quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Senhor do Absurdo

Senhor do Absurdo

A vida, a obra e o estilo revelam detalhes de como o escritor tcheco Franz Kafka interpretou o mundo


Franz Kafka, o autor tcheco cujo sobrenome virou adjetivo – você possivelmente já ouviu o termo “kafkaniano” –, morreu jovem, com apenas 40 anos. Jamais ganhou dinheiro com seus livros e boa parte de sua obra só foi publicada após sua morte. Contudo, ele deixou um legado inestimável à literatura do século 20, mas também a outras artes, como dança e artes plásticas. Um exemplo é o projeto Kafka – Transformação e Espanto, realizado pelo Sesc Santana (veja boxe Espante-se, no bom sentido), e que reúne diversas linguagens artísticas refletindo sobre os conflitos existencialistas do universo kafkaniano. “Há de se pensar que o adjetivo criado a partir do sobrenome do autor está presente em mais de 100 línguas para qualificar o que é desumano, absurdo”, explica a doutora em estudos comparados da literatura Susanna Ventura. “Ele soube como ninguém expressar a angústia que nos esmaga.” O absurdo na literatura de Kafka está em obras como O Processo (1925), um de seus livros mais populares – a história virou filme com a direção de Orson Welles, em 1962, três décadas depois relançado, sob a direção de David Jones (veja boxe Espante-se, no bom sentido). O obra conta a história de Joseph K., um homem comum que num belo dia acorda e vai preso sem saber o crime que cometeu. “É um despertar ao contrário”, observa Susanna. “As personagens acordam para o pesadelo e aquelas situações aparentemente inusitadas que começam a ocorrer evidenciam a falsidade da percepção anterior de que tudo estava em ordem”, diz a especialista.

Pai opressor
Franz Kafka nasceu em 1883 em Praga, atual República Tcheca, numa família judia de classe média alta. Foram as culturas alemã, judaica e tcheca – ainda que, na época, sua cidade-natal pertencesse ao império austro-húngaro – que pavimentaram o caminho do escritor. Embora a maioria dos habitantes de Praga falasse tcheco, a elite dominava também o alemão. Além disso, estudar na Alemanha também dava status. Foi para lá que seu pai o enviou para completar os estudos. Já com o judaísmo, ele parecia sentir-se pouco à vontade. “Numa carta a Grete Bloch – amiga de Felice, com quem ele também teria mantido um romance – de junho de 1914, ele se define como alguém associal, excluído da comunidade por seu judaísmo ‘não-crente’”, revela o crítico literário Michael Löwy em seu livro Franz Kafka – Sonhador Insubmisso (Azougue Editorial, 2005).

O escritor era o filho mais velho do comerciante Hermann Kafka, com quem sempre teve uma relação complicadíssima, e da dona de casa Julie. Após o nascimento de Franz, a família perdeu dois filhos antes do nascimento de Gabriele, Valerie e Otilie.

Único filho homem, Kafka cresceu isolado e foi se tornando um leitor cada vez mais voraz. “É o que mais me chama atenção em sua personalidade”, diz Dionísio Neto, ator que encenou Carta ao Pai, peça que fez parte da programação do Sesc Santana. “Ele sofria muito com a vida e, para sorte sua, e nossa, extravasava esse sofrimento em forma de grande literatura”, diz Neto.



Metamorfoses
Kafka estudou química e literatura, mas acabou se formando em direito. Seu primeiro livro, publicado em 1913, ganhou no Brasil o título de Consideração. Por essa época, ele tinha um emprego que lhe dava tempo suficiente para, além de trabalhar, ler e escrever. Nesse tempo, nutria a personalidade amuada aproximou-se de Isaac Löwy, ator de teatro ídiche, e também tornou-se vegetariano – o que para sua família parecia por demais excêntrico. Mas havia algo contraditório na sua personalidade: embora profundamente tímido, esse foi um tempo de pura boemia para ele. Romances de uma noite só e constantes visitas a bordéis preencheram suas noites nessa época. Foi também nesse tempo que ele escreveu A Sentença (1913), que considerou seu primeiro livro maduro. Nesse mesmo ano, é escrita outra de suas obras mais conhecidas, A Metamorfose – a famosa história do homem que, numa certa manhã, vê que se transformou num grande inseto. Foi também em 1913 que Kafka viu sua saúde, que nunca foi muito boa, piorar a ponto de fazê-lo ficar internado em uma clínica na Itália.

No ano seguinte, ele rompe com a noiva, Felice, e, apesar da saúde fraca, engata outro noivado. Dessa vez com Julie Wohryzek, a filha do faxineiro de uma sinagoga. O fato não só chocou o pai do escritor como fez com que ele vendesse sua loja e fosse embora do país, para escapar da “vergonha” causada pelo casamento. A reação paterna levou Kafka a escrever uma carta com dezenas de páginas, na qual acertava as contas com aquele que por várias vezes se refere no texto como “tirano”, “Deus” e “regente”. A missiva nunca chegou às mãos do pai, mas foi publicada em forma de livro, Carta ao Pai, e entrou para o hall das grandes obras kafkanianas.

Um certo judaísmo e mais amores
Se, por um lado, o pai de Kakfa jamais ficou sabendo o que o filho pensava dele, por outro, o “casamento-escândalo” também não se realizou. Dois dias antes da cerimônia, o escritor pôs fim à relação e não demorou para que uma nova pessoa entrasse em sua vida. Milena Jensenská Pollock, ex-mulher de um amigo seu, com quem ele passou a trocar correspondência. Noivados a distância, diga-se de passagem, era um hábito do autor – tinha sido assim com Felice e com Grete. Quanto ao destino do romance com Milena, os apaixonados não demoraram a romper, e ela reconciliou-se com o marido. Em 1923, Kafka estava solteiro e já com 40 anos. Não se sabe ao certo o motivo, mas nesse período, que antecede sua morte, o escritor voltou seu interesse para o judaísmo. Decidiu aprender hebraico e conheceu Dora Diamant, uma garota de 19 anos, polonesa e judia ?ortodoxa. Eles se mudaram para Berlim, onde viveram uma situação de extrema penúria financeira. Um ano depois, a situação só piorou, com a saúde de Kafka ainda mais fraca. O autor morreu em ?3 de junho de 1924, sem se casar ou ver sua obra reconhecida. Como parece ser o grande clichê com artistas e escritores, depois da morte, a obra de Kafka foi descoberta pelo mundo – principalmente quando traduzida para o inglês. Um de seus manuscritos chegou a ser vendido em um leilão por mais de dois milhões de dólares – o que só foi possível porque seu grande amigo, Max Brod, conseguiu fugir para Tel Aviv antes de ser pego pelos nazistas, levando consigo a obra de Kafka. Brod se encarregou de diversas edições dos livros do amigo e morreu com a reputação de ter salvo a obra de Kafka. Foi assim também que os dicionários do mundo ganharam mais um adjetivo, para expressar como o mundo é absurdo.

Espante-se, no bom sentido

A obra de Franz Kafka ganha várias caras no Sesc Santana



Dividida em diferentes áreas, como dança, artes plásticas, literatura, cinema e teatro, a série de atividades programadas para o projeto Kafka – Transformação e Espanto, em cartaz no Sesc Santana desde março, segue até 3 de maio. Para o palco, foram adaptados dois textos do escritor. Vão até 19 de abril as apresentações de O Processo, que traz no elenco o ator Tuca Andrada?e que teve direção de José Henrique. Já em Carta ao Pai, o ator Dionísio Neto, da Companhia Satélite, interpreta Kafka e seu pai Hermann, em uma das histórias mais comoventes (e reais) que o escritor publicou. “Quando li o texto pela primeira vez, aos 18 anos, chorei sem parar do começo ao fim”, lembra o ator, que fica em cartaz até dia 29. “Além de extremamente bem escrita, é uma carta universal e nos dá aquela sensação de toda grande obra: a de que foi feita para a gente”, diz o ator. Ainda em abril, serão exibidos os filmes Kafka, de Steven Soderbergh, no dia 7, e O Processo, de Orson Wells, no dia 14.

A programação que fica mais tempo em cartaz é o painel inspirado no universo kafkaniano da artista plástica Alice Freire. Ele ficará exposto até 3 de maio no foyer do teatro.

Em março, o projeto já havia trazido para a unidade a aula-espetáculo apresentada por Ângela Coelho, com pesquisa da doutora de estudos comparados da literatura Susanna Ventura, e baseada no vídeo Kafka XXI, do cineasta Eduardo de Araújo. “É essencial hoje haver uma efetiva mediação em atividades de literatura”, diz Susanna. “O momento em que vivemos, a configuração de nossa sociedade, não favorece as atividades de leitura da mesma maneira como ocorria no passado. É preciso criar um espaço para impulsionar o potencial do leitor.” No mês passado também foi apresentado o espetáculo Kafka in off (foto), com a Cia. Borelli de Dança. Além disso, março foi o mês em que as crianças conheceram a obra do escritor tcheco na atividade Histórias de ká, de Kafka, para crianças!, com Karina Giannecchini. Ela levou para a criançada não uma obra de Kafka, mas sim o autor como personagem.

Biografias fantásticas

Kafka escreveu dezenas de histórias, entre elas dois clássicos da literatura ocidental

“Quando Gregor Samsa despertou numa manhã na sua cama de sonhos inquietos, viu-se metamorfoseado num monstruoso inseto”, assim Kafka descreve o início do drama do homem que deixa a vida de lado, que se anula e se oprime, para trabalhar e conseguir sustentar a família, no livro A Metamorfose. Essa obra, juntamente com O Processo, é responsável pelo reconhecimento do nome do escritor entre o grande público. Em ambas, nota-se a existência do dia em que tudo muda, quase como uma metáfora para um despertar, uma tomada de consciência. Ainda em A Metamorfose, Kafka destaca Samsa, monstruosamente modificado – logo, fisicamente impedido –, impossibilitado de ir trabalhar. Pela inutilidade que o assola, o rapaz ganha o ódio paterno. “A Metamorfose é igualmente um relato sobre o poder mortífero do pai”, afirma o crítico Michael Löwy, no livro Franz Kafka – Sonhador Insubmisso (Azougue Editorial, 2005). “Para compreender essa célebre e aterrorizante fábula, cabe lembrar que Kafka, em sua Carta ao Pai (1919), queixa-se de que este o considera um parasita e um inseto”, escreve o autor.

Já em O Processo, Joseph K. descobre ao acordar um dia que será preso, mas não sabe qual foi o crime que cometeu. Aqui Kafka cutuca sem rodeios a burocracia que emperra (e enlouquece) a vida moderna. Kafka morreu sem completar a obra, postumamente editada e publicada pelo amigo ?Max Brod. Joseph K. era, afinal, culpado por algum crime? “No manuscrito tal como existe, uma das ideias-força do texto é precisamente a ausência de toda ‘explicação das razões para o processo’”, escreve Löwy. “E a recusa obstinada de todas as instâncias envolvidas – policiais, magistrados, tribunais – em fornecer alguma”.

Revista E - SESC-SP

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