sábado, 28 de novembro de 2009

A medicina na Idade Média


A medicina na Idade Média
A medicina medieval cresceu ligada à Igreja, sendo fortemente influenciada pelas convicções religiosas que dominavam o cenário.
por Vivianne Santos


AIdade Média compreende um período de aproximadamente mil anos, iniciado com a queda do Império Romano do Ocidente, em 476, e tendo seu fim assinalado pela queda do Império Romano do Oriente (Bizâncio), em 1453. Caracterizou-se pelo predomínio do Cristianismo em todas as esferas da vida humana. Muitas vezes é chamado pejorativamente de idade das trevas, pois não teria tido nenhuma criação filosófica ou científica autônoma. Tal idéia é criticada por muitos estudiosos, que tendem a ver o período de desenvolvimento econômico e tecnológico, que começou por volta do século XII, como um importante requisito para o desenvolvimento científico na era moderna.

Como resultado das migrações bárbaras e da implosão do Império Romano do Ocidente, a Europa Ocidental do início da Idade Média era pouco mais que uma colcha de retalhos de populações rurais e tribos bárbaras. Perdeu-se o acesso aos tratados científicos originais da antiguidade clássica, ficando apenas versões resumidas e até deturpadas que os romanos tinham traduzido para o latim. A única instituição que não se desintegrou juntamente com o império foi a Igreja Católica, que manteve o que restou de força intelectual, especialmente através da vida monástica. O homem instruído desses séculos era quase sempre um clérigo, para quem o estudo dos conhecimentos naturais era uma pequena parte de sua escolaridade. Esses estudiosos viviam numa atmosfera que dava prioridade à fé e tinham a mente mais voltada para a salvação das almas do que para o questionamento de detalhes do universo físico.

No século X ocorre a contenção das últimas ondas de invasões estrangeiras. Por volta de 1100 d.C. ocorre uma revolução que combinou renascimento urbano e comercial, ampliação de culturas e fronteiras agrícolas, crescimento econômico, desenvolvimento intelectual e evoluções tecnológicas. Começam a ser abertas novas escolas ao longo de todo o continente, inclusive em cidades e vilas menores. Por volta de 1200 são fundadas as primeiras universidades, em Paris, Bologna e Oxford (em 1500 já seriam mais de 70). Começa um forte movimento de tradução de documentos árabes e gregos, que tornam o conhecimento do mundo antigo novamente disponível para os eruditos europeus. Tudo isso possibilitou um grande progresso em conhecimentos como Astronomia, Matemática, Biologia e Medicina.

Causavam espanto e admiração as inovações, tais como grandes relógios mecânicos que transformaram a noção de tempo nas cidades. Presenciaram-se descobertas, como os óculos, em 1285, e a prensa móvel, em 1448. Houve também inovações na forma de utilizar os meios de produção, com as técnicas de serralheria e incisão de pedras, a fundição de ferro e os avanços nas técnicas de construção aplicadas ao estilo gótico. No setor agrícola, temos o desenvolvimento de ferramentas, como a charrua, melhorias em carroças e carruagens, arreios para animais de carga e a utilização de moinhos d’água. Avanços em instrumentos como a bússola e o astrolábio, a confecção de mapas e a invenção das caravelas tornaram possível a expansão marítimo-comercial Européia na Idade Moderna.
Medicina medieval

A medicina medieval cresceu ligada à Igreja, sendo fortemente influenciada pelas convicções religiosas. Os religiosos assumiram o controle da arte de curar através de medicamentos e deixaram para os barbeiros, que já lidavam com a navalha, a arte de drenar abcessos e retirar pequenas imperfeições da pele.

No século VI, em Monte Cassino (entre Roma e Nápoles), um nobre italiano chamado Benedito de Nursia fundou uma comunidade monástica denominada Ordem Beneditina. Seus membros faziam votos de pobreza, castidade e obediência, aperfeiçoaram o ofício da caligrafia e do iluminismo, e transcreveram textos gregos e latinos remanescentes. Em Monte Cassino, como em toda a Europa, o primeiro médico medieval foi um padre ligado a alguma ordem religiosa.

A medicina monástica era simples e praticada por monges que apenas conheciam a medicina popular, extraindo remédios das ervas medicinais cultivadas nos jardins dos mosteiros. O declínio da medicina monástica deu-se no século XII, quando as autoridades eclesiásticas recearam que os monges estivessem por demais afastados de seus votos religiosos por razão de seus deveres médicos.
No início do século XIII, as atividades médicas foram banidas dos mosteiros, passando o conhecimento médico da época a ser transferido para escolas e universidades leigas. A partir desta época, os hospitais floresceram em toda Europa, em especial pela influência e interesse pessoal do Papa Inocêncio III, que fundou, em 1204, um grande hospital em Roma. Os hospitais do Espírito Santo, como ficaram conhecidos, surgiram em diversas cidades: em Paris, o Hôtel-Dieu, ao lado da catedral de Notre Dame; o Hospital de São Bartolomeu e o Hospital de São Thomás, ambos em Londres.

A Escola de Salerno

O primeiro centro medieval de Medicina leiga surgiu junto ao Mar Etrusco, numa estação de cura. Na cidade de Salerno, ao sul de Nápoles, durante o século X, reuniu-se uma comunidade de médicos, professores, estudantes e tradutores, com a finalidade de criar a primeira faculdade de medicina do Ocidente. Seu corpo docente de médicos, professores, freiras e monges foi o primeiro dos tempos medievais.

Um dos mais famosos professores de Salerno foi Constantino, o africano, que trouxe consigo uma ampla coleção de manuscritos árabes. Neste famoso centro de ensino médico as mulheres também ensinavam, dentre as quais destacou-se Trotula, uma das “damas obstetras de Salerno”, que escreveu sobre moléstias femininas e de pele – De Mulierum Passionibus.

Em Salerno, a obra mais famosa e mais editada (cerca de 1500 edições) foi o Regimen Sanitatis Salernitanum, que destacava-se por sua isenção de superstições e baseava-se em fontes galênicas, hipocráticas e pseudoaristotélicas.
Salerno estimulou o renascimento da tradição hipocrática, inspirou uma nova literatura médica pela publicação de mais de 50 novas obras, fomentou o estudo e desenvolvimento da cirurgia e traçou o esboço da vida universitária.

Higiene

Durante a Idade Média, um dos aspectos mais fundamentais da higiene, o banho, era considerado prejudicial se tomado em excesso. E “banhar-se em excesso” geralmente significava fazê-lo mais de duas ou três vezes por ano, antes da páscoa e do natal. Nas áreas urbanas, os dejetos e a água usada eram simplesmente atirados pela janela, muitas vezes na cabeça do transeunte que estivesse passando.

As roupas eram lavadas, geralmente, duas ou três vezes por ano, devido ao custo do sabão e, conseqüentemente, viviam infestadas de pulgas, percevejos, piolhos e traças. Quem mais corria risco eram os recém-nascidos, já que as mulheres costumavam forrar as camas com lençóis sujos e velhos para dar à luz, pois assim não estragavam os bons. Cerca de um terço das crianças morriam antes de completar um ano e muitas outras antes dos dez anos. De cada dois nascimentos bem-sucedidos podia resultar um único adulto saudável. As casas eram ninhos de ratos, que disputavam com os animais de criação os restos de comida.
A dieta era mal balanceada, consistindo basicamente de cereais, na forma de pão. Vinho, carne, peixe, legumes, gorduras e queijo, não passavam de “acompanhamento”. As classes mais abastadas tinham direito ao pão fino, enquanto os pobres comiam o pão escuro, ou mesmo o chamado “pão de escassez”, feito de aveia.

A verdadeira causa da doença era ignorada. Mesmo no final da Idade Média a medicina preventiva limitava-se ao isolamento e quarentena. Atribuía-se quase tudo à influência dos astros, e não era raro que os médicos mais famosos fossem também astrólogos. Para os pobres e ignorantes, a resposta era bem simples: todos os males eram castigos de Deus, irado com os constantes pecados cometidos pelo homem. Para quase tudo receitava-se a sangria, além de infusões herbais e misturas estranhas, quase sempre inócuas. O pensamento médico, preso à teoria das influências astrais, ressaltava o ar como o meio de transmissão das doenças, principalmente as pestes.

Peste Negra

A ira de Deus em vista dos pecados dos homens parecia, no século XIV, a única explicação possível para a série de golpes devastadores que abalaram todo o mundo conhecido. Durante o primeiro quarto do século, a Ásia foi atormentada por secas, enchentes e terremotos que provocaram uma fome sem precedentes. Na Europa, a mudança climática que começou na década de 1250 e tornou o clima mais frio e úmido teve seus efeitos mais nefastos sentidos no final do século XIII e início do XIV, com a perda sucessiva de colheitas e a fome generalizada que espalhou a doença e o desespero nas comunidades. Mas nada foi tão devastador como a peste negra, epidemia que, entre 1346 e 1352, assolou todo o continente e chegou a ceifar mais de um terço da população européia.

A peste negra é provocada pelo bacilo Pasturella pestis, descoberto somente em 1894. A doença se manifesta de três formas: a pneumônica, que ataca os pulmões; a septicêmica, que infecta a corrente sangüínea; e a bubônica, a mais comum, cujo nome deriva das tumefações do tamanho de um ovo, conhecidas como bubos ou bubões, que aparecem no pescoço, nas axilas ou nas virilhas do doente nos primeiros estágios da doença.

Os vetores do bacilo podem ser vários tipos de insetos hematófagos, que o transmitem através da picada. O mais comum destes vetores é a pulga Xenopsylla cheopis, que na época parasitava tanto o pequeno rato preto dos navios, o Rattus rattus, como o rato marrom, muito comum nos esgotos. O bacilo vive alternadamente no estômago da pulga e na corrente sangüínea do rato.
A doença era aterrorizante. Os bubões purgavam pus e sangue, e eram acompanhados por manchas escuras, resultantes de hemorragias internas. Os doentes sentiam dores muito fortes e geralmente morriam em até cinco dias após a manifestação dos primeiros sintomas. No caso da forma pneumônica, o doente tinha febre alta e constante, tosse forte, suores abundantes e escarro sangrento, e morriam em três dias ou menos.

A presença simultânea das três formas tornava o contágio rápido. Contava-se casos de pessoas que dormiam com saúde e morriam antes de acordar. A ignorância a respeito da verdadeira causa da doença e da forma de transmissão tornava impossível a prevenção e a cura. Esta ignorância levava a interpretações delirantes. As causas mais aceitas para a epidemia eram uma conjunção planetária ou simplesmente o castigo divino. Entre os possíveis responsáveis pela origem e disseminação da praga, os preferidos eram os judeus, que foram perseguidos e massacrados.

Os médicos receitavam poções exóticas e ineficientes. Os tratamentos mais comuns eram as sangrias, o lancetamento ou cauterização dos bubões, a purga com laxantes ou a aplicação de emplastros quentes.

A devastação causada pela peste diminuiu sensivelmente após 1350, embora a doença permanecesse no continente europeu, de forma endêmica, até o início do século XVIII. Sua marcha mortal pela Europa deixou seqüelas permanentes, que transformaram a relação entre as pessoas, abalaram a imagem de infalibilidade do clero, reforçaram a fé pessoal e aumentaram a popularidade de cultos místicos.

Lepra

Outra doença comum na Idade Média era a lepra, que foi durante muito tempo incurável e mutiladora, forçando o isolamento dos pacientes em leprosários, onde eram obrigados a carregar sinos para anunciar a sua presença.
Por falta de conhecimento mais específico sobre as doenças, havia na Idade Média uma dificuldade de se diagnosticar a lepra. Por isso, ela era muitas vezes confundida com outros tipos de enfermidades, principalmente com as de pele e venéreas. Partindo desta premissa, a segregação dos leprosos pode ser vista também como uma maneira empregada de afastar da sociedade um símbolo vivo da lascívia e da promiscuidade, pois a lepra era tida como um símbolo do pecado, como um sinal externo e visível de uma alma corroída pelo erro e, em especial, pela transgressão sexual.

A identificação do leproso era feita, inicialmente, através da denúncia. Qualquer pessoa que notasse uma doença de pele num vizinho, parente ou cônjuge, deveria indicá-lo à autoridade secular ou religiosa para que um tribunal fosse convocado.
O doente comparecia perante um júri composto por um médico, um preboste e um padre, que representavam a Ciência, o Estado e a Igreja. A pele do acusado sofria um exame minucioso e precisava passar por vários testes. O número de pessoas consideradas leprosas era grande. Uma vez estabelecida a natureza da lepra pelo tribunal, os leprosos eram excluídos da comunidade e de toda vida social. Em certos lugares eram realizadas cerimônias que solenizavam o dia da separação do leproso da sociedade. A leitura das proibições, como, por exemplo, entrar nos moinhos, tocar nos alimentos etc, acompanhava a entrega e benção das luvas, da matraca e da caixa das esmolas, elementos que o leproso deveria usar para que fosse rapidamente reconhecido pela sociedade.
As instituições específicas para o tratamento dos leprosos, os leprosários, nasceram em um contexto de crescimento das hostilidades para com estes doentes e em meio a convicção de que eles deveriam ser separados do convívio social. Esses estabelecimentos teriam atingido a seu apogeu no final do século XI e início do século XII e o seu declínio no final do século XIII.

Declínio

Além de estancar o processo de inovação, a peste negra foi um dos fatores que colocaram em xeque todo o modelo de sociedade que havia encontrado seu apogeu nos séculos anteriores. O século XV presenciou o início do florescimento artístico e cultural da Renascença.

A redescoberta de textos antigos foi aprimorada depois da Queda de Constantinopla, em meados do século XV, quando muitos eruditos bizantinos tiveram que buscar refúgio no ocidente, especialmente na Itália. Esse novo influxo alimentou o interesse crescente dos acadêmicos europeus pelos textos clássicos de períodos anteriores ao triunfo do Cristianismo na cultura européia. No século XVI já existe, paralelamente ao interesse pela civilização clássica, um menosprezo pela Idade Média, que passou a ser cada vez mais associada a expressões como “barbarismo”, “ignorância”, “escuridão”, “gótico”, “noite de mil anos” ou “sombrio”. Inicia-se o “renascimento” da humanidade.

Bibliografia

- MARTINS, Roberto de Andrade. Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis. São Paulo: Moderna, 1997.
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- HODGETT, Gerald A. J. História social e econômica da Idade Média. Rio de Janeiro, Zahar, 1975.
- PERROY, Édouard. História geral das civilizações. A Idade Média. São Paulo, Dif. Européia do Livro, 1957. t. 3, v., 2.

Revista Hebron

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