Carregando a cruz, cristãos da cidade juntam-se a estrangeiros na Sexta-Feira Santa, ao longo do trajeto de Jesus na Cidade Velha. Outrora hegemônicos, hoje os cristãos árabes são uma minoria menosprezada.
Foto de Ed Kashi
National Geographic
Foto de Ed Kashi
National Geographic
Toda forma de fé
Diversidade religiosa é a marca dos imigrantes árabes. Maronitas, ortodoxos ou muçulmanos, suas igrejas seguem firmes até hoje
Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto
Pensar que todo árabe é muçulmano é um equívoco recorrente ainda hoje. Os povos árabes do Oriente Médio ostentam uma enorme diversidade de tradições e crenças cristãs, muçulmanas e judaicas. Os milhares de imigrantes sírios, libaneses e palestinos que desembarcaram no país entre o fim do século XIX e as primeiras décadas do XX contribuíram para ampliar a pluralidade religiosa na sociedade brasileira.
Até meados do século XX, a imigração proveniente do Oriente Médio foi predominantemente cristã. Maronitas, melquitas, ortodoxos do rito antioquino, siríacos, católicos romanos e protestantes. A maioria dos libaneses era maronita, enquanto os sírios costumavam ser ortodoxos. Entre 1908 e 1941, 65% dos sírio-libaneses que entraram pelo porto de Santos eram maronitas, melquitas e católicos romanos, 20% eram cristãos ortodoxos e 15%, muçulmanos. Estes podiam ser sunitas, xiitas, alauítas ou druzos. Havia ainda imigrantes judeus de fala e cultura árabe.
A preservação da identidade religiosa era importante para aqueles que permaneciam ligados à comunidade sírio-libanesa ou mantinham laços com o território de origem. Já no início do século XX, diferentes instituições religiosas começaram a ser criadas pelos árabes no Brasil. No início eram sociedades beneficentes, sociedades de senhoras e “centros de juventude”, para só depois inaugurarem seus locais de culto. A intenção era promover formas de solidariedade entre os membros e compartilhar suas tradições com as novas gerações. Os ritos e dogmas das igrejas orientais, no entanto, causavam estranhamento na sociedade brasileira, que pressionava os imigrantes árabes a adotarem as práticas do catolicismo romano.
A comunidade ortodoxa foi uma das primeiras a criar instituições próprias no Brasil. Cristã, mas não católica, ela contava com recursos transnacionais da Igreja Ortodoxa Antioquina, cuja origem remete aos primórdios do cristianismo. Liderada pelo Patriarca de Antióquia, foi controlada por monges gregos até o século XIX, quando o surgimento dos ideais de nacionalismo entre os árabes levou à eleição de um patriarca dessa origem. Na mesma época, a Igreja Antioquina também estabeleceu relações com a Rússia, o que levou a um processo de renovação religiosa em língua árabe. Foi a casa real da dinastia russa dos Romanov que financiou, em 1917, a construção do primeiro templo ortodoxo do Brasil: a Igreja de São Nicolau, no Rio de Janeiro. Mas desde 1897 essa comunidade já possuía uma sociedade própria, em São Paulo. Hoje os ortodoxos se organizam em torno de dois arquimandritas (representantes patriarcais) – um no Rio e outro em São Paulo – com jurisdição sobre paróquias lideradas por padres em outros estados: Paraná, Goiás, Rio Grande do Sul e Minas Gerais. A liturgia era inicialmente feita em árabe com trechos em grego, mas desde 1938 é celebrada em português, embora tenham sido mantidos trechos em árabe e grego e os cantos que a caracterizam. A adoção do português mostra a crescente importância da segunda e da terceira geração de descendentes de imigrantes.
A primeira Sociedade Maronita de Beneficência também surgiu em 1897, em São Paulo, e o templo foi erguido seis anos depois. A liturgia maronita se parece bastante com a dos católicos romanos, mas é conduzida com ritual próprio em português, com trechos em aramaico. Essa Igreja deriva da pregação de São Marun, que viveu no século IV na Síria. Como os cristãos ortodoxos perseguiam os maronitas como heréticos, eles se refugiaram no Monte Líbano e criaram sua Igreja a partir do século VII. Durante as Cruzadas, os maronitas entraram em contato com o catolicismo romano, e no século XV aceitaram a autoridade papal, preservando, porém, sua autonomia eclesiástica.
Os melquitas, também católicos, tiveram presença importante entre os imigrantes árabes desde o século XIX, mas demoraram a afirmar sua autonomia dentro do catolicismo brasileiro – sua primeira igreja, a de São Basílio, no Rio de Janeiro, seria erguida apenas em 1941. Desde então, surgiram templos também em São Paulo, Minas Gerais e Ceará. A palavra melquita vem do árabe maliki, que quer dizer “aquele [fiel] ao rei/imperador”. Este era o nome original dos ortodoxos, cristãos fiéis ao imperador bizantino. Após um cisma na Igreja Ortodoxa, no século XVIII parte do clero e seus fiéis aceitaram a autoridade papal, mantendo suas diferenças litúrgicas. Formou-se assim a Igreja Melquita, com sede em Damasco. As cerimônias melquitas são celebradas em português, com algumas passagens em árabe.
Outras comunidades religiosas menos numerosas também se organizaram na primeira metade do século XX, como os judeus sírios no Rio de Janeiro, os árabes protestantes em São Paulo e os cristãos siríacos (sirian) em São Paulo e Belo Horizonte.
Os árabes muçulmanos criaram suas instituições religiosas mais tardiamente que os cristãos. A Sociedade Beneficente Muçulmana de São Paulo foi criada em 1929. Embora fosse marcadamente sunita, ela também era referência para os xiitas, que não contavam com uma instituição própria. Essas duas correntes sectárias do Islã surgiram após a morte de Maomé, no século VII. Os sunitas foram os que aceitaram a sucessão do profeta por Abu Bakr, que durante o exílio de Maomé havia sido encarregado por ele de dirigir as orações comunitárias em seu lugar. O termo sunita provém de sunna al-nabi e significa “tradição do profeta”. Os sunitas correspondem a cerca de 85% dos muçulmanos de todo o mundo. Os xiitas – “partido de Ali” – defendiam que a liderança da religião deveria ser exercida por descendentes de Maomé. Ali era primo e genro do profeta. Em São Paulo, os rituais islâmicos, como as orações diárias e a festa do fim do Ramadan (mês do jejum), eram celebrados no salão da Sociedade Beneficente até 1950, quando passaram a ocupar a Mesquita Brasil, a primeira do país, cuja construção se estendeu de 1942 a 1960.
Como não se identificam com a interpretação do Islã praticada pelos sunitas, os muçulmanos druzos e alauítas também criaram suas próprias instituições. Os alauítas são uma seita xiita que segue os ensinamentos de Muhammad Ibn Nusayr, um discípulo do 11º Imã (descendente de Maomé). A Sociedade Beneficente Alauíta foi fundada em 1931 no Rio de Janeiro. Os druzos, que se autodenominam “unitaristas”, surgiram no século X e têm uma interpretação esotérica do Islã. Possuem doutrinas que lhes são específicas, como a crença na reencarnação. Como a principal área de imigração dos druzos foi Minas Gerais, lá se concentraram suas instituições. Em 1929, foi fundada a Sociedade Beneficente Druziense em Oliveira (MG), transferida para Belo Horizonte em 1956. Em 1969, foi criado o Lar Druzo Brasileiro em São Paulo, e mais recentemente, um Lar Druzo em Foz do Iguaçu.
A vinda de árabes para o Brasil entrou em declínio após 1940, devido a medidas restritivas do governo brasileiro, que impôs cotas à imigração, e à independência da Síria e do Líbano. Porém, com a guerra civil libanesa (1975-1990), as guerras árabe-israelenses, a ocupação israelense dos territórios palestinos e do sul do Líbano (1982-2000) e a crise econômica, novas levas migratórias chegaram ao Brasil a partir dos anos 1970. Desta vez, eram muçulmanos em sua maioria. Nas últimas duas décadas, foram erguidas mesquitas sunitas no Paraná, em São Paulo, Mato Grosso, Goiás e Minas Gerais. A do Rio de Janeiro só passou a abrigar as orações em 2007, estando ainda em construção. Mesquitas xiitas também foram construídas em São Paulo e Foz do Iguaçu. Algumas comunidades muçulmanas, como a de Curitiba, tornaram-se mistas sunita/xiita.
Desde a década de 1990, cresce também o número de brasileiros não árabes convertidos ao Islã e, em menor escala, às igrejas Ortodoxa e Maronita. O português passou a ser adotado no sermão das sextas-feiras em comunidades muçulmanas com grande número de convertidos, como a do Rio de Janeiro, e é crescente a oferta de cursos de língua árabe. A entrada de brasileiros não árabes nas comunidades religiosas criadas pelos imigrantes árabes mostra como elas já fazem parte da paisagem religiosa da sociedade brasileira.
Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto é professor de Antropologia na Universidade Federal Fluminense (UFF) e coordenador do Núcleo de Estudos sobre o Oriente Médio (Neom/UFF).
Saiba Mais - Bibliografia:
KARAM, John. Um Outro Arabesco: Etnicidade Sírio-Libanesa no Brasil Neoliberal. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
KNOWLTON, Clark. Sírios e Libaneses: Mobilidade Social e Espacial. São Paulo: Anhambi, 1960.
LESSER, Jeffrey. A Negociação da Identidade Nacional: Imigrantes e Minorias e a Luta pela Etnicidade no Brasil. São Paulo: Unesp, 2001.
SAFADY, Jorge. “A Imigração Árabe no Brasil (1880-1971). Tese de doutorado em História: FFLCH/USP, 1972.
Revista de Historia da Biblioteca Nacional
Esse é o homem e a sua cultura. Muito bom o texto. Parabéns pelo blog!
ResponderExcluirAbraços, :-)