quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

RETRATO DA AMÉRICA QUANDO JOVEM* (parte 2)

RETRATO DA AMÉRICA QUANDO JOVEM*
Imagens e representações sobre o Novo Continente entre os séculos XVI e XVIII
Mary Lucy Murray Del Priore


Nesta perspectiva, observa-se também que desde o Renascimento uma nova convenção pictural somara-se à já tão utilizada iconografia das alegorias presente na cartografia. A América, como os outros continentes, surge personificada como urna mulher vestida de atributos e acompanhada de animais característicos do Novo Mundo. Assim, com variantes de detalhes que se revezam desde o século XVI, ela emerge num “décor” de árvores tropicais, paramentada com uma coroa, um cinto e um bracelete de penas. A seus pés jaz um tesouro, guardado por um jacaré, uma tartaruga, um tatu e papagaios. Suas armas são um arco, aljava e flechas. A noção de exotismo domina a representação da América como o índio no motivo do selvagem bárbaro, cruel, antropófago, ou o seu contrário, o homem em estado natural, o “bom selvagem” das Luzes. Este índio de convenção se prestará a inúmeras metamorfoses e será freqüentemente utilizado nas vinhetas ou cartouches dos mapas.
Observe-se que a descoberta da América trouxe, na sua esteira, a proliferação de um certo gênero literário: atlas, relações de viagens, cosmografias e mesmo coleções agrupando diferentes relatos de diversos viajantes nos quais emergia a experiência européia nas novas terras, mas também a visão própria da cultura ocidental na permanência de seu laço com o Novo Mundo e suas transformações. No interior desta literatura, tanto a gravura sobre madeira quanto aquela realizada em talho doce foi largamente utilizada para permitir uma maior riqueza de modelos ou de detalhes sobre os habitantes e os mores americanos. As duas diferentes técnicas não tinham senão o alvo de aprimorar o texto com imagens singulares deste vasto e aparentemente estranho mundo novo.
Antes que a América fosse descoberta, existia, contudo, um outro tipo de imagem e estampa de tema alegórico que representava as quatro estações, os quatro humores, as quatro virtudes cardeais etc. Esta forma de decoração de vinhetas era herdeira de tradições medievais. Santo Isidoro expusera o significado escondido dos números num tratado intitulado Liber Numerorum, e este tipo de especulação estendeuse a outros autores do período moderno. O número quatro era o dos evangelistas, dos elementos (água, ar, fogo, terra), dos quatro rios do Paraíso, dos quatro ventos, das quatro idades do homem, das quatro letras do nome de Adão.
Sete eram os dias da semana, os pecados mortais, as idades do mundo. Nos mapas modernos, esta tradição mantém-se incorporando também os quatro continentes. Willem Janszoon Blaeu, em seu Nova Totius Orbis Terrarum, utilizou vinhetas com os sete deuses gregos, as sete maravilhas, os quatro elementos e as quatro estações. Ortelius, no seu já mencionado Theatrum..., apresenta 70 mapas detalhados dos países dos quatro continentes, alérnde mapas sobre os quatro continentes e um mapa-múndi, todos alegoricamente decorados. Em 1668, Frederick de Wit recorreu às ilustrações de Rorneyrr de Hooghe para encheras vinhetas sobre os quatro elementos que adornariam um de seus mapas, e este artista, por sua vez, utiliza seminuas e arrendondadas figuras femininas que se espalham em campos de trigo, no céu entre anjos e pássaros, entre monstros, barcos e sereias no mar, e em meio ao fogo da guerra.
Os mapas publicados a partir do século XVI já trazem consigo a marca de um olhar característico sobre a América. Ainda presente em Pacheco Pereira ou Fontenau, o caldo do maravilhoso medieval confrontado com as realidades vai desaparecendo, e uma teoria humanista da pintura faz a sua transferência para a cartografia. Nela, o pressuposto fundamental é a imitação ideal da natureza humana em ação. A arte deveria exprimir uma verdade geral em detrimento do específico ou do local e, inspirada na literatura greco-romana, almejaria deleitar e instruir simultaneamente. Nesta linhagem é que, em 1630, Blau incorpora a seu Atlas a iconografia de povos que habitavam as terras americanas. Eram os Mexicani, os Rex e Regina Floridae, os Peruviani, os Brasiliani militates, entre outros. Seus corpos são desenhados com todas as características do classicismo humanista: a musculatura belamente torneada, os troncos escassamente vestidos, as fisionomias européias, os cocares, cintos e alguns mantos de penas, as crianças com ar angelical. No Theatre de la Guerre en Amerique telle qu'elle esta present possedée par les espagnols, Pierre Morder, em 1705, inclui cenas de mineração de ouro é índios vestidos com penas, apontando para os cofres cheios de moedas, barras de ouro e jóias, ofertando ao espectador-sonhador um retrato da rotina e da rota dos tesouros americanos. Ao fundo, um dado real: barcos ingleses e holandeses disparam tiros de canhão contra os espanhóis e franceses.

A visão de mundo passada através destas imagens e de outras tantas fundamenta-se num elogio ao presente e ao seu valor civilizacional. Por isso mesmo, os gravadores europeus permitem-se a tentativa de compatibilizar mundos diferentes. No mapa mais prolífico, editado no final do século XVII, Frederick de Wit mistura na América imagens naturalistas e tropicais:
caravanas, camelos e autoridades trajadas com turbantes orientais freqüentam a mesma cena que europeus enchapelados, portando cruzes e bandeiras, e negros africanos vestidos à americana. O jogo antropológico, como diria Luiz Felipe Barreto, faz-se no interior do espelho religioso, através do qual só se vê o Outro como o anticristão. O cristianismo é o denominador cultural europeu e, fora dele, só existem indícios do que possa anular o idílio anunciado pela Igreja ou pelos Estados conquistadores.
A iconografia nos mapas modernos coloca-se, assim, a serviço da legitimação moral de assuntos profanos, bem como dos dogmas cristãos. O não-cristão apresenta-se seminu para ser catequizado; o muçulmano, com cimitarra e turbante, devia ser convertido. Todo um conjunto de imagens extraídas do caleidoscópio eurocêntrico justificava a presença ocidental em terra americana. E tudo se justificava ao ser pintado na América. Até animais africanos, como antílopes e elefantes, aparecem nas cartas sobre a América. O fato é que uma leitura específica se fazia destas cartas. Uma leitura encorajada em nome da conveniência, da semelhança e, quando muito, da erudição.

A América e os americanos: “jóias maravilhosas feitas de astros e éter”?
Como já afirmamos, a alegoria passa a ser muito utilizada nos mapas modernos, pois ela permite recuperar uma enorme riqueza de detalhes, inserindo-se nesta matriz aquela da América. Pela presença de objetos emblemáticos (cachos de uvas, trigo, cornucópias), um tema tornava-se alegórico. O cristianismo, por exemplo, representava-se sob a forma de um castelo que devia ser defendido; armas, castelo-forte, navios figuravam em sua alegoria. Depois da descoberta do Novo Mundo, a Europa, identificada com o cristianismo, representava-se como o continente detentor de um formidável poder geopolítico em face da Ásia, da África e da América. A questão mais contundente a ser observada nas vinhetas alegóricas é a de como a cristandade ocidental se projetava e se representava nas suas relações com os outros continentes. Ou ainda, de como esta mesma cristandade apreendeu e representou o Outro por intermédio de alegorias.
Há três pontos que devem ser observados na cartografia para se ter uma idéia de como um discurso específico sobre a América e seus habitantes foi construído: a postura (de pé, sentada, deitada), a roupa (nudez, drapeado, saia, vestido) e os instrumentos (cetro, turíbulo, ramos, maça, cabeça decapitada). Todos estes elementos traduzem uma ordem hierárquica social, cultural e religiosa entre as distintas alegorias sobre os continentes.
Sempre apresentada de pé ou sentada, a Europa porta coroa, vestido longo, às vezes chapéu, coroa de flores ou capacete. Seus instrumentos são o cetro, a cornucópia da abundância, a esfera e a cruz, um touro e anuas.
A Ásia mostra-se de pé, com vestido, chapéu/turbante, trazendo nas mãos ramos de canela ou pimenta, turíbulo com especiarias, e acompanhada por um camelo.
Seminua, vestida com um drapeado ou uma saia, aparece a África. Ora porta um guarda-sol, ora um ramo, e está sempre secundada por crocodilos, elefantes ou leões. Sua posição é sentada ou deitada.

Quase sempre deitada, com a cabeça ornada de penas, trazendo sobre o corpo nu apenas um saiote e carregando um arco, flechas, uma maça, tendo aos pés um tatu ou um jacaré, apresenta-se a América.
A posição espacial que ocupa a imagem, valorizando ou não uma postura diferenciada, é denotativa da mensagem que se quer passar sobre o continente. Alongada ou deitada encontra-se a cultura considerada primitiva, ou seja, a América. De pé, as civilizadas Ásia e África; espiritualizada e reinante, símbolo da hegemonia geopolítica, a Europa.
A transformação de fibras vegetais, animais ou minerais denota, para cada alegoria, um estado de evolução técnica e uma organização social concretizada na vestimenta. Esta constitui-se num elemento emblemático distintivo de uma hegemonia cultural entre os povos representados. Em contraste com os vestidos luxuosos da Europa, ou sofisticados da Ásia, a América veste-se com plumas ou penas que a remetem ao aspecto arcaico do indivíduo primitivo coberto com peles de animais. Até o guarda-sol portado muitas vezes pela África tem um caráter de vestimenta suplementar contra as agressões exteriores que o saiote de plumas não possui.
Mesmo quando aparecem ambas seminuas, África e América apresentam diferenças cuja leitura esconde distintos sentidos. A América é pintada com seios pontudos, cintura curvilínea e o ventre achatado de uma donzela púbere e, portanto, infecunda. A África possui os seios pesados e é desenhada como uma mulher madura cujo potencial está em plena fruição ou desfrute. Esta sucessão de significantes na alegoria sobre a América testemunha a lenta digestão intelectual do traumatismo que foi para os europeus a descoberta do Novo Mundo.
Revista Estudos Históricos - CPDOC-FGV

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