convencido de que o Níger (nome que os europeus deram ao curso superior do rio, a única parte que precariamente conheciam) não ia desaguar num grande lago em Uângara (que não se sabe onde ficava, se é que ficava em algum lugar), onde os calores o fariam evaporar, nem formava um braço do Nilo, nem era o alto Zaire ou Congo  as hipóteses então mais sustentadas na Europa. Sua convicção se fortalecera com o que lhe dissera o escravo Francisco, que qualifica de homem inteligente, sábio e probo. Francisco, um ulemá, um letrado muçulmano que havia sido professor em seu país, lia e escrevia fluentemente o árabe, bem como o hauçá. E da língua hauçá ele faria para José Bonifácio um pequeno vocabulário, com 75 palavras, com o qual Drummond encerrou o artigo. Comparando-se esse vocabulário com um dicionário moderno de hauçá, não se notam mais do que ligeiros desvios. Um exemplo: pharsi, na transcrição de Bonifácio, seria farcè, e não se traduziria por “um dedo da mão”, mas por “unha”.

A maior parte do resumo de Drummond é formada pelas respostas que os escravos deram às perguntas de José Bonifácio. Nele mostra-se a curiosidade do brasileiro, seu respeito pelos interlocutores e o cuidado com que anotou o que lhe disseram. Os hauçás Mateus, José, Bernardo, Bento, Bonifácio e Francisco contaram ao Andrada como eram suas terras, de que montanhas e rios ficavam próximas, e o que sabiam sobre o Níger, para eles, o Gulby, que mais adiante se chamava Kwara.

Mateus, que fora aprisionado numa batalha pelos fukahis (fulanis ou fulas), disse ter nascido em Berni-Daurah, ou seja, no birni (cidade fortificada) de Daura, uma urbe de casas de barro com tetos planos. Suas muralhas tinham seis portas e continham seis mil habitantes. Kano e Zamfara ficavam próximas, e gastavam-se 35 dias a cavalo para ir de Daura à capital do reino de Bornu. Nessa cidade, era intenso o comércio, destacando-se o de uma seda especial, produzida por um inseto criado numa árvore chamada samiah. Não seria esse inseto aquela mesma aranha responsável pela seda que usavam os axantes nos seus panos do tipo kente?

Nem sempre conseguimos identificar os topônimos e etnônimos registrados por José Bonifácio, ou porque os ouviu mal, ou porque não correspondem aos anotados pelos viajantes ou hoje usados, ou ainda porque se referiam a aldeias que não ganharam lugar nos mapas. Não logramos, por exemplo, saber que grande cidade, com quatro portas e muralhas de tijolos, era a Tabaran onde nasceu o hauçá José. É provável que fosse Nupe o lugar, Nofeh, onde ele estava trocando sal e conchas por escravos e panos de algodão quando foi capturado, pois nufe é a palavra que os hauçás dão para nupe ou tapa. Dali José seguiu para o Iorubo, para Katango (ou Catunda, outro nome de Oió) e para o litoral. Disse conhecer o país de Zegzeghis (ou Zazau), cuja capital, Zaila (Zaira), ficava a três dias de marcha da sua terra natal.

Bernardo era natural do reino de Gobir, que descreve como uma cidade grande, amuralhada, com vários fortes e defendida por soldados de cavalaria e infantaria. Tinham por armas a espada e o arco e flecha, mas os que guardavam os fortes possuíam fuzis. Os cavaleiros empunhavam a azagaia ou a lança. Bernardo contou a José Bonifácio que fora feito cativo quando comerciava sal num lugar chamado Fugah, e dali conduzido a pé, durante quase meio ano, até um porto no Atlântico, Agaey (provavelmente Ágüe), onde o embarcaram para o Brasil.

Bonifácio nascera numa aldeia, Kabih, no reino de Zamfara. De sua capital, com o mesmo nome, disse que era grande e murada apenas num lado. Nela havia várias mesquitas, onde os imames explicavam o Alcorão. Os mouros traziam para Zamfara, entre outras mercadorias, o ouro de Tombuctu (na grande curva do Rio Níger). E o povo alimentava-se de arroz, milhetes, feijão, abóbora, carne de vaca, cabra, carneiro e elefante. Interrogado sobre o Níger, respondeu que na língua hauçá chamava-se Gulby, mas que, depois de percorrer o país de Zamfara e o lago de Kaduna, tomava o nome de Kwara, que era também o do país vizinho a Calabar (isto é, ao delta).

Interrogado sobre as partes da região que havia percorrido, respondeu que conhecia Katsina, Mali, Gana, Bornu, Daura e Kano, assim como Tombuctu, uma cidade onde os nobres e ricos passeavam a cavalo, vestidos de branco ou de um azul quase negro. Acrescentou que em Tombuctu trabalhavam carpinteiros, ferreiros, tecelões, alfaiates, ourives e vários outros tipos de artesãos. E que na área havia minas de ouro.

Bonifácio fora capturado pelos fulas de Bauchi, que o levaram para Tombuctu. De lá, desceu o Níger de piroga até Yerabah (o país dos iorubás, nome que os hauçás davam aos oiós e, naquela época, só aos oiós). Seguiu depois por terra até o forte de São Jorge da Mina, onde o venderam para o Brasil. A viagem inteira durou seis meses.

Bento não se abriu com José Bonifácio ou não tinha o que contar. Dele ficamos sabendo muito pouco: onde nasceu e que também fora capturado pelos nupes, levado em canoa Níger abaixo e passado por Borgu e pelo Iorubo antes de chegar ao mar.

Em compensação, com Francisco a conversa foi a de um sábio formado na Europa com outro sábio, educado na África. Francisco nascera em Toobah, uma cidadezinha do reino de Kano, com quatro mil habitantes. Ele informou a José Bonifácio que o Gulby, ou Joliba, era o mesmo rio que tomava o nome de Kwara e ia desaguar no oceano.

Antes de ser capturado e vendido, Francisco fizera parte de uma caravana de 160 camelos, que fora a Tombuctu comerciar cavalos, roupas e escravos. O primeiro reino por que passou, na rota de Kano a Tombuctu, foi Daura. Dirigiu-se depois para Chaschena
(que só pode ser Katsina), Zamfara e outras cidades e aldeias, antes de ter de atravessar, durante um mês, uma vasta planície desértica. Alojou-se em Tombuctu para vender suas mercadorias e adquirir roupas de seda, ouro, espadas e fuzis. Aprisionado na viagem de volta, foi conduzido para Sansany, sobre o Níger, e depois para Oió e Ico, onde foi comprado por um português, que o levou para Aguê e em seguida para o Brasil. O percurso da captura ao embarque durara três meses.

Na Hauçalândia  contou Francisco  havia minas de cobre e de ferro. Sua capital (a que cidade se referiria?) era muito grande, cercada de muralhas, nas quais se abriam sete portas. O palácio do rei era de taipa, com teto plano. Os soldados de infantaria estavam armados de arco e flecha e de espadas, e os cavaleiros, de azagaias. Ali se faziam tecidos de algodão que tingiam de negro, e existiam oficinas de carpinteiros, ourives, seleiros e outros artesãos. No campo, cultivavam-se trigo, milho, três espécies de milhetes, melancia, batata- doce, arroz, cebola, alho e aipim. Possuíam bois, camelos, cavalos, mulas e jumentos. Nos arredores havia elefantes, dos quais comiam a carne, hipopótamos, antílopes, porcos selvagens, leões, panteras e zebras. E na cidade havia várias mesquitas.

Francisco descreveu Tombuctu como uma cidade enorme, envolta por muralhas de pedra e barro e guarnecida de peças de artilharia. Seus soldados usavam mantos com capuz, ou seja, albornozes. Explicou que o rei tinha três mulheres e seus vassalos, outras tantas. Para lá acorriam mercadores de muitas nacionalidades, inclusive mouros, bem como numerosos ulemás, que não traziam nada para vender, mas esmolavam, explicavam os sonhos e prediziam o futuro.

De suas conversas com os seis escravos, José Bonifácio concluiu que Níger, Joliba, Gulbi e Kwara eram um só e único rio, que nascia nas montanhas do Futa Jalom e ia dar ao Atlântico naquele enorme delta conhecido dos portugueses desde o fim do Quatrocentos. Soube a verdade sem ir à África, aprendendo com aqueles que mais conheciam o grande rio: os hauçás, mestres do comércio a distância, que tinham no Níger o grande eixo de onde desciam até as florestas as múltiplas rotas de suas caravanas. A maioria deles jamais percorreu toda a extensão do rio. Mas era como se o tivesse feito, pois de seu curso sobravam as notícias, nas longas conversas nos mercados, quando hauçás contavam a outros hauçás as suas peripécias de viagens.

A atitude de José Bonifácio difere do modo de proceder daqueles exploradores que, no fim do século XVIII e início do XIX, se aventuraram a percorrer o Níger, com o objetivo de lhe descobrir o curso e a foz. Mungo Park (1771-1806), por exemplo, jamais indagou a seus companheiros africanos onde desaguava o rio. Se o fez, não anotou a resposta, talvez por dela desconfiar, vinda de quem considerava bárbaro. Drummond destaca uma exceção: o explorador Giovanni Battista Belzoni (1778-1823), que acreditou nas informações que lhe foram dadas por africanos de que o Níger que passava por Tombuctu era o mesmo rio que desaguava num grande delta no golfo do Benim. Belzoni pensava em fazer o percurso contra corrente, delta acima. Morreu em 1823, em Gwato, Hugató ou Ughoton. Seria somente em 1830 que os irmãos Richard e John Lander, ao descerem o rio desde Bussa até o início do delta, confirmariam o que José Bonifácio, por volta de 1819, tinha por certo.

Alberto da Costa e Silva é membro da Academia Brasileira de Letras e autor de Um rio chamado Atlântico (Nova Fronteira, 2003).

Revista de História da Biblioteca Nacional

Nenhum comentário:

Postar um comentário