sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Hailé Selassié: divindade por acaso


Hailé Selassié: divindade por acaso
Uma profecia influenciou um dos maiores movimentos raciais do século 20 e gerou uma religião que cultuava um rei tirano e carismático. Conheça a saga dos rastafáris e de seu deus, Hailé Selassié I, imperador sanguinário da Etiópia
por Felipe Van Deursen
Uma das grandes armas do cristianismo para angariar fiéis é a linguagem cheia de simbologias da Bíblia, usada para conquistar classes oprimidas. Mas em poucos lugares essa identificação foi tão longe como na Jamaica. Na antiga colônia britânica, os escravos africanos tinham uma liberdade religiosa maior que seus semelhantes nas colônias espanholas e portuguesas. E, no meio de práticas como magia negra e ritos africanos diversos, o ex-escravo George Liele apresentou aos negros a Bíblia e as histórias de dor e privação do Antigo Testamento - metáforas claras do sofrimento imposto àqueles homens longe de sua terra natal. Era 1774 e nascia a primeira igreja batista na ilha, com uma corrente de negros cristãos dos Estados Unidos, que viam o Chifre da África como um dos berços do cristianismo: o etiopianismo.

Mais de 140 anos depois, um jamaicano, convicto de que os negros do mundo todo só teriam mais liberdade se estivessem unidos, criou em Nova York, em 1916, a Unia (Universal Negro Improvement Association, "associação universal para o progresso negro", em inglês). Seu nome era Marcus Garvey e, bom orador que era, somaria 1 500 seguidores em dois meses. Um número irrisório perto dos estimados 4 milhões que apoiariam, em 1921, a convenção internacional liderada por ele para a criação de um Estado negro único. Líderes de 25 países participaram do encontro, mas logo a elite dos Estados Unidos o colocou na cadeia. Ficou preso dois anos, foi deportado para a Jamaica e, em 1927, de líder negro, Marcus Garvey virou profeta de uma nova religião. "Olhem para a África", disse. "Quando um rei negro for coroado, a redenção estará próxima."

Não demorou mais que três anos. Em 1930, um nobre africano negro foi coroado imperador da Etiópia. Para os seguidores de Garvey, o sinal era óbvio. O novo rei havia adotado o nome Hailé Selassié I ("poder da Santíssima Trindade" em amárico, língua etíope) e títulos tradicionais da Igreja cristã etíope, como Rei dos Reis e Leão Conquistador das Tribos de Judá. Trechos da Bíblia atestavam, a profecia se cumpria, chegava o redentor negro. Surgia a religião que tinha em Selassié I nada menos do que Deus. O nome de batismo do imperador inspirou o do novo culto: Ras ("príncipe") Tafari Makonnen.

Hailé Selassié era Deus para os rastafáris por causa da profecia. "O rastafarianismo servia para dizer que ter origem africana não significava pertencer a uma raça de escravos, mas a um povo orgulhoso com uma história mais antiga que a de todas as nações europeias, inclusive a grega. Mesmo se Selassié não fosse coroado em 1930, o rastafarianismo teria surgido, não importa o termo que fosse usado", afirma Paulos Milkias, especialista canadense em História recente da Etiópia. Para a Etiópia, uma das nações mais antigas do mundo, Selassié ganhou aura divina por ser coroado imperador e descender diretamente de Salomão, rei de Israel por volta de 1000 a.C.

Leão de Judá

Tafari Makonnen nasceu em 1892 no nordeste da Etiópia. Aos 38 anos, tornou-se rei. O grande desafio de Selassié nos anos 30 foi Benito Mussolini, que invadiu a Etiópia em 1935. Os etíopes resistiram, mas o imperador se exilou na Inglaterra nos anos de guerra, o que, segundo um dos funcionários do palácio real entrevistados pelo polonês Ryszard Kapuscinski no livro O Imperador, o deixou com complexo de inferioridade em relação aos líderes guerrilheiros. Selassié voltou ao trono após os ingleses terem ajudado a expulsar os italianos, em 1941. Isso afetou diretamente a opinião do profeta jamaicano sobre o líder. Garvey, em 1937, escreveu em um artigo: "Todo negro orgulhoso de sua raça deve ter vergonha da maneira como Hailé Selassié se rendeu aos lobos brancos da Europa". Mas, para os devotos rasta, o editorial fez pouca diferença.

Analfabetos etíopes se endividavam para pagar um escriba que levasse ao rei seus lamentos e desejos. Uma simples troca de olhares com ele, dizia-se, enchia as pessoas de esperança. Inteligente e astuto, Selassié sentia a necessidade de evidenciar isso no palácio real. Para tanto, privilegiava os cargos de maior confiança para os despreparados e ignorantes. Não fazia a menor questão de competência, bastava que fossem fiéis. Fechava os olhos para a corrupção e com frequência a incentivava.

O rei era muito centralizador. "Qualquer despesa acima de 10 dólares precisava ser aprovada pessoalmente por ele", disse uma das fontes ouvidas por Kapuscinski. O jornalista entrevistou, nos anos 1970, vários funcionários do governo: empregados como o secador de sapatos, o porta-toga oficial, camareiros, porta-bolsas, carregadores de presentes e guarda-cães, além do colocador de almofadas.

Como Selassié era um homem miúdo, havia a necessidade de, em reuniões e viagens oficiais, um funcionário se antecipar ao imperador quando ele fosse se sentar. "Eu possuía um conhecimento especializado (…). Era capaz de escolher com rapidez e eficiência a almofada adequada", disse o lacaio, que esbanjava um portfólio com 52 almofadas diferentes. "Nosso amo não podia viajar sem mim. Se sua dignidade exigia que ele se sentasse em tronos, ele não podia fazer isso sem ter sob os pés uma almofada, e eu era seu ‘colocador’."

Viagem ao Brasil

O imperador rodou o mundo à procura de parcerias para implantar seu projeto de modernizar a Etiópia. Viajou tanto que a imprensa (estrangeira, pois a local era fraca e submissa) o criticava muito por isso. Em 1966, ao visitar a ilha onde surgiu a religião que leva seu nome, ele se assustou com a multidão de jamaicanos, chegando a negar sua divindade (veja quadro à esq.). Anos antes, em 1960, Selassié viajou para o Brasil, onde se reuniu com o presidente Juscelino Kubitschek na recém-fundada Brasília, mas teve que voltar correndo para sua capital, Adis-Abeba, quando explodiu um golpe contra ele. Os líderes rebeldes foram massacrados, e a maior parte da população, apesar da fome e miséria crônicas, permanecia leal a Selassié. No entanto, estudantes, professores e militares estavam cada vez mais insatisfeitos com a modernização que nunca vinha e a corrupção desenfreada. Na montanhosa e escaldante Etiópia, os ventos começavam a mudar de lado. Em 1974, militares tomaram o palácio imperial. Era o fim dos 44 anos de poder de Hailé Selassié.

O golpe não afetou o caráter divino de Selassié, nem para os etíopes, nem para os rastafáris. Preso em um dos palácios do império, ele ainda era tratado como um deus, até pelos soldados que o depuseram. Sua rotina cheia de protocolos continuava a mesma, e ele queria saber notícias da revolução, que instaurou uma nova e sangrenta ditadura. Enquanto isso, o rastafarianismo chamava atenção no mundo todo graças a uma propaganda poderosa, o reggae, e a Bob Marley, que se tornava pop star.

O visual rasta tornava-se conhecido, com seus cabelos jamais cortados, toucas, alimentação vegetariana e, principalmente, o consumo de maconha, que, assim como todos os hábitos rasta, são interpretações de trechos da Bíblia. A erva é considerada a hóstia rasta, um sacramento que permite interagir com o Senhor dos Senhores, Hailé Selassié I, o sanguinário imperador da Etiópia - o qual, por sua vez, nunca colocou um baseado na boca. •


Jah chegou!
O deus dos rastafáris teve medo de desembarcar na Jamaica


Cerca de 100 mil pessoas aguardavam sob a chuva que caía no aeroporto de Kingston a chegada de Hailé Selassié I à Jamaica, em 20 de abril de 1966. Rastas batucavam e sacudiam bandeiras etíopes enquanto fumavam maconha em um cálice especial. Quando o avião pousou, a chuva cessou. Assustado, Selassié se recusou a sair até que lhe garantissem segurança. "Naquele dia disse a meu chefe que não ia trabalhar porque meu Deus vinha", afirma Ras DaSilva ao repórter americano Chris Simunek no livro Paraíso na Fumaça. Seu amigo Ras Campbell se encontrou com Selassié em um evento que reuniu líderes rasta com o imperador. "Eu segurei a mão de Sua Majestade. Foi como se eu pusesse o dedo na tomada e sentisse as vibrações elétricas. Não consegui ver o branco e o preto, só a profundidade do espaço", diz. Mas o imperador não demonstrou interesse pelo rastafarianismo. Chegou a convidar os jamaicanos a ingressar no cristianismo etíope. Três meses depois de Selassié ter deixado o Caribe, a polícia pôs abaixo o maior assentamento rasta de Kingston, deixando centenas deles sem teto, incluindo Campbell.

Saiba mais


LIVRO

O Imperador , Ryszard Kapuscinski, Companhia das Letras, 2005
O autor colheu entrevistas de ex-funcionários palacianos logo após a queda de Hailé Selassié, compondo um verdadeiro cenário dos bastidores da política palaciana.

Revista Aventuras na História

Nenhum comentário:

Postar um comentário