terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Bárbaros antigos ou modernos? (parte 1)


Bárbaros antigos ou modernos?
Michel Silva
Graduando de História – UDESC
michelgsilva@yahoo.com.br


Resumo: Pretende-se neste artigo analisar a construção do discurso sobre os persas – chamados “bárbaros” pelos gregos – no filme 300. Partindo da idéia e “orientalismo”, de Edward Said, procuraremos demonstrar os aspectos anacrônicos da representação que o filme faz dos bárbaros, expressando aspectos políticos contemporâneos, estranhos aos gregos antigos.
Palavras-chave: Batalha nas Termópilas; bárbaros; orientalismo; Pérsia.

Introdução
De tempos em tempos surgem nos cinemas filmes que ocupam a agenda daqueles que se dedicam à História; dentre esses filmes, um dos mais recentes é 300, baseado nos quadrinhos de Frank Miller. Em função do seu conteúdo ideológico, é um dos filmes mais atuais que passaram pelas salas de cinema nos últimos tempos, embora pretenda narrar fatos ocorridos milênios atrás. Esse filme, que aparentemente mostra apenas uma batalha entre persas e gregos na Antigüidade, tem como tema central uma suposta guerra entre Ocidente e Oriente, “civilizados” e “bárbaros”, Oeste e Leste, “nós” e “eles”. Dessa suposta luta de razão e democracia contra misticismo e tirania, acabam surgindo mártires, lembrados como exemplo de grande bravura.
No filme 300 é narrada a batalha ocorrida no desfiladeiro das Termópilas, em agosto de 480 a.C., no contexto da segunda guerra Médica. Nessa batalha trezentos espartanos, sob o comando do rei Leônidas, e cerca de sete mil soldados de outras cidades helênicas enfrentaram tropas persas de cerca de duzentos mil homens liderados pelo “Grande Rei”, Xerxes. Embora tenham sido aniquiladas, as tropas gregas conseguiram impor grandes perdas ao exército persa, atrasando em vários dias seu avanço. Em setembro de 480 a.C. os gregos derrotaram os persas na batalha naval de Salamina e, um ano depois, em Plataia, as forças combinadas das cidades helenas derrotaram definitivamente as tropas de Xerxes.
Em excelente resenha, Delfino (2007, p 14-16) caracteriza 300 como “violento, caricatural, historicamente impreciso, que comete infidelidades em relação à obra original e que manifesta rasgos reacionários”. O autor chama a atenção para vários aspectos anacrônicos do filme, como a “defesa da justiça, da democracia e da razão”, que servem como argumento para justificar a resistência grega contra a invasão persa. Segundo Delfino, “nenhum desses conceitos nem sequer existia para os gregos, e muito menos para os espartanos, com o mesmo significado que nós lhes damos hoje”. Mesmo realizando essas análises, o autor termina corroborando o discurso ideológico central do filme ao afirmar ser um ato de resistência do rei Leônidas a recusa em se ajoelhar diante de Xerxes.

Outro comentarista, Bonalume Neto (2007, p. 48-9), que não partilha das mesmas posições progressistas do anterior, se refere aos espartanos como “heróis que morreram por uma causa nobre”. Para ele “a grande vencedora das guerras entre gregos e persas foi a civilização”, afinal “a Grécia é o berço do mundo moderno, de conceitos filosóficos importantes, da democracia”. Salienta que teria sido vazia a vitória grega “se não houvesse liberdade de expressão, democracia e respeito aos direitos humanos – os principais valores ocidentais”. Bonalume Neto reivindica simpatia pelas posições de um “sujeito conservador”, Victor Davis Hanson, para quem, caso os persas tivessem derrotado os gregos, teríamos “crônicas do estado em vez de história”, “orgulho da raça em vez de orgulho na cultura” e “uma rígida casta sacerdotal em vez de intelectuais livre-pensantes”.
No mesmo sentido vai a resenha de Marques (2007, p. 69), um historiador: “graças aos 300 de Esparta, que a guerra fez como deuses, os gregos continuariam a ser homens livres”.
Embora partam de pontos de vista diferentes, quiçá opostos, essas análises desconsideram ou corroboram o contexto ideológico do qual 300 é produto. Contada hoje pelo cinema, a batalha nas Termópilas se transforma na guerra entre o Ocidente “civilizado” e o Oriente “primitivo”; quem vence essa batalha é uma abstrata noção de liberdade, estranha aos gregos. No filme, a luta dos espartanos ganha conotação de luta contra um “mal” que quer destruir a “civilização”, destacando-se grandes heróis que dedicam suas vidas a lutar contra o despotismo e a irracionalidade.

Um Oriente imaginado
Em 300 e nos comentários escritos sobre ele percebe-se um “discurso sobre o Oriente” onde este é apresentado como “irracional”, “depravado” e “infantil”, em oposição a um Ocidente “racional”, “virtuoso” e “maduro”. O Ocidente é “normal”, enquanto o Oriente é “diferente”, terra de mistérios, de povos atrasados, dominada por “árabes maus, totalitários e terroristas” (SAID, 1990. p. 38). Esse discurso “orientalista”, construído de fora, cria não apenas um Oriente, mas o próprio oriental, fazendo uma “demonstração altamente artificial daquilo que um não-oriental transformou em um símbolo de todo o Oriente” (SAID, 1990. p. 38). Há uma relação de poder na qual um Ocidente “vencedor” busca a dominação econômica e política sobre o Oriente, criando imagens e vocabulários para expressar aquele “outro” e justificando essa dominação como um mecanismo para levar o “progresso” a esses povos.
Essa dominação se expressa também no cinema. Em sua análise sobre a década de 1970, marcada pelo impacto da resistência palestina contra o genocídio levado a cabo pelo Estado de Israel e da crise do petróleo provocada pelo boicote de países árabes, Said (1990, p. 291) afirma que no cinema e na televisão o árabe “é associado à libertinagem ou à desonestidade sedente de sangue (...) um degenerado super-sexuado (...) essencialmente sádico, traiçoeiro, baixo”, cujo chefe “muitas vezes é visto rosnando para o herói e a loira ocidentais capturados”. Nesses filmes “o árabe é sempre visto em grande número.
Nenhuma individualidade, nenhuma característica ou experiência pessoal. A maior parte das imagens apresenta massas enraivecidas ou miseráveis, ou gestos irracionais” (SAID, 1990, p. 291).
O filme 300 mostra Leônidas como um rei guiado pela razão, a ponto de não cumprir as ordens do Oráculo e dos sacerdotes que em Esparta faziam a ligação entre os humanos e as divindades. Para o rei espartano, as palavras de qualquer divindade não poderiam se sobrepor aos interesses do povo e à defesa da nação, e é em nome disso que decide organizar a defesa da Grécia e de Esparta. E nem sabia Leônidas que as palavras dos sacerdotes eram falsas, pois obedeciam a ordens de Xerxes em troca de dinheiro e de jovens para saciar seus desejos lascivos. Era dever dos sacerdotes convencer Leônidas a não organizar a resistência espartana à invasão persa, ou seja, convencê-lo a esperar que as tropas persas marchassem sobre as cidades com plenas condições de massacrar qualquer um que se colocasse em seu caminho. No filme, Leônidas rompe com o misticismo ao não dar ouvidos ao corpo de sacerdotes, sendo guiado pelas idéias de liberdade e democracia, que não são divinas, mas construções humanas. O filme mostra ainda que uma casta de sacerdotes isolados do conjunto da população torna-se apenas um grupo de farsantes, a ponto de se corromperem pelo dinheiro do inimigo. Com isso, 300 opõe os dogmas religiosos à defesa da “vida”, da “nação” e do “povo”.
Os persas em 300 são associados ao misticismo e à luxúria. Não são guiados pela razão, mas pela adoração cega a um rei que tenta parecer um deus, embora se dedique a enganar a todos. Trapaceiros e covardes, os persas utilizam suas misteriosas magias no campo de batalha quando as armas convencionais não conseguem derrotar o inimigo. Nesse mundo mágico e sem regras moram seres lascivos, que vivem de sexo e luxo, se entregando a prazeres sem quaisquer compromissos. No filme, o mundo dos persas está cheio de “tentações”, onde tudo é possível, onde há mulheres, comida e bebida em abundância. Do outro lado há Leônidas, que não leva uma vida de exageros, que ama e é fiel à sua esposa.
Esta, mesmo cortejada, não trai o marido; aceita o estupro para salvar o exército espartano da morte. Quem a estupra, tentando também humilhá-la e acusá-la de adultério publicamente, é um outro mercenário que recebia gordas quantias de moedas marcadas com a face de Xerxes.
O mundo dos persas descrito em 300 é povoado por criaturas fantásticas, grandes monstros e homens deformados usados como arma no campo de batalha, ligados a imagens repugnantes, feias, deformadas; nesse mundo cabe com naturalidade figuras bizarras que hoje nós associamos a lugares distantes e fantásticos. Em função deste vínculo com coisas repugnantes, um mercenário espartano, Ephialtes, negado ao exército de sua cidade pela deformidade do corpo, é recebido de braços abertos no mundo feio e de magias persa. Em oposição a essa caracterização dos persas, há os homens fortes e robustos de Esparta,
lutadores que não baixam sua cabeça e conseguem erguer sua arma para proteger o irmão ao lado. Esses homens fortes e belos são educados para nunca desistir e nunca se humilhar aos pés de quem quer que seja. Já entre os persas, Xerxes diz, a Ephialtes: “Leônidas te pede que se erga. Eu peço apenas que se ajoelhe”. Xerxes é o rei que quer estar acima de todos, um déspota sanguinário que não poupa esforços, nem que seja preciso apelar à magia e à traição, para derrotar seu inimigo. Leônidas é o rei que busca animar seu exército, fazer seus homens se sentirem confiantes, e não pede que se humilhem a seus pés. É apresentado no filme como um homem exemplar, um grande herói, que mata muitas pessoas em defesa de princípios universais e positivos.

História - Imagens e Narrativas

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