sábado, 17 de outubro de 2009

S. AGOSTINHO E AS DUAS CIDADES


S. AGOSTINHO E AS DUAS CIDADES

Folha de S.Paulo, quarta-feira, 01 de fevereiro de 1978


Caim, o primeiro fundador da Cidade Terrena, foi fratricida, porque, vencido pela inveja, matou seu irmão Abel, cidadão da Cidade Eterna, que era peregrino nesta terra.
Esta é a razão pela qual ninguém deve admirar-se de que, tanto tempo depois, na fundação daquela cidade que havia de chegar a ser cabeça da Cidade Terrena de que temos falado, cidade que haveria de ser senhora e soberana de tantos povos e de tantas nações (Roma), se haja chegado à condição daquilo a que os gregos chamam de arquétipo - isto é, uma imagem de todas as outras cidades. Pois também em Roma, como conta o poeta, referindo-se à mesma desgraça, foi de um sangue fraternal que se regaram as muralhas em torno das quais se fundou originalmente a cidade. Na verdade, segundo lembra a História, Roma foi fundada quando Rômulo matou seu irmão Remo.
Ambos eram cidadãos da Cidade Terrena, e os dois pretendiam a glória da fundação da República Romana. Mas juntos, dividida entre dois, não seria tão grande a glória de cada um. A hipótese de um só fundador daria gloria maior, sem ter que ser dividida com o outro a grandeza que tocava a um só. Pois o que queria a glória do senhorio e do domínio, teria menos domínio e menos senhorio, na medida em que um parceiro de governo compartilhasse desses privilégios.
Assim, para não ter que diminuir seu poder e para concentrar em suas mãos todo o comando e todo o senhorio, desembaraçou-se do companheiro, tirando-lhe a vida e pervertendo com esta impiedade e malvadeza as coisas que melhor teriam sido feitas se não se tivesse perdido a inocência.
Mas os irmãos Caim e Abel não tinham entre si o tipo de ambição que é comum entre outros homens, isto é, a ambição pelas coisas terrenas. Não houve propriamente inveja entre eles. Caim matou Abel apenas para aumentar seu poder pessoal, temendo uma diminuição desse poder quando ambos reinavam e eram senhores.
Abel não pretendia nenhum poder na cidade fundada pelo irmão, e este o matou por outro tipo de inveja, que não a que ocorre frequentemente entre os homens: a inveja diabólica que apaixona os maus contra os bons, pela única razão de que os bons são bons e os maus são maus.
De forma alguma se atenua a paixão da bondade pelo simples fato de que alguém também seja bom. O que é bom não concorre nem disputa contra o bom. Uma pessoa boa não diminui a bondade da outra, pelo fato de exercerem juntas a virtude da bondade. Pelo contrário: o convívio da bondade alarga entre os que a possuem a posse e o patrimônio desse bem, que é como uma espécie de patrimônio que se torna tanto maior quanto mais numerosos forem os sócios que a possuem. E não apenas maior no conjunto, mas maior para cada um deles.
Na verdade, só não podem desfrutar da posse e do domínio da bondade aqueles indivíduos que não desejam que outras pessoas também possa desfrutar do mesmo bem. Da mesma forma, tanto maior, mais ampla e mais abundante será para cada um a posse da bondade e da felicidade, quanto maior e mais amplo for o número do que também as possuem. Pois quanto mais uma pessoa possui bondade e a felicidade, mais deseja e estima a companhia do outro na posse desse bem.
Dessa forma, a desavença que separou Rômulo e Remo constitui uma demonstração viva da forma pela qual a Cidade Terrena se desune, se divide e se destrói a si mesma. O que aconteceu entre Caim e Abel, por sua vez, nos mostra claramente o tipo de inimizade que há entre as duas cidades, isto é, entre a Cidade de Deus e a Cidade dos Homens.
Os maus não sustentam guerras apenas entre si, destruindo-se uns aos outros. Também se suscitam guerras dos maus contra os bons. Mas bons com os bons, se são perfeitos, não podem nunca combater entre si. É certo, todavia, que os que ainda não são perfeitos, não podem nunca combater entre si. É certo, todavia, que os que ainda não são perfeitos, os que estão apenas a caminho da perfeição, podem também às vezes entrar em conflito entre si, da mesma forma que uma pessoa às vezes entra em desacordo consigo mesma. Pois, até num mesmo homem, acontece que "a carne deseja contra o espírito e o espírito contra a carne".
Desse modo, a concupiscência espiritual pode lutar contra a concupiscência carnal, da mesma forma como lutam entre si os bons e os maus, ou, pelo menos, as concupiscência carnais dos bons, que ainda não são perfeitos. E isto, da mesma forma como entre si se conflitam os maus com os maus, até que chegue o resultado salvador, que é a última vitória



Santo Agostinho (354 - 430) representa, na história do pensamento, a maturidade da dogmática cristã e o primeiro estabelecimento de uma filosofia orgânica fundada sobre as colocações do cristianismo. Seu pensamento é também um momento decisivo da história da humanidade, com uma significação insubstituível: pois, com ele se fecha o ciclo do pensamento da antiguidade greco-latina, e se abre a inauguração do mundo cristão da Idade Média. Era cartaginês, filho de um magistrado pagão e de uma cristã. Teve um filho chamado Adeodato. Depois de uma vida dissoluta, entregou-se a filosofia. Conviveu com os maniqueus, e conheceu, em Milão, Santo Ambrósio, a quem deve a sua conversão. Também seu pai converteu-se no fim da vida, e foi canonizado: é São Patrício. Sua mãe é Santa Mônica. Destacam-se em sua obra as "Confissões" e o tratado "Sobre a Cidade de Deus", com a teoria das duas cidades, do qual é extraído o texto que hoje publicamos (Traduzido do original latino "De Civitate Dei", por Gerardo Mello Mourão).

Nenhum comentário:

Postar um comentário