terça-feira, 10 de novembro de 2009

“TRISTE FIM DE POLICARPO QUARESMA”: a desconstrução do sujeito-nacional romântico


“TRISTE FIM DE POLICARPO QUARESMA”:
a desconstrução do sujeito-nacional romântico



Gislei Martins de Souza
Graduanda em letras
Universidade do Estado de Mato Grosso
gislei_gigi@hotmail.com

RESUMO: O artigo pretende fazer uma leitura de “Triste fim de Policarpo Quaresma” (1915 [2001]), de Lima Barreto. Procuro mostrar que a sátira, operada pelo narrador, desmonta o nacionalismo utópico do Major Quaresma. Em vista disso, suponho também que a própria linguagem do romance elabora a subjetividade estética anti-romântica formulada em Quaresma, posto que esta retoma o signo nacional para desfigurá-lo e, dessa forma, expõe como a arte literária aponta uma fratura na experiência representativa da linguagem na história da Literatura Brasileira.

PALAVRAS-CHAVE: sujeito-leitor romântico, nacionalismo utópico, ficção.

ABSTRACT: The article intends to read "Triste Policarpo Quaresma" (1915 [2001]), by Lima Barreto. It attempts to show the satire, operated by the narrator, disassembles the utopian nationalism of Major Quaresma. As a result, I also suppose that the novel’s own language produces the anti-romantic aesthetic subjectivity formulated in Quaresma, since it retakes the national sign to disfigure it and, thus, it exposes how literary art shows a fracture in the representative language’s experience in the history of Brazilian Literature.



KEY-WORDS: subject-reader, utopian nationalism, fiction.


Tenho juízo já, livre e claro, sem as sombras caliginosas da ignorância que sobre ele me puseram minhas amargas e contínuas leituras dos detestáveis livros de cavalarias (Dom Quixote, p. 429).

A posição estética de Lima Barreto é a de construir não mais uma obra que naturaliza a arte da representação através do paradigma da imitação de um texto primeiro. Procuro mostrar, assim como Santiago (1982, p. 166), que o encanto da ficção barretiana se manifesta pela produção da diferença, isto é, “pela produção de um texto que repete o primeiro em diferença”.

Tentando ser mais precisa quanto a uma crítica à estética romântica formulada na figura de Quaresma, minha hipótese é a de que “Triste Fim de Policarpo Quaresma” indica a nervura da problemática nacionalista à medida que toma desta para desconstruí-la, colocando-a em tensão pelo viés da “diferença”.

Busco mostrar como “Triste fim de Policarpo Quaresma” (1915 [2001]), de Lima Barreto, projeta o desejo de construir uma nova ordem literária, posto que a própria linguagem se desdobra no processo de significação de um nacionalismo utópico desmetaforizado pela via alegórica do seu avesso. Através da prática do comentário[1], projeta-se uma relação entre a linguagem e o sujeito, uma vez que a repetição diz sobre a linguagem e constitutivamente produz a subjetividade estética anti-romântica na figura de Quaresma.

Situo minha análise a priori nas leituras em Foucault (1992), em “As palavras e as coisas”, na tentativa de mostrar como a similitude norteou e entrelaçou o discurso literário. A linguagem no século XVI não se configurava como um sistema arbitrário uma vez que estava depositada no mundo, tendo uma relação de semelhança – imitação – com a coisa que designava.

Segundo afirma Foucault era a similitude que regia o saber e estabelecia, de certa forma, uma relação de transparência da linguagem no que se refere ao mundo. Então entre as palavras e as coisas havia uma espécie de entrelaçamento que encerrava a linguagem numa palavra definitiva. No mundo das similitudes, as palavras se relacionavam com as coisas e entre si, da mesma maneira como as coisas se relacionavam com elas mesmas.

Percorrendo o século XVII, Foucault mostra que as palavras se esmaecem do meio das coisas, como também em sua própria materialidade, passando a ser vistas como instrumentos representativos completamente convencionais; e, por sua vez, as coisas são tomadas como um objeto a ser dominado. As palavras, agora, aparecem apenas como algo organizado em torno daquilo que significam - a matéria do mundo – desempenhando o papel de “estar no lugar de”.

Em contrapartida, Foucault também chama a atenção para o “vão” que existe entre as similitudes que formam o grafismo e as que constituem o discurso. A partir do século XIX, a linguagem não mais se assemelha imediatamente às coisas que ela nomeia, nem está por isso separada do mundo.

Há uma dimensão simbólica na linguagem que não pode mais se deter porque jamais encerra uma palavra definitiva. Desaparecendo assim essa camada invariável em que se entrecruzavam indefinidamente as palavras e as coisas, Foucault estabelece uma perspectiva que toma a arte literária em uma relação a si mesma, restituindo o aparecimento do ser vivo da linguagem - significação.

Essas considerações levam-me a pensar que em “Triste fim” ressoa o murmúrio infinito de toda a ficção brasileira que adota o nacionalismo como tópica. A figuração de Policarpo Quaresma retoma em sua materialidade simbólica, como num jogo de espelhos, todos os livros que tematizam a tópica nacional para desfigurá-la e, dessa forma, expõe como a arte literária aponta uma fratura na experiência representativa da linguagem na história da Literatura Brasileira.

Ao dizer que a literatura desloca-se do papel de representar, mostro que ela cria imaginários sobre as coisas e que tais imaginários só são passíveis de serem elaborados a partir de um seu desdobramento infinito enquanto linguagem.

Isso é bastante significativo para que eu delineie como Policarpo Quaresma figura um sujeito-leitor constituído pelos imaginários de pátria que são produzidos pela literatura romântica.

Digo, de tal forma, que pelo recurso estético à redundância, o narrador projeta em Quaresma um nacionalismo extremado, cujo “amor da pátria tomou-o todo inteiro”[2]. Esse amor incondicional o fez estudar “a Pátria, nas suas riquezas naturais, na sua história, na sua geografia, na sua literatura e na sua política”[3].

A pátria de Quaresma escrita com “P” maiúsculo produz um imaginário cosmopolita que transfere o Brasil para um âmbito universal ao mesmo tempo em que atrela os sentidos de unidade, pressupondo “a legitimação dos valores republicanos como expressão política do Brasil moderno soberano e independente” (PRADO, 1993, p. 599).

Vejo assim que a noção de pátria se constrói a partir da encenação de Quaresma enquanto um sujeito-leitor romântico que, paternalmente, segue à risca aquilo que lê nos livros e para quem a pátria é o mundo. Seu idealismo patriótico é o decalque de uma biblioteca radical recheada do melhor produto nacional.




Quem examinasse vagarosamente aquela grande coleção de livros havia de espantar-se ao perceber o espírito que presidia a sua reunião.

Na ficção, havia unicamente autores nacionais ou tidos como tais [...] Podia-se afiançar que nem um dos autores nacionais ou nacionalizados de oitenta pra lá faltava nas estantes do major (TFPQ, p. 21).


Esse desejo de “cultivar”, ou melhor, ler tudo o que seja produto de uma literatura nacional, significa o procedimento estético de “metamorfosear” Quaresma na própria linguagem fictícia romântica, que forja sua identidade a partir do imaginário de sujeito-nacional.

Como uma figura quixotesca, Quaresma em sua realidade de amanuense só pode reinstalar a tradição nacional a partir da consulta incessante dos livros, a fim de saber quais as posições tomar e o que dizer, quais signos dar a si próprio e aos outros.

Em um dos seus empreendimentos, desejava resgatar as canções folclóricas que demonstrassem a genuína produtividade “da nossa terra e dos nossos ares”. Quaresma, diz o narrador, “[c]omprou livros, leu todas as publicações a respeito, mas a decepção lhe veio ao fim de algumas semanas de estudo. Quase todas as tradições e canções eram estrangeiras”[4].

Esta personagem busca completar a realidade empírica construída dentro da obra, da qual ele é herói, com a narrativa fictícia da literatura romântica que lera. Entretanto, ao manter o gesto de interpretação romântico e tentar promover o seu ideal patriótico não percebe que esse mundo recriado está em movimento – transformação.

Quaresma permanece o Mesmo, detido diante de todas as similitudes nacionais, enquanto a sociedade é figurada em fase de mudança. De minha parte entendo que aí se configura a tensão entre o Mesmo e o Diferente que significa a estética transitiva de Lima Barreto, visto que não harmoniza-se ao espaço definido pela literatura institucionalizada, de caráter academicista e apuros retóricos.

O narrador mobiliza um referencial propício para a figuração de uma realidade fictícia nacional que se confronte com o patriotismo de Quaresma, vejamos:



Não se sabia bem onde nascera [...] Errava quem quisesse encontrar nele qualquer regionalismo; Quaresma era antes de tudo brasileiro. [...] era tudo isso junto, fundido, reunido, sob a bandeira estrelada do Cruzeiro.

Logo aos dezoito anos quis fazer-se militar; mas a junta de saúde julgou-o incapaz. Desgostou-se, sofreu, mas não maldisse a Pátria. [...] Impossibilitado de evoluir-se sob os dourados do exército, procurou a administração e dos seus ramos escolheu o militar (TFPQ, p. 22).

Neste fragmento, observo que Quaresma configura um sujeito sem referente, uma vez que falta para si uma identidade local. Sua identidade se constrói como cosmopolita-universal, tendo em vista que “era antes de tudo um brasileiro”. Quaresma é formatado pelo narrador como um sujeito “primitivo” que se funde na unidade produzida “sob a bandeira estrelada do Cruzeiro”.

Enquanto Quaresma amalgama-se nas leituras românticas, o narrador o “descola” do seu próprio mundo fictício, o que produz a impressão de que ele é um livro que tem uma vida autônoma dentro de outro.

De tal maneira, o narrador constrói para Quaresma uma noção tensiva de pátria: romanticamente afirma as insígnias da brasilidade moderna pelo gesto passadista[5]; ao mesmo tempo em que o satiriza ao engajá-lo a política-militar – “o hálito da Pátria” – de um “ministério liberal” em que ele toma uma posição conservadora.

Isso é bastante significativo no sentido de colocar em funcionamento dois planos: o satírico – narrador – e o caricato – loucura de Quaresma. Por uma perspectiva onisciente o narrador para alçar o objetivo de dinamitar a mitificação simbólico-nacional de Quaresma ora cola-se ora distancia-se da sua visão de mundo limitada.

A partir da ilusão de autonomia colocada pelo narrador na construção de Quaresma, vejo que ele busca a semelhança do mesmo - retornar a um mundo primitivo alicerçado por valores supostamente originais - onde já está figurada uma outra realidade.

Esse lugar dissonante impostado pela figuração de Quaresma em um espaço antagônico aos signos do patriotismo que o constituem, supõe justamente uma sátira construída pelo narrador para desmontar a tópica do nacionalismo que ainda prevalecia como tema na literatura brasileira a partir do paradigma da imitação. O narrador o “amarra” aos bens empíricos “dos dourados do exército” construindo-lhe uma espécie de clã dentro do arsenal, em que trabalhava “em silêncio para a grandeza e emancipação da Pátria”.

Para avançar nessa compreensão contraponho duas cenas bastante ilustrativas, nas quais o narrador “cola” a narrativa em Quaresma, como também a “descola” fazendo-o sofrer com as desastrosas conseqüências de um requerimento, em que solicitava a mudança da língua portuguesa que, segundo ele, é emprestada ao Brasil:




Como de hábito, Policarpo Quaresma [...] bateu em casa às quatro e quinze da tarde. Havia mais de vinte anos que isso acontecia. Saindo do Arsenal de Guerra, onde era subsecretário, bongava pelas confeitarias algumas frutas, comprava um queijo, às vezes, e sempre o pão da padaria francesa (TFPQ, p. 19).

Publicado em todos os jornais, com comentários facetos, não havia quem não fizesse uma pilhéria sobre ele, quem não ensaiasse um espírito à custa da lembrança de Quaresma. Não ficaram nisso; a curiosidade malsã quis mais. [...] Uma ilustração semanal publicou-lhe a caricatura e o major foi apontado na rua.

Os pequenos jornais alegres, esses semanários de espírito e troça, então! Eram de um encarniçamento atroz com o pobre major. [...]

Tudo isto irritava profundamente Quaresma. Vivendo há trinta anos quase só, sem se chocar com o mundo, adquirira uma sensibilidade muito viva e capaz de sofrer profundamente com a menor coisa. [...] vivia imerso no seu sonho, incubado e mantido vivo pelo calor dos seus livros. Fora deles, ele não conhecia ninguém [...]

Desinteressado de dinheiro, de glória e posição, vivendo numa reserva de sonho, adquirira a candura e a pureza d’alma que vão habitar esses homens de uma idéia fixa, os grandes estudiosos, os sábios, e os inventores, gente que fica mais terna, mais ingênua, mais inocente que as donzelas das poesias de outras épocas (TFPQ, p. 53-54).


No primeiro fragmento, a sintaxe do romance segue uma simultaneidade que formula uma subjetividade romanticamente disciplinada para Quaresma, a ponto de os vizinhos saberem o horário com a sua passagem. Esse personagem é construído através de uma representação descritiva, inscrevendo-se em um espaço literário semanticamente regulado às suas repetidas ações cotidianas.

Entretanto, tal figuração não passa de uma aparência que traz o equívoco da língua para dentro do discurso literário. É de dentro do próprio discurso que a língua abala as evidências literárias, haja vista que as tentativas de Quaresma em promover o patriotismo não se efetivam como estava textualizado nos livros românticos.

Já no outro fragmento, o narrador interrompe a seqüência de fatos em que vinha seguindo a narrativa para trazer uma outra projeção de Quaresma. O narrador toma a dicção da crônica para ironizar o ideal patriótico do personagem, transformando-o em desencanto que se converte no “imerso sonho nacional incubado e mantido vivo pelo calor dos seus livros”, o que mostra como ele não conseguia reagir ou se debater contra a sua realidade.

A obra traz a fratura, ou seja, o ponto de ruptura em relação ao paradigma das similitudes. Todos os indícios da não-semelhança, todos os signos que mostram que as narrativas românticas não afiguram a “verdade” fazem apenas dizer que a tópica nacionalista não é mais do que a tênue ficção daquilo que representa, isto é, do próprio imaginário de nação.

Um trabalho que, nesse ponto de vista, pode contribuir para explicar como ocorre esse procedimento estético de colocar o nacionalismo/nação no plano da ficção, é o texto de Arnoni Prado “A palavra sacralizada” que propõe um estudo da literatura barretiana através do gesto de “falseamento da realidade pela linguagem”.

Trata-se, na expressão do autor, de uma estratégia a partir da qual a produção literária deixa de ter um compromisso com a realidade propriamente dita, uma vez que opera no nível de imagens elaboradas.

Precisando ainda mais sua argumentação, Arnoni coloca como “[a] decisão de situar a linguagem ‘oficial’ no plano do falso é, no fundo, reflexo de uma espécie de pessimismo anti-imagem dado pela concessão da própria inversão da imagem – o bovarismo” (1974, p. 10).

Nesse sentido, como defende o autor, é na tensão entre o falso e o utópico que se evidencia o projeto antiacademiscista da literatura barretiana. Trata-se de identificar a retórica com o plano das “imagens elaboradas” da realidade, revelando a tensão entre linguagem e realidade oficial.

É pelo gesto de direcionar o foco de análise para o contrário das coisas escamoteado pela linguagem que a produção imaginária de Quaresma se apóia no recurso à caricatura - que provoca o riso, a mofa assim como “uma careta de clown”[6] - na tentativa de projetar o abalo da mimese. O narrador desconstrói o sistema retórico em seu programa, ao instalar-se, no discurso, como uma instância vicária da ruptura[7] que traz a ambigüidade[8] à figuração de Quaresma.

Isso significa uma proposta de resistência e mudança que indica uma crítica ao paradigma da representação e a obsessão pela ruptura. Por ser banalizado enquanto herói, Quaresma é posto, para parafrasear Schwarz, “fora do lugar” tornando-se uma vítima do seu próprio itinerário de leitura romântico, que imposta uma realidade que funciona pela construção imaginária da nacionalidade/nação.

Posto em situação com a realidade, Quaresma é ridicularizado em seu patriotismo ufanista pelos seus colegas de repartição, como também pelos jornais. Quaresma direciona seus estudos a tudo que se relaciona às similitudes do nacionalismo fictício. Porém, o narrador malogra o seu caminho na tentativa de apontar que o discurso literário já não tem semelhança para constituir a realidade.

Tal tensão não se resolve pelo triunfo de um dos princípios – ora pela utopia quaresmiana, ora pela realidade – mas pela fusão de ambos, que dissocia as aparências e torna real o irreal e irreal o real. Isso produz um efeito de irrisão em que a palavra dos livros se torna vazia sem semelhança ou conteúdo para preenchê-la.

O ideal de Quaresma é superado pela realidade falseada pela linguagem tanto dos jornais, quanto da própria narrativa em que o narrador toma de sua caricatura para transformar o mito do patriotismo “em recusa aberta ao ‘sistema de idéias’ [enquanto] o otimismo ufanista pela ‘defesa da ordem’ converte-se em doloroso pessimismo” (PRADO, 1974, p. 32).

A sátira se constitui na tentativa de conduzir a um jogo ambíguo entre o efeito de irrisão e de tragicidade, na medida em que o seu ideal vai produzir tanto o escárnio quanto incomodar os supostos padrões da realidade empírica.


O tupi encontrou a incredulidade geral, o riso, a mofa, o escárnio; e levou-o à loucura. Uma decepção. E a agricultura? Nada. As terras não eram ferazes e ela não era fácil como diziam os livros. Outra decepção. E, quando o seu patriotismo se fizera combatente, o que achara? Decepções. [...] A sua vida era uma decepção, uma série, melhor, um encadeamento de decepções. A pátria que quisera ter era um mito; era um fantasma criado por ele no silêncio do seu gabinete (TFPQ, p. 175).


Nesse fragmento, opera-se com o procedimento do comentário em que o próprio texto repete-se a si mesmo, retomando as aventuras de Quaresma para miná-lo enquanto leitor-romântico. Pelo gesto de operar a língua como espelho que se volta contra si mesma, a própria narrativa desconstrói o aparato retórico da tópica nacionalista formulada na figura de Quaresma.

A prisão de Quaresma representa uma determinação política contra uma nova condição impostada por ele, ou seja, como um “revolucionário” que estaria transgredindo com seus ideais nacionalistas a ordem da nova República, simbolizando uma ameaça ao poder vigente.

O narrador subverte a ordem de Quaresma produzindo um efeito de apagamento deste enquanto próprio objeto da narrativa. De tal forma, o narrador desmonta as marcas das similitudes para que a linguagem literária signifique pelo único fato de ser linguagem.

Foucault considera que “o sujeito – o ‘eu’ que fala – se despedaça, se dispersa e se espalha até desaparecer nesse espaço nu” (2006, p. 220). Por essa operação de fazer desaparecer a autonomia de Quaresma sob o signo do discurso nacionalista, o narrador rompe a ordem narrativa fazendo com que a linguagem escape ao seu modo de ser discurso – à dinastia da representação -, e a literatura se desenvolva a partir dela mesma.

“Triste fim de Policarpo Quaresma” ao encenar a busca pelas similitudes do nacionalismo utópico trabalha no jogo entre a desrazão e a imaginação que “corrói” simbolicamente de dentro para fora da narrativa o eixo da imitação com que a literatura até então trabalhava. A verdade de Quaresma já não está na relação entre as palavras e o mundo, pois sua tentativa frustrada de reconstruir um nacionalismo fictício além de levá-lo à loucura, ainda o imposta como um desertor da pátria.

A própria presença da figura do louco tensiona a relação entre as similitudes e os signos. Quaresma é semelhante aos signos que ele copiou servilmente das narrativas nacionalistas. Entretanto, na medida em que ele sai em busca da semelhança do mesmo - nacionalismo – onde já está configurado o diferente, esta o conduz ao delírio que produz a ruptura da ficção em relação ao império das similitudes.

“Triste fim de Policarpo Quaresma” aponta essa fissura que existe entre as similitudes e o ser vivo da linguagem a partir da desfragmentação do sujeito metáfora de um patriotismo que só funciona enquanto ficção. Nesse caso, o ser da linguagem só reaparece a partir do aniquilamento simbólico do sujeito que esmaece no vazio da narrativa pelo efeito satírico.

A figura do narrador – que já não é autoritário como na literatura romântica – acaba por satirizar esse sujeito-nacionalista desfragmentando-o enquanto metáfora da pátria na tentativa de produzir um efeito de vazio.

Ao dessacralizar os artifícios retóricos que configuravam a nação a partir do discurso das origens, o narrador opera com a imagem subvertida de Quaresma transformando-o em um cavalheiro errante - uma espécie de figura quixotesca - a procura de uma instância para si que não é o da “realidade” em que vive, mas uma pátria mítica.

A linguagem ao voltar-se sobre si mesma mostra que a ficção se configura como um afastamento mesmo das coisas. Ao atuar em relação ao texto primeiro e consigo mesma, a linguagem pelo recurso à repetição funciona para atualizar a pátria projetada na caricatura de Quaresma. Sendo símbolo de resistência à ordem literária brasileira do século XX, as aventuras de Quaresma traçam o limite de uma sintaxe nacionalista que só nos unia enquanto metáfora. http://www.mafua.ufsc.br/numero08/ensaios/souza.htm

Revista MUFUA - UFSC

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