sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

LIÇÕES DA HISTÓRIA


LIÇÕES DA HISTÓRIA

A II Guerra não somente abalou a geopolítica internacional como a própria mentalidade das pessoas. Mas os atuais representantes de seus vencedores parecem ter esquecido suas lições
Há sessenta anos, no dia 8 de maio de 1945, a II Guerra Mundial chegava ao fim na Europa, com o colapso do III Reich alemão. Ainda prosseguiria na Ásia até o dia 2 de setembro, quando, aturdidos pelas primeiras bombas atômicas, os representantes do Japão assinaram a rendição de seu país no convés do encouraçado norte-americano Missouri.

Seria necessário ainda voltar a falar desse conflito, num momento em que, tal como um grande coral, os meios de comunicação nos impõem, por ocasião das múltiplas cerimônias de comemoração – o desembarque na Normandia, a libertação de Paris, dos campos de concentração de Auschwitz e, em seguida, de Buchenwald, a queda de Berlim –, uma superabundância de imagens e comentários intermináveis sobre os principais episódios da guerra? A resposta é sim. Por um motivo muito simples: a própria pompa das comemorações enterra e abafa o sentido do acontecimento. O paradoxo é o seguinte: os meios de comunicação lembram... para melhor fazerem esquecer.

O historiador Eric Hobsbawm advertiu: “Atualmente”, afirmou, “a história é revisada mais do que nunca, e até inventada por pessoas que não desejam conhecer o verdadeiro passado, mas apenas um passado que esteja conforme a seus interesses. Nossa época é a da grande mitologia histórica.”


Distorção da História

À medida que o tempo nos afasta dos fatos, desaparecem as testemunhas diretas; e as lições, aprendidas no calor da hora, vão perdendo a nitidez e se misturando. E os grandes meios de comunicação – que não possuem o rigor dos historiadores – reconstroem, de acordo com os modismos, um passado muitas vezes determinado, corrigido, retificado... pelo presente. Um passado expurgado, depurado, lavado de tudo o que não seja conforme com as normas dos dias de hoje. Em relação a isso – outro paradoxo – são poucas as diferenças entre essa nova “história oficial” e a censura exercida pelo Estado em países não-democráticos. Em ambos os casos, é um passado revisado que é repassado às novas gerações. E é contra tal distorção da história que devemos nos insurgir.

A II Guerra Mundial foi o momento crucial do século XX. Um dos acontecimentos mais violentos e mais marcantes da história da humanidade. Em primeiro lugar devido às suas proporções, de uma amplitude jamais igualada. Com a propagação e a progressiva intensificação do conflito, o campo de batalha se espalhou por todo o planeta, envolvendo todos os continentes, com exceção da Antártida. Em 1945, praticamente todos os países independentes estavam envolvidos na guerra. As grandes potências imperiais arrastaram para a guerra, voluntariamente ou pela força, suas colônias da África e da Ásia. E todos os países da América Latina aderiram à causa dos aliados3 – o Brasil chegou a constituir uma força expedicionária que lutou na Itália. No momento em que ruiu o Reich de Hitler, somente nove países do mundo (o Afeganistão, a Dinamarca, a Espanha, a Irlanda, a Mongólia, o Nepal, Portugal, a Suécia e a Suíça) permaneciam oficialmente neutros.

O número de soldados mobilizados superou tudo o que jamais se conhecera. Enquanto, na Ásia, os japoneses travavam uma guerra sem fim para se tornarem senhores da China, a Alemanha mobilizou, em 1939, 3 milhões de soldados de seu exército (a Wehrmacht) para ocupar a Polônia. Pouco depois, mobilizaria 6 milhões de homens para desfechar uma “guerra preventiva” contra a União Soviética, a qual, por sua vez, teve que a enfrentar convocando mais de 11,5 milhões de homens... E quando os Estados Unidos entraram na guerra – após também terem sido vítimas de um “ataque preventivo” dos japoneses a Pearl Harbour no dia 7 de dezembro de 1941 – mobilizaram 12 milhões de soldados...


Guerra total

Essa guerra planetária foi também uma “guerra total”, que se caracterizou pela expansão da “zona mortífera” para muito além do campo de batalha propriamente dito. As populações civis de toda a Europa, da Rússia ocidental e da Ásia oriental foram vítimas de operações militares, bem como da proximidade das diversas frentes de luta – batidas, repressão e bombardeios sistemáticos. Sem falar da perseguição e dos massacres – por motivos ideológicos ou devido a políticas raciais – de que foram vítimas milhões de civis (principalmente os judeus europeus, os ciganos, os chineses e os coreanos) por parte dos países do Eixo, especificamente na Europa oriental e na China.

O custo em vidas humanas foi o mais alto da história. Calcula-se o número total de mortos em 50 milhões. Na Europa morreu mais gente do que na Ásia – e muito mais na Europa oriental do que na ocidental. Somente o exército soviético – o Exército Vermelho – perdeu cerca de 14 milhões de homens: 11 milhões nos campos de batalha (dois milhões dos quais nas frentes do Extremo-Oriente) e três milhões em campos de prisioneiros alemães. Algumas das principais batalhas, como a de Stalingrado (de setembro de 1942 a fevereiro de 1943), o desembarque na Normandia (junho de 1944) ou a tomada de Berlim (20 de abril-8 de maio de 1945), revelaram-se mais mortíferas do que os piores embates durante a I Guerra Mundial.

Entre os aliados, o total de mortos em combate foi de 300 mil norte-americanos, 250 mil ingleses e 200 mil franceses. O Japão perdeu 1,5 milhão de soldados. Mas uma das principais causas da perda de vidas humanas foi o combate, na frente oriental européia, entre a Wehrmacht e o Exército Vermelho e que terminou com a morte de mais de 11 milhões de soldados de ambos os lados e mais de 25 milhões de feridos...


Mais civis mortos

Pela primeira vez numa guerra, o número de civis foi muito superior ao de militares mortos em combate. Além do que os civis foram, muitas vezes, vítimas de atrocidades cometidas para aterrorizar o adversário. Na Ásia, por exemplo, o Japão – que invadira o Norte da China e ocupava Pequim desde 1937 – lançou seu exército sobre Nanquim, onde funcionava, na época, a sede do governo chinês, que decidiu resistir. Após a tomada de Nanquim, o exército japonês cometeu um verdadeiro massacre. Os mais de 200 mil chineses que ainda se encontravam na cidade foram todos executados em condições atrozes. As mulheres foram brutalmente violentadas, homens e crianças foram enterrados vivos, ou torturados, segundo orientações precisas. A cidade foi saqueada e, em seguida, queimada de ponta a ponta.

O príncipe Asakasa, principal responsável por essa carnificina, jamais foi denunciado após o fim da guerra. Até hoje, alguns livros escolares japoneses minimizam esse crime. O que, com razão, enfurece chineses e coreanos, como se pôde ver no mês de abril, em Pequim, por ocasião das grandes manifestações anti-japonesas. Ao contrário da Alemanha, o Japão nunca reconheceu de maneira convincente seus abomináveis crimes de guerra contra civis chineses e coreanos.
Dimensão apocalíptica
A fome dizimava populações sitiadas por toda parte. Em Leningrado (atual São Petersburgo), por exemplo, mais de 500 mil civis morreram de inanição entre novembro de 1941 e janeiro de 1944. Também ocorreram saques maciços das cidades. As tropas beligerantes deixaram de lado quaisquer escrúpulos em relação às grandes cidades indefesas. A começar pelas forças de Hitler, as quais, de 10 de setembro de 1940 até 15 de maio de 1941, multiplicaram os raids aéreos contra as cidades inglesas (entre as quais, Coventry), matando mais de 50 mil civis. Assim como muitas outras cidades, Varsóvia foi destruída de ponta a ponta, de novembro a dezembro de 1944, pelas tropas alemãs que batiam em retirada. Os aliados retrucaram, no dia 13 de fevereiro de 1945, com a destruição de Dresden, provocando dezenas de milhares de vítimas civis e inúmeros refugiados. Mais tarde, nos dias 8 e 11 de agosto de 1945, as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki foram riscadas do mapa com as primeiras bombas atômicas da história.

Também houve os êxodos e marchas forçadas que fizeram incontáveis vítimas entre os prisioneiros de guerra, os deportados e as populações refugiadas; somente no ano de 1945, por exemplo, mais de 2 milhões de alemães morreram quando fugiam a pé, em direção ao ocidente, diante do avanço das tropas soviéticas. E, acima de tudo, houve o crime dos crimes: o extermínio sistemático, pelos nazistas, motivado pelo ódio anti-semita, de seis dos doze milhões de judeus europeus.

Por suas dimensões apocalípticas e pelos furacões de violência, crueldade e morte que espalhou pelo mundo, a II Guerra Mundial não somente abalou a geopolítica internacional como a própria mentalidade das pessoas. Para as gerações que viveram aquela guerra e sobreviveram à sua violência, nada jamais poderia ser como antes. Durante o conflito, o homem mergulhara numa espécie de abismo do mal, chegando, de certa maneira, a se desumanizar. Especialmente em Auschwitz. E, uma vez terminada a guerra, era necessário buscar uma regeneração, uma reconstrução do espírito humano. Uma re-humanização do homem.
Traidores dos ideais de 1945
Tal como o conhecemos nos dias de hoje, o mundo continua, em grande parte, moldado pelo traumatismo causado por essa guerra. Algumas lições foram tiradas, principalmente as seguintes. Em primeiro lugar, que deve ser evitado a qualquer custo um conflito do mesmo tipo. Essa certeza levou a comunidade internacional a criar, em 1945, um instrumento inédito: a Organização das Nações Unidas (ONU), cujo principal objetivo continua sendo o de impedir as guerras. Em segundo lugar, que as teorias fascista e nacional-socialista, assim como o militarismo imperial japonês, continuam sendo culpados por terem lançado o mundo ao abismo de uma guerra tão abominável. Que os regimes políticos que se baseiam no anti-semitismo, no ódio racial e na discriminação constituem perigos não somente para seus próprios povos, mas para toda a humanidade. Foi por isto, aliás – e de forma muito natural –, que à II Guerra Mundial seguiu-se o nascimento do Estado de Israel e o grande despertar dos povos colonizados da África e da Ásia.

Mas os próprios vencedores parecem ter esquecido as lições daquela guerra. A Rússia do presidente Vladimir Putin, por exemplo, se desonra de forma ignominiosa com sua repressão cega e abuso de força na Tchetchênia. E, nos Estados Unidos, o governo do presidente George W. Bush serve-se dos odiosos atentados de 11 de setembro como pretexto para questionar o Estado de Direito. Washington restabeleceu o princípio da “guerra preventiva” para invadir o Iraque, criou “campos de detenção” para prisioneiros privados de quaisquer direitos e tolera a prática da tortura.

Essas gravíssimas infrações não impediram, de forma alguma, que Putin e Bush ocupassem o lugar central das cerimônias que celebrarão a derrota do III Reich, no dia 8 e maio. Poucos serão os meios de comunicação que ousarão lembrar-lhes que eles usurpam aquele lugar por terem traído os grandes ideais da vitória de 1945.

Ignacio Ramonet

Le Monde Diplomatique

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