quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Sérgio Buarque de Holanda, o boêmio erudito


Sérgio Buarque de Holanda, o boêmio erudito
O bem-humorado historiador que revolucionou o pensamento brasileiro nos anos 30 com o livro Raízes do Brasil, no fim da vida, em 1982, se definia apenas como "o pai do Chico".
por Cadu Ladeira, com Marcelo Affini
Faz pouco mais de dez anos que Sérgio Buarque de Holanda morreu. Diz a lenda que, quando seus olhos não estavam grudados num livro, eles tinham na mira um bom copo. Parece que o rapaz era travesso. Gostava da noite, de música e, de vez em quando, até brigava por mulher. É pouco provável, no entanto, que o corpulento Sérgio, um erudito que fez folclore com seu monóculo nos meios intelectuais Rio de Janeiro na década de 20, tivesse premeditado tanto, nos idos de 1936, para a sua primeira aventura no mundo dos livros. Mas aconteceu. Raízes do Brasil, uma surpreendente e penetrante reflexão sobre a identidade e as origens deste país e de seu povo, saiu do prelo com lugar cativo na prateleira dos clássicos brasileiros.

Um pequeno ensaio. Na medida exata,. porém, para formar com Casa-grande e senzala, a obra-prima de Gilberto Freyre, lançada em 1933, e Formação do Brasil contemporâneo, publicada mais tarde, em 1942, por Caio Prado Júnior, o trio que revolucionou o pensamento brasileiro durante os agitados anos do Primeiro Período Varguista (1930-1945). Com seus livros, o antropólogo e sociólogo Freyre e os historiadores Buarque de Holanda e Prado Júnior marcaram o nascimento da moderna Ciência Social no Brasil. De lá para cá, suas obras foram revistas, criticadas e até abandonadas durante um certo período. Mas guardaram o mérito típico daquilo que é escrito para ficar: nunca perderam o caráter inovador. "Antes de Sérgio, a história era efeito da atuação de uma elite ou de um grande estadista-herói", lembra Nicolau Sevcenko, 38 anos, professor de História da Cultura na Universidade de São Paulo. "Ele reconstituiu nossa história sem elitismos", completa o velho amigo e historiador Francisco Iglésias, 70 anos, hoje docente da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais.

Não perderam também a atualidade, capaz de reunir em consenso tantas gerações de historiadores. "Depois que surgiu a chamada história das mentalidades, as pessoas redescobriram a importância dos hábitos, das idéias e da cultura para o estudo do passado e revalorizaram o trabalho de Sérgio. Ele ia falava disso há quarenta anos". conta a professora de História do Brasil Colonial, da USP, llana Blaj, 40 anos. O tempo passou, mas Sérgio continua em muitas cabeceiras. Chico Buarque de Holanda, o mais famoso dos sete filhos de Sérgio, está relendo agora a obra Visão do paraíso, escrita pelo pai em 1957 e publicada dois anos depois. "Descobri o Sérgio intelectual depois que ele morreu. Antes, para mim era mais o pai, que aprendeu a gostar de bossa nova comigo.”

Os amigos gostavam de dizer que Sérgio era o historiador mais erudito do país, embora às vezes isso parecesse obra dos céus. Boêmio inveterado e incurável fumante, certa vez o poeta e companheiro Manuel Bandeira tentou explicar como tanta cultura convivia com a mesa dos cafés: "Há uns poucos, muito poucos escritores nossos, cuja formação nos parece um milagre”. A mania de tomar remédios, essa ninguém explicava. Nem as superstições de quem jamais vestia marrom, vivia contando os cigarros para que nunca ficassem treze no maço, mas carregava suas esquisitices com extremo bom humor. "Sérgio era um homem engenhoso, divertido e cheio de irreverência", lembra o escritor Antônio Cândido, 74 anos, o melhor e mais presente dos amigos do historiador."Ele aliava, como poucos, o refinamento no estilo literário e a excepcional erudição com um enorme prazer de viver. Mas, intelectualmente, era demolidor. Queria entender a formação da sociedade e do caráter brasileiros, o significado de conceitos como cidadania numa nação marcada pelo escravismo e o colonialismo", diz Maria Odila Leite da Silva Dias, 48 anos, professora titular de História do Brasil na USP: ainda hoje, ela trabalha na universidade na mesma sala, na mesma cadeira e na mesma mesa de seu amigo, orientador e patrono Sérgio Buarque de Holanda.

Apesar de todos os feitos, como historiador Sérgio veio ao mundo tardiamente. Até 1936, ano da publicação de Raízes, ele simplesmente não existia. Havia o jornalista e critico literário. Um garoto nascido no bairro da Liberdade, em 1902, que aos 19 anos se viu obrigado a deixar São Paulo e amigos como Oswald de Andrade, para mudar com a família para o Rio, onde chegou já trazendo uma idéia fixa escrever, sua paixão da época e de sempre. Daí a se tornar correspondente da revista modernista Klaxon no Rio, por indicação de Oswald e Mário de Andrade, não demoraria muito. Virou também estudante de Direito da Universidade do Brasil — desta vez por indicação de seu pai, o professor de Farmácia pernambucano Cristóvão Buarque de Holanda —, o único curso superior de sua vida, do qual aproveitou mais a companhia de gente como o jurista Afonso Arinos de Melo Franco, Prudente de Morais, neto, o compositor Ari Barroso e o cantor Mário Reis do que propriamente o diploma.

Era na imprensa que a verve de Sérgio falava alto em saborosas polêmicas. Tanto encostou Tristão de Athayde na parede por suas tendências religiosas, que acabou provocando o clássico artigo Adeus à disponibilidade, em que Tristão, o maior expoente do pensamento católico brasileiro contemporâneo, assumiu definitivamente sua profissão de fé. Outras vezes, exagerou, como no famoso artigo O lado oposto e os outros lados, de 1926, que desancava personalidades do porte de Guilherme de Almeida, Tristão, Ronald de Carvalho e até Graça Aranha, seu amigo e patrono da Semana de Arte Moderna, acusados de representantes do espírito acadêmico infiltrados no modernismo.

O artigo caiu como uma bomba no Rio. Sérgio acabou desempregado e tomou o rumo do exílio voluntário em Cachoeiro do Itapemirim, no Espírito Santo. Foi dirigir o jornal O Progresso, mas não demoraria muito para se desentender com os políticos locais. Resultado: da experiência ficou apenas o apelido de Dr. Progresso e logo o bom filho estava de volta a casa. "Nunca me esqueci de sua figura certo dia em pleno Largo da Carioca, com um livro debaixo do braço, e no olho direito o monóculo que o obrigava a um ar de seriedade. Naquele tempo não fazia senão ler. ...Tanta eterna leitura me fazia recear que Sérgio soçobrasse num cerebralismo... ...Sérgio não soçobrou: curou-se do cerebralismo caindo na farra ... ...Benditos os porres de Cachoeiro do Itapemerim! Eles nos valeram a devolução, em perfeito estado, de Sérgio enfim descerebralizado", lembraria depois Manuel Bandeira no artigo Sérgio, o unticafajeste, de 1952, no Diário Carioca.

Sérgio retomou o trabalho na imprensa carioca, até que, em 1929, Assis Chateaubriand o convidou para ser correspondente de O Jornal em Berlim, onde ficou de l930 a l931. O tempo necessário para que sorvesse as obras dos historiadores Leopold von Ranke (1795-1886) e Werner Sombart (1863-1941), do filósofo Wilhem Dilthey (1833-1911), do sociólogo Max Weber (1864-1920) e outros. "Mas se existe uma influência marcante alemã em Sérgio, ela está no historismo. Conceitos e cultura, para ele, só podiam ser entendidos dentro de um contexto histórico, e talvez venha daí a grande originalidade e criatividade de sua obra”, diz a professora Maria Odila Leite.

De volta ao Brasil, ele ainda tinha muito do impetuoso polemista. Mas sua mente já estava em outras paragens: no projeto de Raízes do Brasil, uma idéia que surgiu ainda no Velho Mundo. O brasileiro que vivia numa Europa à beira do domínio fascista e da guerra, queria entender a personalidade de um Brasil latino e católico, com um pé na vida rural. Recriou a teoria do homem cordial, quinto capitulo da obra, sua maior dor-de-cabeça intelectual: denunciar a docilidade e as relações pessoais paternalistas dos conterrâneos como a explicação para a incapacidade de se integrar à modernidade anglo-saxônica rendeu a Sérgio ataques de todos os lados.

"Ele teve a incrível capacidade de inserir nossa história no contexto internacional não como narrativa, mas um encadeamento de idéias", revela o sociólogo e ministro das Relações Exteriores Fernando Henrique Cardoso, 61 anos. Como Marc Bloch (1886-1944) e Lucien Febvre (1878-1956), fundadores da Escola dos Annales e pais da moderna historiografia francesa, Sérgio deu voz ao passado para explicar o presente e recuperou o que permanecia quase invisível. Abandonou as grandes personalidades para encontrar na História os anônimos que construíram a sociedade brasileira.

"Sérgio alternava a interpretação com a descrição detalhada dos fatos que ia buscar em pesquisas de arquivo", conta Maria Odila. Era capaz de produzir obras geniais e abrangentes como Raízes, Visão do paraíso ou o excepcional Da Monarquia à República — quinto volume da coleção História da civilização brasileira, dirigida por ele durante 10 anos — e ao mesmo tempo descer ao detalhismo de Monções, onde desvenda o homem por trás do mito do bandeirantismo e troca o louvor aos desbravadores pela preocupação com o tamanho das canoas usadas pelos paulistas para subir os rios no século XVII, o desconforto da viagem, a sensação de estar em meio a uma selva desconhecida. Ou de Caminhos e fronteiras, no qual reconstrói os primórdios da vida paulista na colônia através do amálgama das culturas indígena e portuguesa. De livro em livro, seus temas inovadores abriam os horizontes da historiografia brasileira.

O sacrifício do jornalista ao historia dor trouxe também outras mudanças para a vida de Sérgio. Em 1936, o boêmio com mais de 30 se casou com a carioca Maria Amélia, filha do desembargador Cesário Alvim, uma união que duraria até o fim de sua vida. Virou então o Sérgio patriarca, o pai de Miúcha, a cantora, Sérgio, Álvaro, Chico, o compositor e cantor, Maria do Carmo, Ana Maria e Maria Cristina. Ainda adorava um bom papo, mas farra agora só em casa. Desapareceu também o carioca Sérgio, que após 25 anos de Rio, em 1946 voltou a São Paulo para nunca mais sair. Na época, veio como diretor do Museu Paulista, substituindo Afonso de Taunay, seu professor nos tempos em que estudava no Colégio São Bento e que publicou o primeiro artigo de Sérgio na imprensa: Originalidade literária, de 1920.A noite e os livros, porém, continuaram sempre sendo paixões. Enquanto a fiel escudeira Maria Amélia administrava a filharada e cuidava das contas, a luz da janela da biblioteca na casa da Rua Buri, no bairro do Pacaembu, costumava varar a madrugada. Lá dentro, na bagunça dos 10 mil livros, da máquina de leitura de microfilmes e da mesinha com a garrafa de uísque, o colírio Moura Brasil, o Sonrisal, o Engov e o maço dos fortes cigarros franceses Gauloises, reinavam até 17 de abril de 1982 todos os Sérgios Buarque de Holanda. O jornalista polêmico, o historiador autodidata, o professor da USP de voz arrastada e chegado adivagações, o erudito que cantava tango em alemão e samba em latim, e o patriarca que se definia, no fim da vida, apenas como o "pai do Chico”. Mas, acima de tudo, o intelectual que produziu uma das mais belas e desafiadoras reflexões sobre as raízes de um pais que se chama Brasil.


Raízes do Brasil, 1936, Ed. José Olympio.Cobra de vidro, 1944, Ed. Perspectiva. Monções, 1945, Ed. Casa do Estudante/1976, Ed. Alfa-Ômega. Antologia de poetas brasileiros da fase colonial, 1952-1953, Ed. Perspectiva.Caminhos e fronteiras, 1957, Ed. José Olympio. Visão do paraíso, 1959, Ed. Cia. Nacional. História geral da civilização brasileira, 1960-1972, 7 volumes (organizador), Ed. Ditel. Tentativas de mitologia, 1979, Ed. Perspectiva.O extremo oeste, 1936, Ed. Brasiliense. Capítulos de literatura colonial, 1991, Ed. Brasiliense.

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