terça-feira, 10 de novembro de 2009

As Paralelas do café (parte 1)

As Paralelas do café
A semente da bebida negra moldou a economia do Sudeste e impulsionou a economia da região por meio das ferrovias

POR CELSO LUIS RODRIGUES VEGRO*


Basta os meteorologistas apontarem para um final de semana de muito sol com temperaturas elevadas para que a urbe paulistana se desloque em massa para o litoral. Atualmente, passar um fim de semana na praia é algo absolutamente trivial, pelo menos para os mais afortunados. Só que nem sempre foi assim. Até o século XVIII subir ou descer a Serra do Mar era uma aventura perigosa e cara, uma via crucis que só teria um fim quando a força mecânica da locomotiva encontrasse sua única motivação para superar a muralha natural: o café.

A caminho de Piratininga (onde em 25 de janeiro de 1554 seria fundada a cidade de São Paulo de Piratininga, atual São Paulo), Martim Afonso desembarcou no Porto de Piaçagüera (área no município paulista de Cubatão) em outubro de 1532, conforme retratado em óleo de Benedito Calixto existente no Palácio São Joaquim, no Rio de Janeiro, parcialmente reproduzido


O OBSTÁCULO DA COLÔNIA AO IMPÉRIO
Em seguimento do “Apóstolo do Brasil”, outro filho de Santo Inácio (o fundador da Companhia de Jesus) Pe. Fernão Cardim, chegou ao Brasil em 1583, acompanhando missão de visitação à colônia encabeçada por Cristóvão de Gouveia. Após percorrer incontáveis caminhos e estudar as diversas cidades brasileiras de então, resolveu visitar o Colégio de Piratininga para participar das festividades comemorativas de sua fundação. Partiu de São Vicente em 21 de janeiro de 1583 e percorreu uma outra picada (Passagem de Cubatão), que fora aberta com o intuito de “racionalizar” a viagem entre São Vicente e o Planalto, porém seu testemunho confirmou que se tratava “do pior caminho que poderia haver no mundo1”.

Desde o envio de exércitos para enfrentar as tentativas de invasão da cidade de Santos/São Vicente por parte de corsários holandeses e franceses até a apreensão de sal sonegado aos moradores das zonas costeiras e ribeirinhas, incontáveis outros acontecimentos históricos ocorreram graças à existência dos caminhos de ligação entre o litoral e o planalto. Dentre os mais marcantes, houve a travessia realizada por D. Pedro I e sua comitiva há exatos 185 anos. Extenuados pela difícil subida até o planalto, o grupo fez breve descanso às margens do rio Ipiranga, sendo ali alcançados por ofi- cial do correio vindo da corte fluminense. Ao receber a notícia de que deveria extinguir a Assembléia Constituinte, instituída pelo próprio imperador, e que iria redigir a Constituição Brasileira, o monarca declarou a Independência do Brasil às margens do famoso córrego (parte do caminho que terminava no centro velho da cidade de São Paulo).

SÉC. XV AO XVII: O PESADO CUSTO DO TRANSPORTE TROPEIRO
Ao longo de todo o período colonial, os caminhos ligando o litoral a São Paulo foram imensamente utilizados pelos nativos capturados incumbidos de realizar o transporte de açúcar, de trigo e de banha/toucinho tanto para o abastecimento dos habitantes da beira-mar e exportação para a metrópole, como de sal e tecidos em sentido contrário. Mais tarde, com a organização de tropas de mulas, os nativos foram substituídos pelos animais, como relata TAUNAY (1943) ao dizer que “ao centro distribuidor paulista vinham recorrer as solicitações das mais longínquas regiões brasileiras... as mulas de Sorocaba, trazidas por seus tropeiros, faziam milhas e milhas de quilômetros na vastidão brasileira”. O tropeirismo associado ao “quadrilátero do açúcar2”, formaram juntos a base da economia paulista do segundo quartel do século XVIII.


Rancho grande dos tropeiros (direita) (1775). Esse rancho foi concluído em 1837, no governo do conselheiro Gavião Peixoto (na então Província de São Paulo), cujo relatório oficial citava: “Ali encontravam enfim o abrigo de que tanto necessitavam os pobres tropeiros”

O desenvolvimento econômico impingiu aos tropeiros o pioneirismo no processo civilizatório do denominado “sertão”. Tal papel se acentuou com o surgimento e expansão da cafeicultura, pois seu serviço transformou-se na coluna de sustentação do novo sujeito social que passou a compor o tecido social brasileiro: o fazendeiro. A expansão dos cinturões cafeeiros foi de tal magnitude que se esgotaram as capacidades de reposição de muares destinados ao transporte da produção. A procura por bestas de carga cresceu tão rapidamente que seus preços dispararam na praça de Sorocaba.

“Além das despesas com o aluguel ou a aquisição, havia as de manutenção das tropas. As viagens demoradas obrigavam a paradas forçadas durante a noite para o repouso dos animais e das tropas, arreadores e carreiros, o que atrasava a marcha ainda mais. Descarregava-se a mercadoria, no dia seguinte novamente a carregavam. Nos ranchos, novas despesas com pousada, alimentação e forragem para os animais. Somavam-se a esses gastos os impostos das barreiras e os prejuízos eventuais decorrentes das viagens acidentadas, pelas más condições dos caminhos ou pela instabilidade climática dessas regiões, onde a qualquer momento uma chuva inesperada punha em risco a integridade da carga, prejudicando a qualidade do café e o seu preço em virtude da umidade que o atingia. Ao atravessar os lamaçais, as poças d’água, ao percorrer os desfiladeiros e encostas íngremes, muita carga se perdia, se deteriorava e, às vezes, os próprios animais extraviavam-se. Tudo isso acarretava, segundo cálculos da época, uma despesa correspondente a mais da terça parte do valor do café” 3.

Os custos envolvidos com a contratação de tropas para condução do café aos portos de embarque, fluminenses e paulistas, tornaram-se impraticáveis, especialmente se considerarmos a capacidade líquida de cada jacá transportado. Estimar um custo de produção sob a vigência do trabalho servil é verdadeiramente uma aberração, mas houve quem apontasse entre um terço e metade, a participação do transporte no preço final recebido pela arroba de café. Assim, surgiu enorme pressão dos fazendeiros para que os caminhos para o litoral fossem menos árduos para a realização dos carretos e, conseqüentemente, houvesse barateamento dos custos envolvidos.

OS TROPEIROS
“Hoje o berrante está calado/ já não toca, não, meu senhor/ Veio a marcha do progresso/ Deixou o cavalo- vapor” dita a Sinfonia do Tropeiro, versos que resgatam a extinção do tropeirismo, inviabilizado aos poucos, consequência da epidemia de febre amarela e a chegada do trem. O tropeiro, transportador de mercadorias entre as regiões produtoras e os centros consumidores, exerceu não só um fundamental papel econômico como também cultural, ao posicionar-se como veiculador de idéias e notícias. Algumas tantas cidades do Brasil, como Sorocaba e São Vicente, desenvolveram-se grandemente devido o trânsito de animais de carga; a primeira, por exemplo, teve na sua Feira de Muares um importante ponto de comércio de animais. Associado a ele, veio o capital e o financiamento da indústria de algodão e da seda.*



O engenheiro João da Costa Ferreira foi incumbido de projetar a pavimentação da Estrada da Serra de Cubatão, no ano de 1790, e o fez calçando o caminho com lajes em zigue-zague. Pelo alívio que o projeto trouxe aos pés dos cidadão paulistanos, Ferreira foi homenageado com um monumento comemorativo. Abaixo, o mapa do caminho antes das ferrovias (destacado em vermelho).
1788 – 1854: A ESTRADA E OS PRIMEIROS TRILHOS
Sob o mando do 5o Capitão Geral de São Paulo, Bernardo José de Lorena, que exerceu o seu governo entre 1788 e 1797, foi conduzido o primeiro esforço de regularizar o trajeto, tornando-o carroçável. Ao revestir todo o caminho com macadame, uma mistura de pedras britadas, breu e areia, o percurso pôde não apenas ser transposto pelas tradicionais mulas, como também pelos carretos puxados por parelhas de bois. Frei Gaspar da Madre de Deus, um recorrente usuário do caminho, em carta ao governador Lorena, elogiou o trabalho efetuado com as seguintes palavras: “se não tivera certeza de que me conduziam pelo caminho de São Paulo, não haveria de acreditar que a Serra é a mesma por onde eu havia feito seis viagens”4. A “Calçada do Lorena”, serviu de caminho principal para as tropas rumo ao litoral e vice-versa, por pelo menos 70 anos, escoando tanto o café do sertão (Jundiaí, Campinas) como do já próspero Vale do Paraíba. Com as obras da “Estrada da Maioridade”, trecho de pontes e aterros sobre os manguezais de Cubatão, a estrada foi definitivamente concluída. Por meio dessa calçada, pôde a cidade de Santos iniciar sua escalada enquanto principal porto de escoamento do café, firmando-a como o mais importante local de comércio de café no mundo, conquista que se mantém até o presente.

O calçamento do caminho trouxe impacto imediato para toda a economia cafeeira paulista, porém a avalanche de mulas carregadas, principalmente com café, não arrefecia, mas ao contrário, exibia extraordinário ímpeto. Foi nessa época que São Paulo conheceu seus primeiros congestionamentos, pois a interrupção do tráfego era freqüente: às vezes para ceder a passagem para comitivas maiores ou até para resgatar animais que despencavam da serra.

A possibilidade de prover o País de estradas de ferro foi cogitada pelas autoridades do governo imperial logo após o invento surgir na Inglaterra5. A Lei Feijó promulgada em 1835, de autoria do então regente Diogo Antonio Feijó que comandou o Império durante a minoridade do sucessor ao trono brasileiro, Pedro II, instituía algumas vantagens6 para os eventuais empreendedores interessados em realizar estudos visando à construção de ferrovias no Brasil. A dificuldade em angariar capitais (na maior parte comprometidos com a compra de escravos para as lavouras em plena expansão) e a falta de experiência em projetos de engenharia conduziu ao fracasso essa primeira tentativa em criar uma malha ferroviária. Foram necessários cerca de 20 anos para o sonho ferroviário ganhar concreção.

DESGOVERNO DO PROGRESSO
“Se o sistema ferroviário muito contribui para a urbanização e o desenvolvimento do parque industrial brasileiro - antes da construção da ferrovia São Paulo Railway, pouco se atestava a existência de fábricas dentro do perímetro urbano de São Paulo, por exemplo - a decadência do meio de transporte expôs localidades inteiras à carência estrutural. Talvez uma das cidades mais atingidas pelo progresso aleatório advindo do surto ferroviário seja Cubatão, que ainda hoje ostenta a fisionomia de uma cidade improvisada em função da indústria. À época, a oferta de empregos desencadeou um processo migratório espantoso. Em 1940, a população era de 1.887 habitantes; em 1960, 18.885, em 1970, 51.155. Sem infra-estrutura suficiente para abarcar esse contigente, o volume populacional foi se adequando de forma ingrata às condições da região. As consequências foram amargas: a explosão de um oleoduto em 1984 vitima 96 moradores de um bairro cubatense; a cidade bate recordes mundias de doenças feto-degenerativas advindas da poluição; os deslizamentos constantes da Serra devido à desestabilização das encostas.”*


Neste quadro, o cais do porto santista em fase de aterramento, e a presença da linha férrea da São Paulo Railway, o que data a imagem do final do século XIX
Em 1852 foi reeditada a lei de incentivo ao desenvolvimento ferroviário, a qual, além de revalidar as vantagens anteriores, foi acrescida dos privilégios de zona e do pagamento de juros. Nesses moldes, o investimento tornou-se mais interessante, especialmente por ocorrer após a proibição do tráfico negreiro7. Um dos primeiros a mostrar efetivo interesse na construção de uma linha ferroviária foi o arrojado empreendedor Irineu Evangelista de Souza, conhecido por Barão e depois Visconde de Mauá. A Raiz da Serra, nome dado à ferrovia de 14,5 km, inaugurada em 1854, ligava a região portuária da Baia de Guanabara (Praça. Mauá) até o sopé da serra de Petrópolis8. As dificuldades em transpor a serra não o desestimularam, mas, ao contrário, tratou o empresário de construir estrada de rodagem entre Juiz de Fora e Petrópolis (chamada de União e Indústria) aguardando o momento ideal para empreender a imensa tarefa de transpor com seus trilhos os 800 metros de desnível que separavam o litoral da estrada. A demora em concluir a União e Indústria desestimulou a utilização da Raiz da Serra que, isoladamente, não era economicamente viável. Ademais, o traçado da ferrovia desconsiderava o principal cinturão cafeeiro do sul fluminense com pólo na cidade de Vassouras, fato que contribuiu para o esvaziamento do projeto do empresário. O ideal abolicionista e pró-indústria de Mauá granjeou grande hostilidade de incrédulos retrógrados com voz ativa junto ao governo imperial. Aos poucos, o patrimônio do Barão foi consumido por empreendimentos deficitários e amortização de dívidas que contraiu. Como denota MATOS (1974), “a primeira fase9, como sempre acontece, é a dos ensaios malogrados, cujo grande mérito consiste em preparar o terreno para futuras realizações”.

"É de enfunar o peito a impressão de quem PELA PRIMEIRA VEZ navega sobre o oceano verde-escuro. Horas a fio, num Pullman da Paulista ou num carro da Mogiana, a CORTAR UM CAFEZAL SÓ – milhões e milhões de pés que ondulam por morro e vale até se perderam no horizonte CONFUNDIDOS COM O CÉU"
Monteiro Lobato, A Onda Verde, 1920.

A estação da Raiz da Serra da Estrada de Ferro Santos-Jundiaí, por volta de 1910. Acima à esquerda a cidade de Cubatão, que se desenvolveu a partir da ferrovia


FIM DO SÉC. XIX: O CAFÉ EXIGE A RAILWAY
Em meados do século XIX, a província de São Paulo exibia importantes saltos na produção cafeeira. Enquanto a produtividade do tradicional cinturão cafeeiro do Vale do Paraíba tendia ao declínio, a abundância de solos argilosos de média e alta fertilidade outorgava grande produtividade para as lavouras recém- implantadas na fronteira oeste (Campinas e adjacências)10. Em 1860, cerca de 10% da produção brasileira de café tinha sua origem no oeste paulista. Tornou-se imperativo encontrar formas econômicas de escoamento dessa produção para o único porto capaz de recebê-la: o de Santos. Assim, sob concessão imperial, sociedade de capitalistas ingleses, cafeicultores paulistas e, inclusive, o Barão de Mauá, articulou um pool que conduziu a construção da São Paulo Railway (atualmente Santos-Jundiaí). O projeto impraticável da Raiz da Serra foi nesse momento posto à prova, pois os empreendedores tinham diante de si os mesmos 800 metros de desnível que separavam o porto da cidade de São Paulo.

MALHAS PELO MUNDO


“Em 27 de setembro de 1825 foi concebida a primeira ferrovia pública de tração a vapor da história, a inglesa Companhia Estrada de Ferro Stockton & Darlington. George Stephenson finalmente provava aos ingleses que uma locomotiva a vapor era capaz de conduzir uma composição ferroviária. A conquista encorajou os comerciantes de Manchester a apostar na idéia: a “Liverpool & Manchester Railway”, precursora da Era das Ferrovias, encurtou a barreira entre cidades. O revolucionário poder econômico do meio era inquestionável. Em 1930, as fronteiras internacionais não mais seguravam os trilhos: França e Estados Unidos já construíam suas malhas. Os latinos apostariam no cavalo a vapor 7 anos mais tarde, com a cubana Habana a Guines. Peru e Chile vieram em seguida: 1851 e 1852. O Brasil abraçou a idéia em 1854.”*

Revista Leituras da História

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