segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

No tempo da palmatória


No tempo da palmatória
As práticas pedagógicas nas escolas públicas do Império incluíam castigos físicos e até uma “prisão-solitária” para encarcerar os alunos faltosos
Alessandra Frota Martinez de Schueler

Em Conto de escola, publicado em 1896, Machado de Assis narra as peripécias de um menino em sua conflitante relação com a escola primária, cuja freqüência era constantemente burlada por “gazeteiros” como ele, em favor dos atrativos da infância: brincadeiras de rua e passeios sem rumo pela cidade do Rio de Janeiro. “A escola era na rua do Costa, um sobradinho de grade de pau”, escreve ele. “O ano era de 1840. Naquele dia – uma segunda-feira do mês de maio –, deixei-me estar alguns instantes na rua da Princesa a ver onde iria brincar de manhã. Hesitava entre o morro de São Diogo e o Campo de Santana (...). Morro ou campo? Tal era o problema. De repente, disse comigo, melhor era a escola. E guiei para a escola. (...)”.


O pequeno personagem subiu “a escada com cautela, para não ser ouvido pelo mestre”, e teve a sorte de chegar minutos antes de o professor entrar na sala de aula, livrando-se assim, com um suspiro de alívio, dos castigos reservados aos infratores. A narrativa nos remete ao tempo em que as escolas primárias, separadas conforme o sexo dos alunos, funcionavam geralmente no âmbito dos espaços domésticos, nas próprias residências dos mestres. Eram denominadas “casas de escola” e conhecidas pelos nomes dos professores e professoras que as administravam. A memória coletiva nos traz imagens de professores severos e prestigiados, envergando casaca preta, chapéu e bengala, e sempre municiados com a “santa luzia” – ou seja, a palmatória –, instrumento dos mais persuasivos para que seus discípulos aprendessem rápido, “de cor e salteado”, o bê-á-bá e a tabuada. Mas, segundo documentos antigos, aqueles “mestres-escolas” não pareciam gozar do status social que hoje lhes atribuímos.


Cartas e ofícios dirigidos pelos professores primários às autoridades administrativas do ensino ao longo do século XIX estão cheios de reclamações relacionadas à precariedade dos espaços físicos e das condições materiais de que dispunham para ensinar. Falta de higiene, insalubridade, escassez de livros, mobiliário, quadros, tinteiros e outros recursos pedagógicos são algumas de suas queixas. O professor José Joaquim Pereira de Azurara, em ofício de 15 de maio de 1872, reclamava do estado de sua casa de escola: “Causa lástima, Exmo Sr., enoja, permita-me a expressão, o modo por que se montou, o estado em que se acham os móveis e utensílios das escolas públicas do município da Corte, especialmente as da cidade, que deveriam ser escolas modelos!” Ele seguia dizendo que todo povoado brasileiro devia merecer uma escola, mas não “uma pocilga”, e enumerava tudo o que faltava no seu estabelecimento: “cadeiras, móveis, armários, cruz de mármore, retrato de Sua Majestade, o Imperador Pedro II, tribunas portáteis, tinteiros, gavetas, cabides, tábuas de cálculos, uma prisão-solitária, livros de matrícula e termos de exame”.

Comparar uma escola a um pardieiro contrastava, de fato, com o ideal tão sonhado de instituições-modelo de ensino para uma Corte imperial. Note-se que a lista de reivindicações de Azurara inclui uma “prisão-solitária”. O que vem a ser isso? Era justamente, como o nome diz, um móvel especial reservado ao encarceramento dos alunos que infringiam as regras escolares. Vamos encontrar a mesma referência em outro ofício, este de um professor chamado José Moreira. Ele diz que “a escola a meu cargo compõe-se de uma sala e um quartinho. Neste quartinho estão mal acomodados alguns cabides provisórios e duas bacias para os meninos urinarem; para outras necessidades corporais, atravessam o interior da casa e vão ao terraço onde tem uma latrina”.


Mais bem aquinhoado do que Azurara, o professor José Moreira já dispunha de sua “solitária”, conforme nos relata: “Existe mais um móvel que recebi com o nome de solitária, e que dizem servir para a prisão dos alunos; a meu ver, ela é mais própria para se dar suadouros, pois que o primeiro e único menino que nela encerrei ficou no fim de cinco minutos inteiramente molhado.” José Moreira, ao que parece, não tinha nada contra encarcerar alunos. Ele só quis dizer, certamente, que as características do móvel não combinavam com o calor que fazia na Corte. Assim, para preencher as carências do seu estabelecimento, preferiu utilizar o espaço da solitária como arquivo escolar.


Assim como a narrativa machadiana sobre a escola primária, as cartas e os ofícios desses professores primários nos revelam alguns indícios sobre possíveis práticas pedagógicas e experiências docentes nas escolas oitocentistas, cujas imagens de sujeira e insalubridade, precariedade dos espaços e de mobiliário, contrastavam com as tentativas do poder público de construir nos trópicos uma nação moderna e civilizada. Ainda quanto aos objetos materiais das escolas primárias, o Regulamento de 1854 determinava que deveria haver na porta de entrada das casas de escola uma tabuleta com as Armas Imperiais, na qual se indicavam o sexo ao qual o estabelecimento se destinava e o nome da freguesia (distrito ou localidade) a que pertencia sua jurisdição.


Imagens do Cristo crucificado, simbolizando a vinculação do Estado ao catolicismo, o retrato de Sua Majestade, o imperador Pedro II, representando a autoridade paternal do Estado monárquico, além de um relógio, um armário, uma mesa com estrado, uma cadeira de braços para o professor, cadeiras para as visitas, bancos inteiros e mesas com tinteiros fixos para os alunos, uma ampulheta, um mapa do Brasil e um da Província do Rio de Janeiro, um quadro preto de madeira, esponjas e giz, um quadro do sistema de pesos e medidas e de valores das moedas do Império, quadros de leitura, ardósias, papel, compêndios para as crianças pobres, cabides para os chapéus, réguas, talhas e vasilhas para água. Estes deveriam ser os objetos e utensílios básicos para guarnecer uma escola pública primária.


Por meio das cartas e dos ofícios dos professores primários, é possível perceber a heterogeneidade das condições materiais das escolas, a precariedade dos espaços físicos e das condições de trabalho docente. No final da década de 1880, das 94 instituições escolares de ensino primário em funcionamento, apenas 13 estavam instaladas nos sete prédios públicos então construídos para o fim específico da instrução. Esses prédios, com capacidade para abrigar de 400 a 600 crianças de ambos os sexos, eram chamados pelos críticos de “palácios escolares”. Foram construídos nas principais praças da cidade, sobretudo nas áreas urbanas centrais, e eram: o da Rua da Harmonia, na Freguesia de Santa Rita; o da Praça da Aclamação, em Santana; o da Praça Duque de Caxias, na Glória; o da Rua Boa Vista, na Gávea; o da Praça de São Francisco Xavier, no Engenho Velho; o da Praça de Pedro I, em São Cristóvão, e o da Praça de Pedro II, no Engenho Novo.

A maioria das escolas primárias – 81 no total – continuou funcionando nas tradicionais casas de escola, cujo aluguel era descontado do salário do professor. Nestas se confundiam o espaço público e o privado; as funções domésticas e o ofício do educador. Pelo Regimento Interno das Escolas Primárias da Corte, de 1855, as escolas deveriam funcionar diariamente, pela manhã e à tarde. Aos sábados, as lições aprendidas durante a semana deveriam ser recordadas, reservando-se esses dias para a distribuição de prêmios e recompensas aos alunos que se distinguiam nas lições, assim como as repreensões e os castigos àqueles que apresentassem rendimento insuficiente ou mau comportamento.


As normas estabeleciam ainda os meios disciplinares que poderiam ser utilizados pelos professores para reprimir e repreender os alunos faltosos. Entre eles, os castigos públicos, que expunham os alunos ao vexame e à vergonha, e por fim a expulsão, sendo esta restrita aos “incorrigíveis que possam prejudicar os outros por seu exemplo ou influência”. Embora a lei não se referisse expressamente ao uso da palmatória, documentos da época indicam o uso disseminado de castigos corporais dentro das escolas.


Havia diferenças nos programas destinados às escolas de meninos e meninas. O currículo relativo às aulas femininas estabelecia limites ao ensino de álgebra, geometria, gramática, história e geografia pátrias: para as meninas, a doutrina cristã, a leitura, a escrita e o cálculo elementar eram ensinamentos suficientes, acrescidos de aulas de agulha, bordados e costura. A formação das mulheres visando reproduzir as relações hierárquicas entre os sexos, privilegiando para as mulheres as atividades domésticas, era o ideal da instrução primária, a despeito da diversidade de experiências e das vivências femininas, já que muitas mulheres eram atuantes em atividades e espaços públicos, como, por exemplo, a variada gama de trabalhadoras urbanas, incluindo as preceptoras e professoras.

As normas determinadas pelo governo imperial não se limitavam à supervisão e fiscalização das escolas. O controle se estendia ao cotidiano dos alunos e às atividades educativas, com o estabelecimento de diferentes programas de ensino, métodos pedagógicos e meios disciplinares. Pretendia-se suprimir antigas práticas, como, por exemplo, o uso indiscriminado dos castigos corporais, recriando relações sociais e pedagógicas, construindo aos poucos uma nova escola primária.


Muita coisa mudou desde então no ensino público brasileiro, menos uma: a distância entre os modelos educativos almejados e consagrados nas leis e as experiências concretas da aprendizagem que preparam meninos e meninas para o exercício pleno da cidadania.

ALESSANDRA FROTA MARTINEZ DE SCHUELER É PROFESSORA DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO E AUTORA DA TESE “FORMA E CULTURAS ESCOLARES NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO: REPRESENTAÇÕES, EXPERIÊNCIAS E PROFISSIONALIZAÇÃO DOCENTE EM ESCOLAS PÚBLICAS PRIMÁRIAS” (UFF, 2002).

Revista de História da Biblioteca Nacional

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