quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Sobre as origens e o desenvolvimento do estado moderno no ocidente*


Modesto Florenzano
Professor do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP



RESUMO

O texto discute o problema da formação do Estado moderno no Ocidente e está organizado em quatro partes. Primeiramente, aborda-se o Estado em termos teóricos e gerais e de um ponto de vista que concerne mais às Ciências Sociais do que à História. A segunda parte, de caráter essencialmente historiográfico, mostra como o Estado absolutista foi interpretado pelos historiadores. Na terceira e quarta partes, examina-se a origem do Estado moderno na Itália, particularmente em Veneza e Florença, e seu desenvolvimento na França e Inglaterra. O texto estabelece também paralelos entre os Estados mencionados.

Palavras-Chave: Estado moderno; Medievo; Estado absolutista; Monarquia; República.



I

Na Introdução à sua A ética protestante e o espírito do capitalismo, Max Weber também incluiu o Estado ao lado do capitalismo e daqueles fenômenos culturais, que, por serem encontradiços em outros espaços e tempos, não podem ser considerados como uma criação exclusiva da Civilização Ocidental. Mas Weber procurou justamente demonstrar que somente na Civilização Ocidental teve lugar o desenvolvimento de um capitalismo racional, de fenômenos culturais dotados de "universal[idade] em seu valor e significado", e o desenvolvimento de um Estado como uma "entidade política, com uma 'Constituição' racionalmente redigida, um Direito racionalmente ordenado, e uma administração orientada por regras racionais, as leis, e administrado por funcionários especializados"1.

Dessa descrição de Weber, segue-se que o Estado, tomado em sentido estrito, como entidade política, dotado de todos aqueles atributos acima lembrados, não se encontra plenamente desenvolvido nem mesmo no Ocidente antes do século XVIII, mas tomado em sentido lato, como entidade de poder e/ou dominação, encontra-se em muitos outros lugares e épocas. Assim, dir-se-ia que para a instituição Estado vale, mais ainda, aquilo que K. Marx e Weber, de perspectivas opostas, disseram do capital e do capitalismo em geral, ou seja e respectivamente, que é ante-diluviano e pode ser encontrado em todas as sociedades em que existe dinheiro.

Marx, sem esquecer F. Engels, diria que assim é, porque todas as sociedades, excluindo as chamadas sociedades primitivas, se dividem em classes, tornando o Estado necessário para permitir a exploração-dominação de uma classe sobre outras, de modo que luta de classes e Estado formam um par historicamente inseparável que somente sairá de cena conjunta e definitivamente com o fim da história.

Sobre as sociedades sem Estado, o antropólogo francês, já falecido, Pierre Clastres, com base em suas pesquisas sobre os índios guaranis da América do Sul e em sua leitura do Discurso da servidão voluntária, escrito no século XVI, por Etienne de la Boétie, avançou, em 1974, uma tese especulativa, com sabor anarquista e que, ao mesmo tempo, faz lembrar o Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, de J. J. Rousseau. Segundo Clastres, as sociedades primitivas, tanto as extintas quanto as sobreviventes, teriam permanecido nessa condição por opção, por terem se recusado a criar, deliberadamente, o Estado e tudo o que de inominável este acarreta. De onde segue-se que a sua invenção foi, nas palavras desse antropólogo, "o momento histórico do nascimento da História, essa ruptura fatal que jamais deveria ter-se produzido, o acontecimento irracional que nós modernos nomeamos, de modo semelhante, o nascimento do Estado"2. Se a tese de Clastres é fantasiosa, o discurso de La Boétie é ingênuo, não permitindo avançar no conhecimento da política e do Estado; daí porque depois de um pequeno e passageiro furor causado por sua reedição, furor que, salvo engano, ficou restrito à França e ao Brasil, o discurso de La Boétie recaiu no limbo que o acompanha desde sempre.

Começamos essa exposição sobre o Estado moderno citando Weber e Marx, tendo em vista que as suas teorias sociais estão entre as mais abrangentes, entre as que mais marcaram o pensamento e a historiografia do século XX, e entre as mais contrastantes. Com efeito, por um lado, Marx-Engels e os marxistas, levados por sua visão negativa do poder instituído, preocuparam-se sobretudo em examinar o caráter classista do Estado, em minimizar sua autonomia com relação às classes sociais, em denunciar, portanto, sua suposta neutralidade. Aí reside, sem dúvida, sua grande contribuição, como se pode ver nos escritos dos dois fundadores do materialismo histórico, sobre as Revoluções de 1848 na França e na Alemanha, e nos trabalhos de dois marxistas do século XX, o russo Boris Porchnev, sobre o absolutismo francês, e o inglês Perry Anderson, sobre o absolutismo em geral3. Mas aí reside, igualmente, seu ponto fraco, sua subestimação das formas do Estado, em particular do Estado constitucional ou de direito (que os marxistas designam pejorativamente de Estado burguês), de seu funcionamento complexo, consagrando valores e práticas de civilização, cujo abandono não é menos que desastroso, como mostraram as experiências totalitárias do século passado. Nesse sentido, veja-se a seguinte frase do historiador marxista inglês Christopher Hill: "A monarquia absolutista foi uma forma de monarquia feudal diferente da monarquia de suserania feudal que a precedera; mas a classe dominante permaneceu a mesma, tal como uma república, uma monarquia constitucional, e uma ditadura fascista podem ser todas formas de dominação da burguesia". Essa frase, escrita em 1953, e reproduzida cerca de vinte anos depois e sem nenhum reparo por outro marxista, P. Anderson, em seu livro Linhagens do Estado absolutista, presta-se admiravelmente à crítica segundo a qual o marxismo, quando menos, incorreu no pecado de não ter dado a devida importância ao que chama depreciativamente de liberdades formais, jogando fora, assim, a criança junto com a água do banho. Por outro lado, Weber, enfatizando justamente a dimensão institucional do Estado, as formas e modalidades do poder instituído e de seus mecanismos de burocratização, deixou-nos, ao contrário do marxismo, uma elaborada teoria do Estado, em particular, e do poder em geral, contribuindo, como nenhum outro teórico, para o avanço da ciência política no século passado; daí por que Norberto Bobbio o tratou como o último grande clássico do pensamento político. Weber, contudo, não obstante seu esforço para construir uma teoria do Estado, a mais objetiva possível, não deixou nunca de cultuar valores políticos que privilegiaram a unidade estatal nacional, a consciência daquela unidade coletiva que é o povo ou a nação. Como se pode ver pela seguinte afirmação, extraída de uma sua aula inaugural proferida em 1895 e intitulada "Der Nationalstaat und die Volkswirtschaftspolitik (O Estado nacional e a economia política)": "Aos nossos descendentes não devemos legar paz e felicidade humana, mas a luta eterna pela preservação e educação de nosso caráter nacional... Os interesses políticos do poder da nação são, quando estão envolvidos, os interesses finais e decisivos [...]"4.

Tendo em vista essa valorização do Estado nacional, não seria errado considerar Weber como herdeiro e como continuador do filósofo G. W. F. Hegel e do historiador L. von Ranke, espécies de pais espirituais de toda a moderna historiografia liberal-conservadora alemã, que glorifica o Estado, concebendo-o como manifestação do universalracional, contendo, nas palavras de Hegel, "em si e para si a totalidade ética, a realização da liberdade", e como manifestação daquilo que Ranke definiu como a "essência espiritual" própria de cada Estado nacional. Como bem observou Nicola Matteucci, em Lo Stato moderno, foi somente no século XIX, por meio da cultura alemã, que o termo Estado adquiriu a sua centralidade. Antes de Hegel, nas palavras de Matteucci, "quando se quer indicar o momento vertical do poder, fala-se de governo, de rei, de assembléia, sempre entendidos porém como estruturas a serviço da comunidade, da republica. Também Hobbes, mesmo que teórico do absolutismo, não utiliza o termo State, preferindo o de Common-Wealth. Até o final do século XVIII não há um clássico do pensamento político que traga no frontispício o termo Estado; o qual falta – como verbete – também na Enciclopédia de Diderot e d'Alembert"5.



II

Como quer que seja, a questão da origem e do desenvolvimento do Estado moderno na Europa Ocidental, foi tratada pela historiografia do século XIX, e da primeira metade do século XX, de tal maneira que acabou por se confundir, por um lado, com a questão da formação do sentimento nacional e da nacionalidade, e, por outro lado, simultaneamente, com a questão do próprio advento da modernidade, aparecendo o Estado como portador e realizador de ambas6. Por sua vez, como esse Estado nacional, em praticamente todos os lugares onde se configurou plenamente o fez sob forma monárquica e absolutista, monarquia e absolutismo remetem, na ponta ascendente de sua trajetória histórica, à sua relação com o feudalismo e o fim da Idade Média, e, na ponta descendente, à sua relação com o capitalismo e o inicio da Idade Contemporânea (ou fim da Primeira Idade Moderna).

Por tudo isso, não surpreende a ausência de consenso entre os historiadores sobre o Estado moderno, ou, o que dá no mesmo, sobre a monarquia nacional absolutista, inclusive na historiografia atual, sobretudo quando se trata da Europa em geral e não de um país em particular. Essa ausência de consenso se manifesta com relação quer ao momento do aparecimento do Estado moderno, quer ao nome que a ele se deve dar, quer, ainda, ao porquê do seu aparecimento.

Sobre o momento do surgimento do Estado moderno, a maioria dos historiadores atuais considera que isso ocorreu em meados do século XVI, dividindo-se a minoria restante entre os que retardam para o XVII a sua ocorrência e os que a antecipam para o século XV, atribuindo aos Estados italianos do quattrocento o mérito da primazia7. Com relação ao nome a ser dado a esse tipo de Estado, destaque-se o fato de que enquanto alguns historiadores falam simplesmente em Estado ou monarquia moderna, vista já como absolutista, outros, como é o caso sobretudo dos historiadores alemães e sobretudo a partir de Otto von Gierke e Weber, falam em Ständestaat, isto é, em Estados ou monarquias de estados, que também podemos traduzir por Estado corporativo ou de ordens, que teria sido dominante na Europa entre os séculos XIV e XVI, quando os reis governam com o apoio, mas também com a resistência, desses órgãos representativos das diversas ordens ou camadas sociais do reino, cuja origem é obscura e cujos nomes variam de um lugar para o outro (Cortes em Portugal e na Espanha, Estados Gerais, na França, Parlamento na Inglaterra etc.). Dissemos apoio e resistência tendo em vista que, como bem lembrou Bobbio, "o contraste entre os estados e o príncipe, especialmente para estabelecer quem tem o direito de imposição fiscal, constitui grande parte da história e do desenvolvimento do Estado moderno"8.

Contudo, é sobre o porquê do aparecimento do Estado absolutista que, na historiografia dos últimos cinqüenta anos, prosperaram as posições mais contrastantes, com interpretações que atribuem um papel determinante ou à guerra, ou à religião, ou ainda à luta de classes, ou, por último, em uma espécie de volta completa, à própria política tout-court 9. Na historiografia do Estado moderno dos últimos cinqüenta anos, um lugar de destaque merece ser dado a dois artigos, o primeiro escrito a duas mãos, pelo historiador francês Roland Mousnier e pelo historiador alemão Fritz Hartung, e intitulado "Quelques problemes concernant la monarchie absolue", e o segundo, pelo historiador italiano Federico Chabod, intitulado "Y a-t-il un État de la Renaissance?"10.

Apresentados, respectivamente, em 1955 e 1956, esses dois artigos são parte da profunda renovação que, nessa década, se fez sentir não apenas no terreno do Estado, mas em todos os demais grandes temas da chamada história moderna. Com efeito, é na década de 1950 que se assiste a muitas e significativas novidades nesse canteiro. Para lembrar as mais conspícuas: a polêmica sobre a transição feudalismo-capitalismo; a polêmica sobre a crise geral do século XVII; o início do revisionismo tanto na historiografia da Revolução inglesa de 1640, quanto da francesa de 1789; o aparecimento de livros extraordinários, que renovaram profundamente nosso conhecimento do Renascimento e do humanismo, como o do historiador da arte Erwin Panofsky, e, sobretudo, o do historiador do humanismo florentino Hans Baron, que irá servir de fundamento para a constituição de um novo paradigma interpretativo, hoje em plena moda, chamado humanismo cívico ou republicanismo clássico11.

Coincidentemente, nessa mesma década de 1950, O Antigo Regime e a Revolução, de Aléxis de Tocqueville, e A Cultura do Renascimento na Itália, de Jacob Burckhardt, chegavam ao centenário; aliás o livro de Tocqueville comemora agora o sesquicentenário e o de Burckhardt o fará daqui a quatro anos. É impossível exagerar a importância dessas duas obras-primas, sobretudo em se tratando da história moderna como um todo. Pois basta lembrar que se deve a esses dois livros a constituição dos dois objetos históricos que emolduram a história moderna, ou seja, o Renascimento e o Antigo Regime.

Voltemos ao artigo de Mousnier e Hartung que acabou por se tornar uma espécie de referência obrigatória para todos os estudiosos do tema do absolutismo. Nesse texto, os dois autores, além de considerar vários fatores para a emergência desse tipo de monarquia, com destaque para a luta de classes, também chamaram a atenção para o fato que, em teoria, a monarquia era absoluta desde a Idade Média, e para o fato que quando ela se tornou absoluta, também na prática a partir da Idade Moderna, seu poder efetivo e seu alcance foram limitados tanto pelo respeito aos costumes fundamentais do reino quanto pela precariedade dos meios técnicos existentes à sua disposição.

Esses dois historiadores, à luz da experiência histórica proporcionada pelos fenômenos políticos da primeira metade do século XX, com o formidável aumento do poder estatal, tanto sob forma constitucional, quanto ditatorial, haviam-se dado conta de que era chegada a hora de nuançar a visão transmitida pelo século XIX, muito marcada pelo liberalismo, de um absolutismo monárquico como um poder despótico ilimitado (é preciso lembrar que o nome absolutismo, tal como ocorreu com o nome mercantilismo, é posterior ao próprio fenômeno, tendo sido uma criação de seus críticos liberais). Com isso, pode-se dizer que os estudiosos do absolutismo, ao longo de boa parte do século XX, acabaram por explorar os dois lados, o lado forte e o fraco dessa forma histórica de poder, que se desenvolveu na Europa na Idade Moderna.

Entre os que deram ênfase ao aspecto forte e inovador do absolutismo, ao seu poder disciplinador, mas enfatizando seu papel civilizador, portanto positivo, é obrigatório lembrar o nome do sociólogo Norbert Elias, com o seu livro extraordinário e pioneiro O processo civilizador, cuja primeira edição é de 1939; assim como, de um ponto de vista críticonegativo, é obrigatório lembrar o nome do filósofo Michel Foucault com seus trabalhos, igualmente pioneiros, de desvendamento e denúncia do poder sobre todos os corpos, sociais e individuais. E entre os que dão ênfase ao aspecto limitado e não moderno do absolutismo, menciono um livro recentíssimo de vários autores, Lo Stato moderno in Europa, no qual se afirma que a realidade institucional do Estado absolutista "continua a compartilhar ao longo de todo o curso do antigo regime pelo menos dois traços profundos da configuração medieval do poder", a saber, "o caráter compósito e pluralista dos corpos políticos" e a "pré-existência do direito com relação ao poder"12.



III

No capítulo primeiro de seu célebre livro, A cultura do Renascimento na Itália, capítulo intitulado significativamente de "O Estado como obra de arte", J. Burckhardt deixou-nos uma descrição insuperável do cenário político italiano renascentista, quando, a olhos vistos, repúblicas e principados passavam por significativas modificações, alguns aumentando de tamanho, outros encolhendo e até mesmo desaparecendo, quando se inovava na arte de governar e desenvolviam-se instituições estatais muito diferentes das existentes no restante da Europa, na mesma época. Para expressar, em uma outra fórmula, a transformação em curso na esfera estatal, dir-se-ia que na Itália primeiro e na Europa Ocidental logo a seguir, o Estado estava deixando de ser um poder orgânico, tipicamente feudal, para começar a ser um poder-máquina, tipicamente moderno.

Não precisamos citar diretamente do livro de Burckhardt nenhuma das várias passagens que podem ser tomadas como exemplificação do que vem a ser o Estado como obra de arte, porque o artigo de Chabod, há pouco lembrado, começa justamente com o seguinte parágrafo: "Faz quase um século, em seu Kultur der Renaissance (1860), Jacob Burckhardt falava do Estado italiano do Renascimento como de um Estado já moderno e o batizava 'o Estado obra de arte'. Vale dizer, o Estado criado pela vontade fria, precisa e clarividente de um príncipe que, tal como um artista, cria sua obra calculando todos os meios para que dê bons resultados"13. Note-se que o artigo de Chabod, na versão italiana, publicada em 1956, um ano depois da francesa, saiu com o título, significativo, de "Alle origini dello Stato moderno", explicitando assim sua tese que reiterava e desenvolvia a famosa e histórica interpretação de Burckhardt.

De acordo com Chabod, na Itália do quattrocento e início do cinquecento, as inovações que ocorrem na arte da guerra, nos procedimentos burocráticos e nas atividades diplomáticas, foram de tal monta que delas surgiu uma nova estrutura estatal. Certamente que podemos encontrar em praticamente todos os Estados da Idade Média exércitos, funcionários e atividades diplomáticas, mas em nenhum deles esses três componentes, ou aparatos do poder estatal, apresentam as dimensões quantitativas e técnico-formais, a consistência e o caráter permanente e profissional, digamos assim, que irão adquirir a seguir.

Vejamos, para ficar em apenas um exemplo, o que se passou com a diplomacia permanente. Seu advento, nas palavras de Chabod, foi "equivalente a uma profunda mutação na estrutura interna do Estado e na sua maneira de atuar". Compare-se nesse sentido, a frase do famoso ministro de Luís XIII, Richelieu, "negociar sem pausa, aberta e secretamente em todo lugar", que pressupõe uma diplomacia permanente, com a seguinte frase do rei Luís XI, proferida aproximadamente um século e meio antes, ao ser informado pessoalmente por Alberico Maletta, que ele, Maletta, fora enviado como embaixador por Francesco Sforza de Milão, para que permanecesse junto à corte francesa por tempo indeterminado: "Quero que escreva ao seu Senhor que o costume na França não é similar ao da Itália, porque entre nós manter continuamente um embaixador parece uma coisa suspeita e não de todo agradável, ao passo que entre vós é o contrário. Assim, escreva-lhe que não é necessário nem para ele nem para mim que mande outros agora, e quando acontecer alguma coisa que mande a Manuelo [trata-se de Emanuele de Jacopo] ou outrem como lhe aprouver, mas que venham e voltem e não permaneçam aqui parados"14. Il va sans dire, que essa declaração serve para provar, no século XV, tanto a existência de uma diplomacia permanente na Itália, quanto a sua ausência na França.

Tendo em vista, como se sabe desde Hobbes, que o Estado funciona como uma máquina, e se aceitamos a idéia de que ele é algo externo ao tecido social, as inovações que ocorrem nos seus aparatos e na técnica de governar podem, portanto, ser facilmente imitadas e importadas. Daí a existência, nas palavras de Matteucci, desse "processo de difusão das inovações dos países mais avançados no desenvolvimento político para os menos avançados". E quando Matteucci sustenta que os "paradigmas ou modelos são a Inglaterra e a França", é o caso de acrescentarmos que antes desses dois países se tornarem paradigmas, também os principais Estados da Itália e até mesmo o da Espanha exerceram esse papel.

Como mostrou o historiador inglês John Elliott em seu pequeno mas extraordinário livro A Europa Dividida 1559-1598, ao afirmar: "De todas as monarquias européias a da Espanha desenvolvera a monarquia governamental mais elaborada de meados do século [XVI] [...] Foi aparentemente depois de um dos secretários de Henrique II [rei de França] ter observado os seus colegas espanhóis em funções durante as negociações de Cateau-Cambrésis [1559] que o título de 'secretário de Estado' começou a ser usado em França. Mas, em geral, dir-se-ia que problemas do mesmo tipo conduziam os Estados da Europa ocidental a soluções semelhantes, e que mais não era preciso do que uma rápida olhadela por sobre o ombro ao que se fazia em outros locais"15.

Mas, já Burckhardt, um século antes de Elliott, ao tratar do envolvimento militar da Espanha e da França na Península itálica, observava: "Ambas haviam começado a igualar-se aos Estados italianos centralizados e mesmo a imitá-los, mas em proporções colossais". E ao descrever esses Estados italianos, Burckhardt destacava e até mesmo exaltava os de Veneza e de Florença, por seu dinamismo econômico e riqueza, por suas sofisticadas culturas e regimes políticos republicanos, altamente complexos e contrastantes entre si, e dos quais tanto os cidadãos venezianos quanto os florentinos tanto se orgulhavam. Sobre Veneza, com sua estabilidade política, a mais permanente e longeva jamais alcançada por um Estado no Ocidente em todos os tempos, daí o apelido de la Sereníssima, e o chamado mito di Venezia, Burckhardt observou que, se por um lado, "foi a primeira a apresentar por completo uma porção significativa do moderno aparelho estatal, por outro, revelava um certo atraso no plano cultural". E sobre Florença, verdadeiro laboratório político onde todas as constituições foram experimentadas, ele afirmou: "A mais elevada consciência política, a maior riqueza em modalidade de desenvolvimento humano encontram-se reunidas na história de Florença, que, nesse sentido, por certo merece o título de primeiro Estado moderno do mundo"16.

Dentre os autores venezianos e florentinos da época do Renascimento, que trataram do passado de suas respectivas repúblicas, enfatizando a estabilidade política de uma e a instabilidade de outra, um lugar inigualável é ocupado por Maquiavel, com sua História de Florença, publicada em 1532, e por Gasparo Contarini, com seu Dos magistrados e da República dos vênetos [De Magistratibus et Republica Venetorum] publicado em 1543. Como se pode ver pelas seguintes passagens, de uma e outra obra:
"...e se jamais de república alguma as divisões foram notáveis, as de Florença foram notabilíssimas; porque a maior parte das outras repúblicas das quais se teve alguma notícia contentou-se com uma divisão com a qual, segundo os incidentes, ora melhoraram, ora arruinaram suas cidades, mas Florença não contente com uma, teve muitas [...] em Florença de início dividiram-se os nobres, depois os nobres e o povo e por último o povo e a plebe; e muitas vezes ocorreu que uma dessas partes, que se tornara superior, dividiu-se em duas: delas nasceram tantas mortes, tantos exílios, tantas destruições de famílias quantas jamais nasceram em alguma cidade de que se tenha memória. E verdadeiramente, segundo juízo meu, parece que nenhum outro exemplo demonstre tanto a pujança de nossa cidade quanto o demonstram essas divisões, que teriam tido força para anular qualquer grande e potente cidade"17.

"Houve em Atenas, Lacedemônia e Roma em diversas épocas, diversos homens excepcionalmente virtuosos, de méritos excelentes e de uma piedade singular para com as suas respectivas pátrias, mas em tão pequeno número que, estando dominados pela multidão não foram capazes de bem aproveitar seus talentos. Mas nossos ancestrais, dos quais recebemos uma república tão florescente, uniram-se todos num comum desejo de estabilidade, de honrar e engrandecer seu país, sem nenhuma consideração para com a sua glória ou interesse privado [...] Com esta virtude de espírito superior nossos antepassados criaram e instalaram esta república na memória humana, quem quiser compará-la com as mais nobres repúblicas antigas, dificilmente encontrará uma que seja de igual valor; ouso mesmo afirmar ao contrário que nos discursos desses grandes filósofos da Antiguidade que conceberam e forjaram repúblicas segundo os desejos do espírito, não se encontra nenhuma tão bem concebida e organizada"18.

Os dois textos além de formar um contraponto perfeito, servem de desmentido a quem queira deduzir da leitura de Maquiavel que, sem luta de classes e conflito político, uma república não pode atingir glória e grandeza, e da leitura de Contarini o inverso, isto é, que somente com estabilidade social e harmonia política uma república atinge glória e grandeza.

Como quer que seja, o fato é que a Itália era, na época do Renascimento, na feliz expressão de um estudioso atual, não uma nação mas uma nação de nações. Uma nação de nações que, na segunda metade do quattrocento, vivenciou uma espécie de pioneiro equilíbrio de poder entre os principais Estados. Pois, entre todos eles, não havia nenhum que pudesse levar a cabo um processo de unificação política da Península itálica. Não havia nenhum com uma formação social, semelhante àquela que existia nos outros países da Europa e que permitiu o aparecimento de uma monarquia absoluta, de um Estado resultante de uma articulação entre nobreza fundiária e monarquia dinástica, cuja autoridade agia no ápice da pirâmide de poder, mas não na base, na estrutura dos direitos senhoriais.

Havia dois Estados da Península com semelhantes características, o Reino de Nápoles e o Ducado piemontês. Mas o primeiro já era velho sem ter sido jovem, digamos assim, isto é, destituído de dinamismo interno, e o segundo, do qual sairá a unificação do século XIX, apenas começará a existir como um Estado efetivamente independente a partir de 1559, ou seja, quando a Itália já havia caído sob domínio estrangeiro. Por sua vez, a Igreja de Roma, que antes da eclosão da Reforma, parecia constituir, de acordo com Burckhardt, uma espécie anômala de Estado absoluto, era, de acordo com o que Maquiavel afirma nos Discorsi sulla prima deca di Tito Livio, fraca para poder realizar tal tarefa, mas suficientemente forte para impedir que outrem na Itália a levasse a cabo. Dos três Estados restantes importantes, Milão, Veneza e Florença, nenhum, mesmo quando dispôs de força expansiva, pôde e/ou desejou ir além de um aumento territorial limitado e da subjugação de seus rivais mais próximos.

Se até mesmo Cavour e o Piemonte, em pleno século XIX, que é dominado pela questão nacional e pelo nacionalismo, somente concebiam e pretendiam a unificação até o centro da Península, pelo menos até que Garibaldi, criando um fato consumado, não os forçasse a incluir todo o sul, o que dizer dos estadistas e Estados italianos do Renascimento? Como imaginar que até mesmo os humanistas cívicos, que, como Maquiavel, faziam apelo a um príncipe que libertasse a Itália dos bárbaros do norte, pudessem conceber, e aceitar, a península itálica constituída por um único Estado?

Estamos como se vê, diante da importante questão de saber se nessa época, na Itália em particular, e na Europa em geral, já existe um patriotismo ou sentimento nacional, como em geral acreditava a historiografia do século XIX e das primeiras décadas do XX, com algumas notáveis exceções. A resposta, evidentemente, é não, pois, sustentar o contrário é cair em um anacronismo ingênuo, como foi o caso do historiador Mousnier, acima lembrado, ao falar de um forte patriotismo francês nessa época, no seu conhecido volume Os séculos XVI e XVII, da coleção História Geral das Civilizações.

Sobre os humanistas europeus, sobretudo franceses e alemães, aqui diremos apenas que, se eles também parecem fazer apelo a um patriotismo ou sentimento nacional, constituem, como Chabod bem viu, vozes isoladas, as quais, na ausência de um contexto favorável, não podiam gerar energia e movimento ideológico, porque a verdade é que, no século XVI, o único sentimento ou força ideológica capaz de mobilizar os homens (e as mulheres) de todas as classes era a religião. Tanto é assim que, nos dois primeiros países em que, de fato, patriotismo e sentimento nacional emergem identificados, Inglaterra e Holanda, foi a religião que tornou isso possível. (Registre-se que foi entre os resistentes holandeses ao domínio espanhol, na segunda metade do século XVI que o termo patriota passou a ter, pela primeira vez, o sentido político moderno que é o atual.)

Voltemos à Itália, onde existia, sem dúvida, um forte e ardente patriotismo, mas um patriotismo de caráter particularista e municipalista, não nacional. O que significa que, quando Maquiavel e outros humanistas falavam em Itália, faziam-no com um espírito, ou sentido retórico-cultural, que não implicava nenhuma unidade política. Compreenderemos melhor esse sentimento se o compararmos não com o presente, como fez a historiografia do século XIX, que nele quis ver, anacronicamente, uma primeira manifestação da nacionalidade italiana, mas se o compararmos com o passado, mais precisamente com a Grécia antiga. Pois, assim como um cidadão de Atenas sentia-se ao mesmo tempo um patriota ateniense e um grego, também um cidadão de Florença sentia-se ao mesmo tempo um patriota florentino e um italiano.

É preciso insistir no fato de que, quando Maquiavel afirma, no último capítulo de O Príncipe, que a Itália anseia por um príncipe que a liberte do domínio estrangeiro, isso não significa que ele está advogando por uma unidade política da Itália, mas simplesmente por uma Itália, concebida como aquilo que os gregos designavam uma koinonía, ou seja, uma comunidade de póleis19. O mesmo se pode dizer de Francesco Guicciardini, compatriota de Maquiavel, um pouco mais jovem, mas seu conhecido e como ele político e historiador. Em sua Storia d'Italia, Guicciardini faz a seguinte afirmação em forma de pergunta, "Quem não sabe o que é a Itália?" E de tudo o que passa a dizer a seguir não há nada que indique a presença de qualquer coisa que cheire a um sentimento nacional. Assim, se, entre os intelectuais italianos de todos os tempos, intelectuais que o historiador Giuliano Procacci definiu como "esses eternos protagonistas da história italiana", os nomes de Maquiavel e Guicciardini ocupam um lugar inigualável, isto não nos deve fazer esquecer que eles foram patriotas florentinos em primeiro lugar e antes de tudo o mais20.

Se os Estados da Europa do Renascimento quiseram e puderam imitar ou copiar os Estados italianos, o inverso não poderia absolutamente ter acontecido, uma vez que o dinamismo e a força das monarquias européias decorriam, como já mencionamos, de seu tecido social; e um tecido social não podia então, como não pode hoje, note-se, ser copiado nem imitado. De resto, e objetivamente, se nenhum dentre todos os Estados italianos podia sequer sonhar em se lançar à conquista de qualquer território ao norte dos Alpes, entre os demais Estados europeus havia dois que ambicionavam conquistar a Península itálica e dispunham de força para faze-lo, a Espanha e a França. Iniciadas em 1494, as guerras da Itália, opondo os exércitos espanhóis aos franceses, antes mesmo de terminarem, em 1559, com os Tratados de Cateau Cambresis, marcaram, já na década de 1520, o fim da autonomia política dos Estados italianos, com poucas exceções, sendo a República de Veneza a mais notável, e o início da secular dominação espanhola, primeiro, e austríaca depois.



IV

Uma espécie de contraprova de que na Itália o Estado moderno apenas começou mas não se efetivou, terminando o processo, nas palavras de P. Anderson, em "um beco sem saída", em "um impasse histórico", pode ser colhida no plano lingüístico-conceitual, na maneira como os pensadores políticos peninsulares usaram o termo Estado. Por um lado, foram eles os primeiros a empregar a palavra em sentido moderno, isto é, da maneira que nós o fazemos, como, por exemplo, Maquiavel na abertura de O Príncipe : "Todos os Estados, todos os domínios que tem havido e que há sobre os homens, foram e são repúblicas ou principados", ou quando no capítulo 9 diz que "o Estado tem necessidade de seus cidadãos".

Mas, por outro lado, o próprio Maquiavel, considerado consensualmente como o pensador político mais vigoroso e agudo do Renascimento italiano, também usa o termo Estado de maneira que revela a não distinção entre governo e Estado, ao se referir, por exemplo, a "um príncipe que deseja manter o Estado" o que equivale a dizer a um príncipe que conserva sua posição e seu elenco de poderes, como bem notou Skinner em seu conhecido livro As fundações do pensamento político moderno. De acordo com Skinner, a idéia mais abstrata "tipicamente moderna do Estado enquanto uma forma de poder público, separada do governante e dos governados, constituindo a suprema autoridade política no interior de um território definido"21 – esta idéia tem que esperar por mais de meio século e por outros contextos históricos, o da França, na segunda metade do século XVI, e o da Inglaterra na primeira metade do seguinte. Em outros termos, tem que esperar pelas obras de Jean Bodin e Thomas Hobbes que, juntamente com Maquiavel, constituem a tríade fundadora tanto do conceito de Estado moderno, em particular, quanto do pensamento político moderno em geral. Pois, não seria exagero dizer que dos escritos desses três pensadores saíram as matrizes dos três grandes discursos políticos que dominaram todo o período da história moderna no Ocidente, o discurso do próprio absolutismo, que é o do establishment, e os discursos do individualismo possessivo e do republicanismo clássico ou humanismo cívico, que são de oposição.

Atentemos para os respectivos momentos e contextos em que surgem as obras daqueles dois pensadores. Os seis livros da República, de Bodin, são de 1576, quando a França está mergulhada nas guerras de religião, e o Leviatã, de Hobbes, de 1651, quando a Inglaterra acaba de sair da guerra civil. É consenso entre os estudiosos do pensamento político, que, no livro de Bodin, aparece formulada, pela primeira vez e da maneira mais completa, a teoria do absolutismo monárquico, fundamentada no conceito de soberania, que ele foi o primeiro a elaborar, ou seja, que a autoridade tem de ser absoluta22; e que, no livro de Hobbes, temos isso também, e muito mais do que isso, ou seja, uma teoria radicalmente nova da sociedade e da política, o chamado contratualismo ou jusnaturalismo. Tendo em vista esses respectivos panos de fundo, não surpreende que tanto Bodin quanto Hobbes fossem visceralmente contrários a qualquer tipo de governo misto, o qual implica necessariamente aquilo que para eles constituía o pior dos males: a divisão da soberania.

Na França, as guerras de religião, de imediato, interromperam o desenvolvimento do absolutismo e até mesmo ameaçaram a própria sobrevivência da unidade política do país, mas, logo a seguir, facilitaram a sua consolidação, tornando-o o mais acabado e completo de todos, uma espécie de paradigma, de modelo a ser copiado e imitado. Com efeito, nenhuma outra monarquia européia desenvolveu como a francesa os ingredientes essenciais do poder absoluto: uma ampla e ilimitada autonomia financeira (fundada na liberdade de tributar os camponeses e de vender cargos); um poderoso exército permanente (o maior da Europa em número de efetivos militares); uma burocracia, também a maior da Europa e a mais complexa, a ponto de ter dado origem, ainda que temporariamente, a uma nova e distinta classe social, a nobreza de toga, que, ao se tornar vitalícia e hereditária, obrigou o Estado, na época de Richelieu, a criar, como bem demonstrou Tocqueville, em O antigo regime e a revolução, uma outra burocracia informal e cujos funcionários podiam ser demitidos ad nutum (vale dizer, à simples ordem de seus respectivos superiores); e, last but not least, uma Igreja nacional que, tendo em vista a experiência das guerras religiosas, não poderia admitir ou tolerar outras confissões; daí a fórmula "une foy, une loy, un roy"; daí, também, a revogação, por Luís XIV, do Edito de Nantes, em 1685.

Já na Inglaterra, a questão religiosa interferiu de maneira inversa à da França na evolução do Estado. Foi o desencadeamento da Reforma, por Henrique VIII, nos primeiros anos da década de 1530, com a criação da Igreja Anglicana, que propiciou a este rei completar a obra de consolidação do poder monárquico. Mas a maneira como esta obra foi iniciada por Henrique VIII, e continuada por Elisabeth I, os dois reis mais absolutos, e também, no caso sobretudo da segunda, entre os mais populares de toda a monarquia inglesa, ou seja, com o apoio e fortalecimento do Parlamento, a quem reconheceram a iniciativa e a última palavra em matéria de legislação fiscal e religiosa, e com o apoio e fortalecimento da gentry, a quem entregaram a incumbência de exercer, sem remuneração, o poder local – levou ao paradoxo que consistiu na criação, entre todos os países europeus, do Estado mais centralizado no vértice do poder e do mais descentralizado na sua base. Em outros termos, na Inglaterra, como agudamente assinalou o historiador Lawrence Stone, em As causas da Revolução Inglesa 1529-1642, o desenvolvimento do poder estatal sob a dinastia Tudor não se realizou, como em geral ocorreu no continente, às expensas do poder local, mas caminhou pari passo com este. Na Inglaterra, como mais tarde nos Estados Unidos, a centralização política não levou, como ocorreu na França, à centralização administrativa.

De sorte que, em 1603, quando a dinastia Stuart assumiu o trono da Inglaterra, deparou-se com um Estado absolutista manquée, pois, carecia, parcial ou totalmente, daqueles aparatos de poder sem os quais o absolutismo não pode se efetivar: autonomia financeira, burocracia permanente remunerada pelo Estado e dele dependente, exército permanente e Igreja nacional. A tentativa de Carlos I, de implementar, entre 1629 e 1640, com sua thorough system, precisamente todos esses instrumentos do Estado absoluto, como haviam conseguido ou estavam conseguindo as monarquias do continente, terminou em um desastre, com uma espécie de greve geral dos contribuintes, com o país ocupado por um exército escocês e com os puritanos em revolta.

Não precisamos entrar aqui na narrativa dos acontecimentos que constituem a Revolução inglesa de 1640, e seus desdobramentos fundamentais, isto é, Guerra Civil, Experiência Republicana, Restauração e, finalmente, encerrando todo o processo, Revolução Gloriosa de 1688-1689. Basta para o nosso argumento salientar que, quando o conflito político-religioso entre o rei e o parlamento explodiu, o Estado inglês já estava plenamente constituído, bem como estava plenamente cristalizada uma identidade, um sentimento nacional inglês, ao contrário do que ocorreu na França, quando o país mergulhou nas guerras de religião.

Por outro lado, todo esse processo histórico inglês, que culmina na criação de uma monarquia limitada ou constitucional, se explicado à maneira tocquevilliana, implicaria sustentar que, assim como na França a Revolução de 1789 completou a obra de centralização do poder iniciada pelo Antigo Regime, marcando, pois, não uma ruptura, mas uma continuidade com o passado; também na Inglaterra as duas revoluções do século XVII representaram uma continuidade, ao completarem a obra de self-government iniciada, paradoxalmente, insista-se, por Henrique VIII. Contudo, também é possível sustentar, contra a interpretação de Tocqueville, e a favor da interpretação que dá ênfase à ruptura revolucionária, que, assim como na França foi a Revolução de 1789 que criou e assegurou a liberdade e os direitos de todos os franceses, a mesma coisa aconteceu na Inglaterra, graças às duas revoluções, a de 1640 e a de 1688. E não graças a uma suposta continuidade progressiva e milagrosa de uma antiga constituição, como insistem em nos fazer crer os conservadores de ontem e de hoje23.

Em outros termos, se na Inglaterra acabou por, no final das contas, vingar um tipo de Estado monárquico, descentralizado e baseado numa forma de governo misto – expresso na fórmula king in parliament, fórmula que antes da Revolução de 1640 era interpretada de uma maneira pela Coroa e de outra pelo Parlamento, pois esses dois poderes disputavam a soberania; e depois de 1689 passou a ser interpretada de uma única maneira, isto é, a que consagrava o poder do Parlamento – na França acabou por, no final das contas, vingar um tipo de Estado republicano, centralizado e baseado em um soberano único, como no Antigo Regime, mas diferentemente do Antigo Regime, em um soberano único coletivo, vale dizer, os representantes da nação.

A esta altura é hora de começarmos a concluir, e o faremos pondo em comparação as trajetórias históricas de dois pequenos Estados tardo-medievais da Península itálica, Florença e Veneza, com a de dois grandes Estados modernos da Europa Ocidental, França e Inglaterra. Saltou aos olhos dos modernos a semelhança entre Veneza e Inglaterra, como se pode ver pelos não poucos autores que se deixaram fascinar pelo mito di Venezia, como foi o caso do republicano inglês do século XVII, James Harrington. Ora, o mito di Venezia consistia precisamente na crença de que os venezianos tinham desenvolvido, nas palavras do historiador John G. A. Pocock, "a complexa e fascinante maquinaria de operações para nomear, eleger e sortear as magistraturas, que os visitantes da república se deleitavam em observar e descrever". Ainda nas palavras desse autor, retiradas de seu livro maravilhoso The Machiavellian Moment, "os venezianos tinham, por assim dizer, mecanizado a virtù [...] Não menos do que a imagem de uma perfeição de equilíbrio polibiano, a crença de que os venezianos tinham alcançado essa mecanização era um elemento poderoso do mito di Venezia"24.

Mas, salvo engano, não há registro de autores que tenham visto e/ou tentado estabelecer qualquer semelhança entre Florença e França. Contudo, gostaria de sugerir que esse paralelo também pode ser feito, a despeito do fato de que Florença, no seu momento de glória e grandeza, ter sido uma república de governo misto e a França, ao contrário, nunca ter conhecido essa forma de governo mesmo nos seus vários momentos de glória e grandeza. Contudo, tendo em vista que a França, entre os séculos XVI e XIX, tal como Florença entre os séculos XIII e XVI, foi um laboratório político onde todas as constituições foram experimentadas, então poderíamos sustentar o paralelo afirmando que, também a França, tal como Florença, deve sua extraordinária trajetória histórica precisamente à divisão político-ideológica entre as classes e ao conflito de classes.

Como, aliás, já haviam percebido os historiadores franceses da primeira metade do século XIX. Por exemplo, François Guizot, quando afirmava, em 1828, que: "A Europa moderna nasceu da luta das diversas classes da sociedade. Em outros lugares [...] esta luta conduziu a resultados bem diferentes [...] [Na Europa] N[n]enhuma das classes pôde vencer nem se sujeitar às outras; a luta, ao invés de tornar-se um princípio de imobilidade, foi a causa do progresso. As relações das diversas classes entre si, a necessidade em que se encontravam de se enfrentar e de ceder alternadamente; a diversidade de interesses, de suas paixões, a necessidade de se vencer, sem poder chegar até o fim, disto saiu talvez o mais enérgico, o mais fecundo princípio de desenvolvimento da civilização européia"25. É evidente que Guizot está generalizando para toda a Europa uma situação que foi sobretudo típica da França moderna.

Como quer que seja, o fato é que, assim como não houve na época medieval e início da moderna, nenhum Estado que experimentou como Florença, uma tão intensa, prolongada e variada divisão e luta de classes, também não há, posteriormente, nenhum Estado que tenha experimentado como a França, uma mais intensa, prolongada e variada divisão e luta de classes. Pois, com efeito, em que outro país se assiste, como na França, considerando-se o longo período que vai das guerras de religião, na segunda metade do século XVI, à Comuna de Paris em 1870, a uma tal luta de classes envolvendo, simultaneamente, camponeses contra nobres, trabalhadores urbanos contra burgueses, burgueses contra nobres, nobres contra nobres, burgueses contra burgueses e, por último e mais importante, proletários contra burgueses? Assim, do absolutismo francês, que socialmente falando parecia, nas palavras do historiador Robert Mandrou, "uma espécie de vulcão de múltiplas crateras",26 não seria exagero dizer, paradoxalmente, que: nasceu da luta de classes, viveu da luta de classes e morreu da luta de classes.

Do Estado moderno, "da geração", nas palavras de Hobbes, "daquele grande Leviatã, ou antes daquele Deus Mortal, ao qual devemos, abaixo do Deus Imortal, nossa paz e defesa", ousaria dizer, concluindo, que os italianos o criaram, os franceses e ingleses o desenvolveram e aos alemães restou o consolo de o interpretarem.

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-64452007000200002&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

Lua Nova: Revista de Cultura e Política

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