quarta-feira, 4 de novembro de 2009

O princípio da igualdade - Claude Lévi-Strauss (100 anos)


O princípio da igualdade
Claude Lévi-Strauss rompeu com a “superioridade” do europeu e, no contato com o índio brasileiro, demarcou a concepção da igualdade

Por: Flávio Aguiar

Publicado em 11/03/2009

Sem nada de diferente acontecesse, Claude Lévi-Strauss teria se tornado advogado, pois começou os estudos universitários em Direito. Ou talvez um professor de Filosofia, depois de ter optado por essa área do conhecimento. Mas coisas surpreendentes aconteceram. Em meio à crise econômica deflagrada pela quebra da Bolsa de Nova York e a reconstrução do Brasil em novas bases, com a Revolução de 1930 que levou Vargas ao poder, criou-se a Universidade de São Paulo, em 1934. A USP congregou escolas e faculdades já existentes, como a Politécnica, a Medicina e o Direito, e criou também a então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, com o objetivo de desenvolver a pesquisa em várias áreas do conhecimento, incluindo as ciências humanas. Para impulsioná-las, contrataram-se professores na Europa. Devido ao país de origem da maioria deles, o grupo ficou conhecido como “Missão Francesa”. Vieram professores como Roger Bastide, Fernand Braudel, Jean Maugüé, Pierre Monbeig, entre outros. O filósofo Walter Benjamin quase fez parte do grupo, mas sua vinda não deu certo e ele acabou morrendo na fuga dos nazistas, em 1940.

Entre os visitantes veio, em 1935, com 27 anos incompletos, o jovem Claude Lévi-Strauss. Ele ficou no Brasil até 1939, e essa estada deu-lhe o impulso fundamental para empreender uma das mais brilhantes e revolucionárias carreiras na antropologia do século 20. Durante esses quatro anos, além de dar suas aulas, o jovem antropólogo dedicou-se a viajar e a conhecer os índios brasileiros, ou seus remanescentes. Pesquisou 
entre os Cadiuéos (ou Guaicurus), os Bororo, os Nhambiquara e os Tupi do norte do Brasil, pelo Paraná, por Mato Grosso e pela região Amazônica. Esses estudos, que ele continuaria a fazer por toda a vida, e aos quais daria continuidade entre os índios da América do Norte, foram a base de seu pensamento revolucionário.

Em 1939 Lévi-Strauss retornou à França e participou do esforço de guerra. Com a capitulação da França diante dos nazistas, em 1940, e sendo de origem judaica, encontrou dificuldades para trabalhar e sobreviver. Refugiou-se nos Estados Unidos, onde lecionou até 1950, quando retornou à França. Tornou-se professor e líder intelectual. Em 1955 publicou o livro que primeiro lhe deu grande fama internacional: Tristes Trópicos, um misto de estudo antropológico e relato de viagem que versa, especialmente, sobre sua vinda ao Brasil e sua formação nesse período. Publicou ainda, entre outros, livros que fazem parte de qualquer bibliografia obrigatória não só sobre antropologia, mas sobre a vida intelectual do século 20: O Pensamento Selvagem, O Cru e o Cozido, que faz parte da série Mitológicas I-IV, Antropologia Estrutural, Mito e Significado, Raça e História, De Perto e de Longe, A Origem dos Modos à Mesa.

Pedra angular
Em que consistiu o caráter revolucionário do pensamento de Claude Lévi-Strauss? Digamos que toda a herança do século 19, em matéria de antropologia, etnografia e demais ciências do comportamento humano, convergia para o sentimento de que um pesquisador europeu (de preferência) pudesse postar-se diante de um habitante da floresta brasileira, ou de remotas ilhas do Pacífico, e dizer: “Você é eu ontem”, ou “Eu sou o seu inevitável amanhã”. Ainda que ambos pudessem se olhar, conviver, se tocar, um intransponível fosso temporal os separava: esses dois seres humanos podiam ser muito semelhantes, mas não eram exatamente iguais. Um, o europeu, era o “civilizado”, o adiantado, o homem do presente e do futuro. O outro (sempre “o outro”) era o “selvagem”, o atrasado, o homem do passado e... sem futuro, a menos que se submetesse à linha evolutiva que levou à construção do primeiro.

Lévi-Strauss rompeu com essa linha demarcatória da desigualdade. Partindo da ideia, ou por ela concluindo, de que todos os homens eram substancialmente iguais, isto é, desfrutavam das mesmas capacidades e determinações advindas de sua natureza biológica e mental, toda a humanidade era capaz de desenvolver todo e qualquer tipo de pensamento. Ao contrário do que apregoava a antropologia tradicional, de que o pensamento “selvagem” ou “mítico” era simples e de que o “civilizado” e/ou científico era infinitamente mais complexo, Lévi-Strauss empenhou-se em evidenciar a extraordinária complexidade daquela mente dita “atrasada” e de suas criações, tanto no plano simbólico como no social e organizacional. Ela era meramente diferente da – agora, sim – “outra”, a “civilizada”.

Ambas as mentalidades tinham sido simplesmente postas diante de questões diversas, tiveram de responder e solucionar desafios distintos, e por isso desenvolveram aptidões diferentes. Mas em nada uma é “superior” ou “melhor” que a outra. O pensamento da “civilização ocidental” não era a suma ou o sumo do pensamento universal; era bem mais complexo do que muitos, sim, mas era apenas mais um entre outros possíveis. Assim como a humanidade não era o sumo nem o píncaro do universo, mas muito provavelmente desapareceria como espécie muito antes da natureza como um todo.

Seu pensamento inovador tornou-se um marco divisório na antropologia e no conhecimento da humanidade. E não podemos esquecer que foi o contato interessado e empenhado com os índios brasileiros um dos primeiros fatores que levaram Lévi-Strauss a conceber, para seu sistema, a pedra angular da igualdade humana – sem eliminar o reconhecimento das diferenças e a abertura para elas, que ele considerava condição imprescindível para o progresso da humanidade.

França no Brasil
Claude Lévi-Strauss nasceu na Bélgica, numa família francesa de origem judaica. Seu pai estava contratado para fazer pinturas na capital, Bruxelas. Mas o futuro antropólogo, um dos maiores do século 20 e de todos os tempos, cresceu em Paris, onde também fez sua formação escolar e superior. No último 28 de novembro, completou 100 anos, e não faltam pretextos para que a celebração desse centenário se estenda. A USP, principal universidade do país e cuja criação teve na linha de frente Lévi-Strauss, acaba de fazer 75 anos. De abril a novembro deste ano, o Ano da França no Brasil, uma grande agenda de integração cultural, retribuirá o Ano do Brasil na França, realizado em 2005. E, mais de meio século depois de seu legado para a compreensão do comportamento humano, o protagonismo dos povos indígenas foi a marca do recente Fórum Social Mundial amazônico.

Revista Brasil

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