segunda-feira, 16 de novembro de 2009

A honra dos nobres (parte 2 - Final)

A honra dos nobres
No período do Antigo Regime, as querelas entre os membros da aristocracia eram resolvidas por meio de duelos. Esses combates, que envolviam uma série de regras, eram uma espécie de última instância para solucionar casos de honras ofendidas

POR MARCOS ANTONIO LOPES


A HONRA E O HOMEM CIVILIZADO MODERNO

A Idade Moderna, apesar do conteúdo inovador do Renascimento, conservou valores e princípios supersticiosos e obscurantistas em diversas dimensões da realidade cotidiana, bem como no plano das idéias. Apenas muito lentamente foi se formando o indivíduo moderno, como o cortesão descrito por Baldassare Castiglioni (1478-1529), o homem de boas maneiras, sofisticado nos gestos, na linguagem e nas roupas.14

A igreja esforçou-se para estabelecer uma educação severa, proibindo algumas manifestações, diferenciando o sagrado do profano. A partir dessas medidas, pequenos furtos (como mostra a imagem acima) e crimes passaram a serem vistos como errôneos

O novo homem que emergiu do processo civilizador da época moderna foi moldado pelas interdições do Estado absolutista às vinganças privadas, pelo incremento das embaixadas diplomáticas, pelo aparecimento dos manuais de boas maneiras – de que dá exemplo o humanista cristão Erasmo de Roterdã (1466-1536) – e por uma série de outros fatores. Montesquieu, por exemplo, percebeu esses movimentos de civilização dos costumes pelo ângulo das trocas entre as nações emergentes na Europa desde os inícios do século XVI. Ele diz: “não nos espantemos se nossos costumes são menos rudes que outrora. O comércio fez que o conhecimento dos costumes de todas as nações penetrasse em toda parte; compararam-se mutuamente e disso resultaram grandes benefícios”.15

O Leviatã – metáfora extraída da Bíblia pelo filósofo inglês Th omas Hobbes (1588-1679), para definir as novas funções do Estado moderno –, instaurou progressivamente a nova ordem pública e “decretou” o fim das desordens regionais, até então comumente expressas pelas revoltas camponesas, pelas rebeliões aristocráticas, pelas vinganças privadas, à revelia das leis civis. O avanço dos códigos civis modernos sobre os antigos costumes mandou nobres de alto coturno para o cadafalso. Como observa o historiador Robert Muchembled, à época dos reis absolutistas os nobres freqüentemente exprimiam, ainda, seu vínculo às leis da vingança, da honra e do sangue 16. O fato é que esse comportamento permitia- lhes diferenciar-se do universo burguês.

O duelo servia para solucionar controvérsias não passíveis de serem resolvidas por meios pacíficos

Como afirmou Hobbes, no Leviatã, o julgamento de todas as controvérsias deveria passar a pertencer à soberania do Estado, exclusivamente; e não há leis de honra que possam desconsiderá- la, haja vista que, ao poder soberano compete, também com exclusividade, “... conceder os títulos de honra e decidir qual a ordem de lugar e dignidade cabe a cada um, assim como quais os sinais de respeito, nos encontros públicos ou privados, que devem manifestar uns para com os outros”.17 Ao que parece, Hobbes não considerava a honra como a simples expressão de uma prerrogativa de casta, definida por redes hierárquicas. A sua idéia de honra, em uma concepção filosófica que prevê a atuação de um poder que a todos mantém sob rédeas curtas, carrega uma dimensão cívica voltada para a preservação de uma necessária e altamente desejada ordem pública em uma época de guerras civis.

A ARTE DO DUELO
Retratado em obras como Os três mosqueteiros, o combate chegou a ser considerado crime de lesa-majestade

As origens do duelo são antigas. A palavra vem do latim duellum, uma contração de duo (dois) e bellum (guerra). De acordo com o historiador francês François Billacois, o duelo é “uma luta entre dois ou vários indivíduos (mas sempre com número igual de rivais de ambos os lados), igualmente armados, com o propósito de provar a verdade ou o valor de uma questão disputada, a coragem e a honra de cada combatente”. Para ter em mente, um dos exemplos mais célebres de um duelo é o combate entre Aquiles e Heitor durante a lendária guerra de Tróia, narrada pelo poeta Homero.

Durante a Idade Média, os duelos eram travados mais comumente em torneios por homens montados em cavalos. Ao longo dos séculos XVI e XVII, essas batalhas estiveram ligadas essencialmente à aristocracia. Nobres de todas as hierarquias decidiam suas querelas segundo o padrão de uma justiça que ficou conhecida como a “jurisprudência dos sabres”. Obras literárias como História de Gil Blas de Santillana, de Alain-René Lesage (1668-1747), e Os três mosqueteiros, de Alexandre Dumas (1802-1870), são paradigmáticas deste tema.

Durante a Idade Moderna, o duelo tornou-se um combate organizado entre dois adversários, no qual o desafio era conhecido com antecedência. A definição do local do embate e das armas a serem utilizadas também eram aspectos previamente definidos. Travados na presença de testemunhas (também chamadas de “padrinhos”), normalmente em número de quatro pessoas, os duelos se prestavam à rápida resolução de lances de honra. A maior cruzada contra essa prática social foi desencadeada na época de Cardeal de Richelieu (1585-1642), primeiro-ministro do rei francês Luís XIII (1601-1643). O duelo passou a ser visto como afronta à autoridade dos tribunais e punido com a pena capital. Os duelos dizimavam a nobreza de sangue e, no reinado de Luís XIII, passaram a ser tipificados como crime de lesa-majestade. Mas apesar da ameaça de severos castigos, nem as leis seculares do Estado absolutista nem as interdições eclesiásticas conseguiram coibir tal fenômeno.

HONRA, DUELOS E LEIS

Foi no contexto da ascensão dos Estados modernos que os duelos passaram a ser percebidos pelo poder soberano como uma negação e, mais ainda, como uma afronta aberta à autoridade dos tribunais. Tratava-se de um desacato passível de punições exemplares. Com efeito, no reinado de Luís XIII, Cardeal de Richelieu (1585-1642) proibiu os duelos, com o estabelecimento da pena capital para os infratores da lei. Essa nova regra foi recebida em seu tempo como um atentado às antigas leis de nobreza – ao chamado “ponto de honra” ou “grito do sangue” –, em uma sociedade que tinha na bravura um de seus traços definidores.

Na imagem acima, a capa do livro Leviatã, do filósofo inglês Thomas Hobbes, publicado em 1651. A obra remete ao monstro bíblico Leviatã. Seu nome completo é Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil, trata da estrutura da sociedade organizada

Sob esse aspecto, a força das tradições se revela em toda a sua potência, já que a nova legislação – atropelando costumes reconhecidos por gerações – ainda não possuía autoridade bastante para assegurar a obediência de uma nobreza ciosa de suas prerrogativas. Assim sendo, as leis civis do Estado monárquico – ele próprio uma novidade histórica – necessitaram de um longo tempo para se tornarem reconhecidas. Essas barreiras culturais, que se opõem vigorosamente à obra dos legisladores, não são novidades da Idade Moderna. Lendo a obra de um sábio da Antiguidade, a Política, de Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.) – da qual a passagem acima poderia ser uma paráfrase –, percebe-se que entre leis consuetudinárias e leis civis, um clima de tensão quase sempre foi a regra.

O fato evidente é que o duelo servia para solucionar controvérsias não passíveis de serem resolvidas por meios pacíficos, normalmente devido à urgência de um contendor em decidir a sua pendência. Ao longo do Antigo Regime, pontos de honra eram comumente solucionados pelo manejo de instrumentos de morte. Não havendo a possibilidade de reconhecimento de um árbitro superior que decidisse sobre o mérito da querela, a justiça da causa pendia para o lado vitorioso no embate. Até o século XVII, tendia-se a ver nos resultados dos conflitos uma interferência misteriosa, quando a questão estava verdadeiramente na maior ou menor habilidade dos contendores com as armas escolhidas. Disso se apercebera Montesquieu ao afirmar que a razão não pode assistir um homem simplesmente porque é mais forte ou mais destro do que outro.18

Em um tempo de violência até então consentida pelos poderes constituídos – devido principalmente à ineficácia do aparelho repressivo do Estado monárquico emergente –, mesmo no espaço interno das igrejas assistiam-se a duelos mortais, o que exigia um trabalho constante de reconsagração desses ambientes pelos bispos. Nas igrejas, ao longo do Antigo Regime, entrava-se até mesmo a cavalo. Como explicam alguns historiadores, havia uma menor sensibilidade do homem dos séculos XVI e XVII em diferenciar o sagrado do profano. Somente com os esforços continuados da Igreja, por meio de uma educação vigilante e de uma série de interditos contra as profanações do espírito bárbaro da época, foi que se modificaram progressivamente certos comportamentos coletivos, como a proibição de festas e danças nos cemitérios

As reparações tinham de ser cobradas no calor da hora, na seqüência das injúrias cometidas pelo desafiante

A morte, sempre à espreita, só era temida quando de natureza violenta, ceifando a vida sem a preparação prévia da agonia, que enseja ao cristão repensar os desvios da existência, para alcançar a paz de consciência. Como ressalta o historiador francês Robert Muchembled, em casos de mortes em duelos, a estratégia do moribundo era compensar a falta da extrema-unção pelo perdão incondicional do agressor.19

Pintura de Jörg Breu d. Jüngere e Paulus Hector Mair, intitulada Combate Judicial em Augsburg. Eram normais duelos mortais em forma de decisão judiciária


A HONRA E O CÓDIGO DOS CONFRONTOS

Apesar de proibidos desde o século XVII, no reinado de Luís XIII, no século XIX essa regra ainda estava bem viva, e foi realçada pelo escritor francês Stendhal (1783-1842) no romance O vermelho e o negro: “... o duelo não passa de uma cerimônia. Tudo já é sabido antecipadamente, mesmo o que devem dizer ao tombar. Estendidos sobre o gramado, com a mão no coração, devem ter um perdão generoso para o adversário...”.20 No mesmo sentido vai a reflexão do escritor britânico Joseph Conrad (1857-1924), ao considerar que “um duelo – seja considerado uma cerimônia de culto à honra, seja reduzido, em sua essência moral, a uma modalidade de esporte viril –, requer a absoluta sinceridade das intenções, uma homicida austeridade de ânimo”.21

A interdição dos duelos continuou encontrando críticos na posteridade. Para aproveitar uma vez mais a riqueza temática de Do espírito das leis, é preciso dizer que seu autor, Montesquieu, um aristocrata do sudoeste da França, que em seus textos sempre se mostrou favorável ao abrandamento dos costumes rudes, apontou a desproporcionalidade da força empregada contra a desobediência de seus pares às normas baixadas pelo Estado régio, sob a liderança de Richelieu: “Quando se fez passar, no século passado, as leis capitais contra os duelos, bastaria talvez despojar um guerreiro dessa sua qualidade pela perda da mão, não havendo comumente nada mais triste para os homens do que sobreviver à perda de seu ofício”.22 Segundo Montesquieu, a mutilação do corpo de um aristocrata, em vez de sua execução, teria gerado resultado mais eficaz de respeito à nova lei.

No século XVII, os reis absolutistas assemelharam-se a “paladinos” da moderna justiça emergente, ao desenvolverem instrumentos mais eficazes de punição aos duelistas, e ao aplicarem mais ativamente a força coercitiva do aparato governamental contra a justiça privada: “... sob o absolutismo, os nobres vão bater-se cada vez menos. Não é mera coincidência que vá florescer, então, a etiqueta: ela é o meio pelo qual os reis vão domesticar a honra, fazendo-a fluir do trono em vez da iniciativa individual”.23

Ao longo do Antigo Regime, as vinganças privadas foram um aspecto marcante das relações sociais. Os “gritos do sangue” não esperavam por uma justiça que só se fazia sentir tardiamente: exigiam uma reparação imediata. “Comparável à morte”, escreveu a historiadora francesa Arlette Farge, “a desonra é um tema comum nos textos sobre a civilidade dos séculos XVII e XVIII”.24

Quadro O Duelo, de Juan Antonio Gonzalez (1842-1914)


A IMPORTÂNCIA DA HONRA E DOS CONFRONTOS

A simples sensação da honra ferida é uma tortura para um nobre personagem da obra História de Gil Blas de Santillana, de Lesage. Sem provas de uma grave infração cometida contra si, a ilustre figura aristocrática vive na tormenta de uma vaga suspeita de um crime de alcova. E o personagem se põe a cismar acerca de como são dolorosas as questões impostas pela honra.

A tolerância para com atitudes desonrosas era mínima ou mesmo nula. Como disse Lucien Febvre (1878-1956): “a honra (...) é uma força de ação e uma força que se afirma na ação e não na especulação. A honra engaja o homem na ação. Ela engaja imediatamente, totalmente, sem discussão ou tergiversação. A honra não espera. A honra não hesita”.25 Assim sendo, não havia tempo a perder esperando uma reabilitação da imagem pessoal ou familiar, cujos horizontes de possibilidades eram indeterminados. Então as reparações tinham de ser cobradas no calor da hora, na seqüência das injúrias cometidas pelo desafiante.

Como se referiu o fidalgo Don Alonso na peça de Molière, “a honra mortalmente ferida não pode ceder a considerações. A reflexão nos faz covardes. Se a ti te repugna emprestar o braço a esta ação, tens apenas de sair da frente, deixando só comigo a glória da reparação”.26

Em síntese, pode-se considerar que os duelos foram uma espécie de árbitro de uma elite aguerrida. Compunham a parte culminante das leis de nobreza do Antigo Regime constituindo-se em traço social diferenciador, pelo estabelecimento e fixação de distinções hierárquicas em uma época de muitas e sensíveis transformações. Mesmo perseguidos e alcançados pelas leis do Estado, os duelos permaneceram como um traço cultural atávico que, vindo de antigas tradições, estendeu-se no tempo e no espaço. Impulsionado pelos códigos de honra, há notícias de tais embates em regiões distantes da Europa, incluindo-se as Américas.27

REFERÊNCIAS

1 MOLIÈRE. Don Juan: o convidado de pedra. Porto Alegre: L&PM, 1997. p. 39.
2 Cf. LESAGE, Alain-René. História de Gil Blas de Santillana. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1999. p. 588.
3 CERVANTES, Miguel de. “A Senhora Cornélia”. In: ——. Novelas exemplares. São Paulo: Abril Cultural, 1970. p. 207.
4 CERVANTES, Miguel de. “A força do sangue”. In: ——. Novelas exemplares. Op. cit., p. 53.
5 CERVANTES, Miguel de. “A força do sangue”. In: ——. Novelas exemplares. Op. cit., p. 56.
6 Cf. LESAGE, Alain-René. História de Gil Blas de Santillana. p. 147. Considerada a partir da ficção literária, a honra feminina foi também retratada em muitas obras do século XIX. A título de informação, por se tratar de recentes leituras, lembro-me dos Contos italianos, de Gorki, e de A vendeta, de Balzac.
7 Cf. GORKI, Máximo. Contos italianos. Florianópolis: Garapuvu, 1998. p. 50.
8 ARIÈS, Philippe. O tempo da História. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989. p. 100.
9 Cf. DUBY, Georges. “História social e ideologias das sociedades”. In: Jacques Le Goff & Pierre Nora. (Org.). ——. História. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1978. p. 133.
10 MAQUIAVEL. Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio. Brasília: Editora UnB, 1981. p. 197.
11 MONTESQUIEU. Cartas persas. Belo Horizonte: Itatiaia, 1960. p. 167.
12 MONTESQUIEU. Do espírito das leis. São Paulo: Abril Cultural, 1979. p. 52.
13 Cf. BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Atena Editora, 1959.
14 Cf. BURKE, Peter. As fortunas d’o cortesão. São Paulo: Editora Unesp, 1997.
15 MONTESQUIEU. Op. cit., p. 283.
16 Cf. MUCHEMBLED, Robert. L’invention de l’homme moderne. Paris: Arthème Fayard, 1988.
17 HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Nova Cultural, 2004. p. 149s.
18 MONTESQUIEU. Cartas persas. Op. cit., p. 167.
19 Cf. MUCHEMBLED, Robert. Société, culture et mentalités dans la France Moderne. Paris: Armand Colin, 1993.
20 Cf. STENDHAL. O vermelho e o negro. São Paulo: Abril Cultural, 1981.
21 CONRAD, Joseph. Os duelistas. Porto Alegre: L & PM, 2008. p. 23.
22 MONTESQUIEU. Do espírito das leis. p. 436.
23 RIBEIRO, Renato Janine. “A honra e o sangue”. In: ——. A etiqueta no Antigo Regime. São Paulo: Moderna, 1999. p. 40.
24 FARGE, Arlette. “Famílias, a honra e o sigilo”. In: Roger Chartier. & Philippe Ariès. História da vida privada. p. 589.
25 FEBVRE, Lucien. “Honra para o moralista”. In: ——. Honra e pátria. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. p. 66.
26 MOLIÈRE. Don Juan: o convidado de pedra. Op. cit., p. 75.
27 VER GAYOL, Sandra. Honor y duelo em la Argentina moderna. Buenos Aires: Siglo XXI, 2008.

Revista Leituras da História

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