sábado, 24 de outubro de 2009

REZADEIRAS – UMA FÉ POPULAR (parte 2 - final)


Cristiane Maria Sales Pimentel
Jornalista, graduada pela Universidade Federal do Ceará. Seu trabalho de conclusão de curso, sob a orientação do professor Gilmar de Carvalho, teve foco nas práticas das rezadeiras, com o título: “Rezadeiras: uma fé popular”. E-mail:
cristianemspimentel@yahoo.com.br


Um ponto que gostaríamos de destacar nas fórmulas oracionais utilizadas pelas rezadeiras é a vinculação da capacidade de cura de determinadas doenças a entidades, notadamente santos católicos, de uma forma específica. Como uma espécie de homeopatia ritual, recorrendo assim aos princípios das similitudes (consiste em proscrever um remédio que proporcione ao doente os mesmos sintomas da doença), a cura de determinada mazela é destinada pela medicina popular, ao santo que, em vida ou até mesmo após a morte, esteja relacionado, de alguma forma, com a doença, seja em um episódio vivido por ele ou, ainda, mais comumente, a forma como foi martirizado. Sobre a origem de tal associação Jósa Magalhães afirma que



[a]o tempo em que os eclesiásticos prevaleciam no exercício
da medicina, deslindada influência houveram os santos com
os seus podêres curativos. Inúmeros santos havia que eram
invocados especificamente para determinadas doenças. Às
relíquias sagradas, sobretudo, se atribuíam milagrosas curas.
São Brás protegia os doentes da garganta, São Valentim era
o patrono da epilepsia. Santa Apolônia sedava as dores nos
dentes. Santa Margarida amparava a mulher padecente das
dificuldades do parto e demais perturbações dêle decorrentes.
Aqui, merece destaque o que de Santa Margarida divulga
Benjamim Lee Gordon (La Novela de la Medicina, p. 326):
“Os restos mortais de Santa Margarida, a virgem, martirizada
em Antioquia, no ano 303 E.C., foram transmitidos de uma
rainha a outra de maneira muito semelhante ao que ocorre
com as jóias da coroa. O corpo de Santa Margarida era
levado até a alcova da rainha, quando esta estava em trabalho
de parto, a fim de que o herdeiro do trono nascesse sem
riscos, prontamente, e sem produzir dores à sua augusta mãe”
(MAGALHÃES, 1966, p. 214).



Outra espécie de associação por similitude pode ocorrer com relação ao nome do santo. Por causa da sugestão de luz e claridade de seus nomes, aspectos associados à visão são positivos, ao contrário da escuridão (a cegueira). Desse modo, Santa Luzia e Santa Clara são relacionadas, na medicina popular, à cura de males oculares. Baseandose nesse mesmo princípio, na França, como relata Laplantine, São Genou (joelho) é invocado para curar a gota, São Clou, os furúnculos (clous) e Santo Acário, as mulheres rabugentas (acariâtres).
Explicitada a relação da medicina popular com os santos católicos, passaremos a examinar a presença e a significação dos números. Primeiramente, vejamos o exemplo de uma reza para cura de ínguas e um rito para a cura de picadas de animais peçonhentos:



Uma, duas, três,
Íngua nenhuma...
Uma, duas, três,
Íngua nenhuma (CAMPOS, 1955, p. 178).
Vire-se para o lado que estiver o enfêrmo, longe ou perto.
Se estiver na presença da vítima, cuspa na bôca (da pessoa
ou animal), rodeando da direita para a esquerda 3 vêzes
e rezando o credo. Arregace a bôca das calças fazendo 3
dobras. Dobrando também 3 vêzes as mangas da camisa.
Cruze o pé direito por cima do esquerdo e o dedo polegar
por cima do indicador. Retire algum aço, ferro ou dinheiro,
e inicie a seguinte oração: Oh! Estrela... (CAMPOS, 1955,
p.172).



O que podemos perceber em comum nestas duas rezas? A recorrência do aparecimento do número três, presente em várias rezas e ritos, que, na medicina popular, juntamente com seus múltiplos, possuem uma espécie de poder. É muito comum entre as rezadeiras pedir que, para quebranto, se reze três vezes e para cobreiro, nove.
As explicações para a origem de tal ligação com o número três são de uma possível associação com a trindade - Pai, Filho e Espírito Santo – e, sobretudo, da influência do Lunário Perpétuo, manual que atuou como uma espécie de Bíblia dos curandeiros do sertão nordestino, ou ainda, como defende Moisés do Espírito Santo (1990), um símbolo sexual – pai, mãe e filho – tese com a qual não compactuamos.
Por fim, analisaremos um elemento das rezas muito interessante, que é o “mar sagrado”, encontrado ainda nas variações de “mar salgado” ou ainda “mar coalhado”. Esta última expressão é de origem portuguesa. O mar surge nas rezas como um sítio onde o que é negativo torna-se positivo, as doenças são curadas, os males espirituais cessados. O mar, atuando como agente terapêutico e de proteção, basta nas suas águas o mal lançar, para garantir o resultado almejado. Vejamos o exemplo a seguir:



Mordido por um cão hidrófobo, o matuto empreende logo
uma viagem a determinado ponto da praia, antes de
completar três sextas-feiras da data do acidente, e ali toma
três banhos de mar. Cada banho consiste em furar, também
por três vezes, consecutivas, “as ondas do mar sagrado”
(ROCHA LIMA apud MAGALHÃES, 1966, p. 215).
O umbigo do recém nascido deve ser jogado às “águas
sagradas do mar” para garantir à criança um futuro feliz
(CAMPOS, 1955, p. 73).



Nas rezas, a referência ao mar surge com um caráter de neutralizador das forças negativas. Todas as mazelas são direcionadas ao “mar sagrado” em uma dualidade de um lugar factível, presenciável, e, ao mesmo tempo, utópico, distante do rezador e do doente, onde os males seriam deixados, como podemos observar no fragmento que segue:



Deus fêz o Sol, Deus fêz a Lua...Deus fêz toda a claridade
do Universo grandioso. Com a sua graça eu te benzo, eu te
curo. Vai-te sol da cabeça desta criatura (diz o nome da
pessoa) para as ondas do mar sagrado, com os santos
poderes do Padre, do Filho e do Espírito Santo (CAMPOS,
1955, p. 161).



Afinal, por que essa referência ao mar como sagrado? Segundo Eduardo Campos, essa referência seria uma herança do candomblé, conforme assinala o autor na passagem a seguir:



‘O mar sagrado’ surge em dezenas e dezenas de orações que
tivemos oportunidade de ouvir recitadas. Inicialmente,
pensamos estar na Bíblia a sua origem, mas nada conseguimos
para robustecer essa hipótese. O folclorista Dr. Mário
Ypiranga Monteiro, solicitado por nós, assim se manifestou:
“A princípio pode parecer que se trata de uma sobrevivência
bíblica, mas não é, é puro candomblé, do bom. Trata-se de
uma talassolatria (adoração ao mar), e que nos deuses do
mar, na mitologia negra são freqüentes”. E assinala esta quadra
de candomblé, de seu conhecimento: “(sic)Fazem três dias
que ando/ chorando à beira mar;/ às águas do mar sagrado/
é a quem me vou queixar” (CAMPOS, 1955, p. 162).



Ao contrário de Campos (1955), Maynard defende que a referência ao mar tem sua origem na idéia do poder terapêutico do sal, haja vista que



[é] para as ondas do mar salgado ou sagrado que os
benzedores enviam os maus-olhados e invejas; o que não é
desejado é endereçado para um lugar tão distante onde
também não se ouve o canto do galo. É o poder do sal
capaz de quebrar todos os encantos e prender as doenças
ou espíritos indesejáveis (MAYNARD, 2004, p. 139).



Segundo Eliade, a simbologia em torno das águas remonta a distantes civilizações e aos mais díspares povos, estando presente em todas as religiões. De tal modo que



[a]s águas simbolizam a soma universal das virtualidades; elas
são fons e origo, e reservatório e todas as possibilidades de
existência; elas precedem de toda forma e sustentam toda
criação. [...].Em qualquer grupo religioso que se encontrem,
as Águas conservam invariavelmente sua função: elas
desintegram, eliminam as formas, “lavam os pecados”, são
ao mesmo tempo purificadoras e regeneradoras. Seu destino
é o de preceder a Criação e reabsorvê-la, incapazes que são
de ultrapassar sua própria modalidade, ou seja, de manifestarse
em formas (ELIADE, 2002, p.151-152).



As águas, portanto, determinam o fim dos males físicos e a purificação espiritual. É com esse objetivo que as rezadeiras evocam a figura do “mar sagrado” em suas rezas, resultado de influências seculares acerca da sacralidade das águas. Como uma espécie de representante
simbólico do surgimento do mundo, as águas teriam a capacidade de fazer “nascer” um homem novo, através da desintegração do mal e redenção dos pecados.
A performance também está presente nas rezas. A performance - movimentação corporal específica e significante empregada durante o ato de cura – manifesta-se como um elemento constituinte do trabalho das rezadeiras. As rezadeiras, através de caminhadas e giros, mãos
espalmadas abertas sobre a cabeça do doente, ou fechadas, segurando um ramo de planta ou cruzes, além de outros passos desse balé terapêutico, expurgam os males e cessam as dores.


Eis a pergunta: como decodificar a performance das rezadeiras? Qual a razão de tais gestos? Cada movimento, cada toque, embora pareçam, por vezes, inconscientes, empreendem, aos olhos de quem recebe tal tratamento, uma veracidade do ofício da reza. Com movimentos sempre vindo do interior com direção ao exterior, de dentro para fora, a rezadeira, ao mesmo tempo em que realiza a cura, está comunicando ao paciente o seu ato de curá-lo, pois “a performance dá ao conhecimento do ouvinte espectador uma situação de enunciação” (ZUMTHOR, 2000, p. 83). Esse doente, por sua vez, além de receptor, integra essa performance na medida em que dela é
participante, e, ainda, ao incorporar-se ao espaço em que ambos, paciente e rezadeira, situam-se.
Em relação à recepção da performance, Zumthor afirma que, situação de oralidade pura, tal como pode observá-la um etnólogo entre populações ditas primitivas, a “formação” se opera pela voz, que carrega a palavra; a primeira “transmissão” é obra de uma personagem utilizando em palavra sua voz viva, que é, necessariamente, ligada a um gesto. A “recepção” vai se fazer pela audição acompanhada da vista, uma e outra tendo por objeto o discurso assim performatizado: é, com efeito, próprio da situação oral, que transmissão e recepção aí constituam um ato único de participação, co-presença, esta gerando o prazer. Quanto à “conservação”, em situação de oralidade pura, ela é entregue à memória, mas a memória implica, na “reiteração”, incessantes variações re-criadoras: é o que, nos trabalhos anteriores, chamei de movência (ZUMTHOR, 2000, p. 77).
Ao desenvolver seu rito gestual, a rezadeira comunica ao paciente que aquela performance não se trata de um gestual qualquer, mas de um ritual de cura. O próprio ambiente onde se desenvolve o tratamento também transmite algo ao paciente. Para entendermos melhor a significação do ambiente para a pessoa que nele está inserido, façamos um paralelo com um artigo de J. Féral, que aborda o conceito de teatralidade:



Você entra numa sala de teatro, escreve J. Féral, onde uma
disposição cenográfica espera visivelmente o começo de uma
representação. O ator está ausente. A peça não começou.
Pode-se dizer que aí há teatralidade? Resposta: Uma
semiotização do espaço teve lugar, o que faz com que o
espectador perceba a teatralização da cena e teatralidade do
lugar. Uma primeira conclusão se impõe. A presença do ator
não foi necessária para registrar a teatralidade. Quanto ao
espaço, ele nos aparece como portador de teatralidade porque
o sujeito aí percebeu relações, uma encenação. (FÉRAL apud
ZUMTHOR, 2000, p. 47-49).



De acordo com Féral, não é preciso a presença física do ator para que haja a teatralidade. O próprio ambiente, no caso o teatro, impõe ao espectador uma percepção distinta de outros locais. Ao adentrar o teatro, o indivíduo sabe que aquele é um recinto onde são encenadas peças e não, por exemplo, são realizadas curas. Pensando sobre esse viés o mundo das rezadeiras, o que podemos compreender? Ora, compreendemos que o doente, ao entrar na casa da rezadeira, e, na maioria das vezes, deparando-se com uma muda de pinhão plantada no jardim, com imagens católicas na estante ou ainda com quadros com orações católicas na parede, percebe alguma diferença presente naquele ambiente, uma espécie de recinto de cura. Essa percepção do espaço
advém de sua formação sócio-cultural.
Portanto, há um condicionamento para que o doente reconheça o local de cura como tal, pois ele precisa partilhar das mesmas informações culturais que a rezadeira, conforme verificamos no
fragmento a seguir:



Outra situação, mais complexa, e mais interessante porque
ambígua. Num lugar público (o artigo diz: no metrô) alguém
fuma; um outro o agride, arranca seu cigarro ou comete uma
outra ação violenta. Para a multidão que enche o vagão tratase
de um acontecimento. Mas alguém nessa multidão sabe que
isso é simplesmente um jogo, montado por uma associação
antitabagística. Há então teatralidade? Para a multidão não.
Mas para o espectador a par do plano, sim. A teatralidade
neste caso parece ter surgido do saber do espectador, desde
que ele foi informado da intenção de teatro em sua direção.
Este saber modificou seu olhar, forçando-o a ver o espetacular
lá onde só havia até então o acontecimento. Ele transformou
em ficção aquilo que parecia ressaltar do cotidiano, ele
semiotizou o espaço, deslocou os signos que ele então pode
ler diferentemente...A teatralidade aparece aqui como estando
do lado do performer e sua intenção firmada de teatro mas
uma intenção cujo segredo o espectador deve partilhar (FÉRAL
apud ZUMTHOR, 2000, p. 47-49).



A partir destas afirmações, podemos perceber que o doente que procura uma rezadeira com ela partilha a idéia de que, através da reza, a cura será obtida. Essa idéia é calcada nas informações culturais de ambos. No entanto, se levássemos uma pessoa que nunca viu uma rezadeira e que não tivesse nenhuma idéia do seu trabalho para uma benzedura, ela poderia até desconfiar de que tal performance poderia ser, na verdade, um ato de cura, mas, certamente, não teria o mesmo grau de compreensão do que uma pessoa que compartilhasse sócioculturalmente esses valores e conhecimentos. Assim como o homem do metrô que vê uma peça onde outros vêem uma agressão, o doente que vai a uma rezadeira vê um meio de cura onde outros só enxergam
um rito gestual.
Após essa reflexão acerca do trabalho da rezadeira através de suas rezas e performances utilizadas, a que conclusões nós chegamos? Podemos dizer que, fugindo à fácil crítica acerca da sobrevivência de tais práticas, e da eficácia ou não de seus gestos, é importante percebermos a rezadeira não como uma sombra de atraso científico, mas como uma espécie de “psicóloga”, que, pelo menos, ameniza o sofrimento espiritual ou psicológico de pessoas doentes. As rezadeiras
também são fortes líderes em suas comunidades, por isso não deveríamos combatê-las, mas aliarmos a força de liderança que essas pessoas exercem junto aos programas governamentais de saúde preventiva, pois fé e medicina sempre estiveram muito próximas na cultura popular.


Revista OPSIS

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