sábado, 31 de outubro de 2009

Jesuítas e medicina no Brasil colonial


Jesuítas e medicina no Brasil colonial

Daniela Buono Calainho
Professora Adjunta do Departamento de Ciências Humanas da UERJ-FFP. E-mail: calainho@globo.com



RESUMO

O objetivo deste artigo é analisar a ação dos jesuítas na área da saúde no Brasil colonial. Os inacianos incorporaram esta tarefa aos árduos ideais missionários e educacionais, mantendo em seus colégios boticas e enfermarias e atuando informalmente como físicos, sangradores e até cirurgiões. A escassez de médicos, pelo menos até o século XVIII, o alto preço das drogas e dos remédios oriundos de Portugal e do Oriente e a sua freqüente deterioração nos navios e nos portos obrigaram-nos a se voltarem para os recursos naturais oferecidos pela terra e para os saberes curativos dos indígenas.

Palavras-chave: Jesuítas- Catequese- Medicina


Formada em 1540, por iniciativa de Inácio de Loyola, a Companhia de Jesus se configurou como uma ordem-modelo de um novo momento da cristandade na Europa. O início dos chamados Tempos Modernos foi de grande renovação espiritual, caracterizado por uma ofensiva da Igreja romana em deter o avanço protestante através da reafirmação de seus dogmas e sacramentos, da hierarquia eclesiástica, da disciplina do clero e do combate a resquícios de paganismo, superstições e comportamentos sexuais vistos como desviantes. Desenhava-se, assim, um amplo projeto de cristianização das massas, de reordenação social e moral, ancorado nos valores legitimamente cristãos, e a Companhia de Jesus surgia neste contexto1.

Estabelecidos em Portugal, coube aos jesuítas a tarefa missionária e educacional em seus domínios ultramarinos, e sua ação na área da saúde integrou estes ideais, onde quer que se tenham fixado2, atuando no tratamento de doenças e epidemias, fundando hospitais, estudando as plantas curativas da região e mantendo eficientes boticas e enfermarias em seus colégios na Europa, na África, no Oriente e no Brasil3.

Os grandes desafios que se impuseram aos portugueses recém-chegados à então Terra de Santa Cruz foram muitos, como a implantação de uma estrutura administrativa, a progressiva ocupação territorial, o assentamento dos colonos, a organização dos primeiros engenhos açucareiros e o enfrentamento de uma geografia, uma flora e uma fauna desconhecidas. Os jesuítas integraram-se ao esforço da travessia atlântica em direção às novas terras americanas. O primeiro Governador-Geral do Brasil, Tomé de Souza, trouxe consigo, em 1549, alguns inacianos, liderados por Manuel da Nóbrega, primeiro Provincial em terras coloniais. Verdadeiro estrategista da catequese, empenhou-se na organização dos aldeamentos para a conversão dos indígenas e na fundação, em 1553, do primeiro estabelecimento de ensino, o Colégio da Bahia, marcando, assim, os ideais que iriam desenvolver no Brasil: a atividade missionária e educacional. A incorporação espiritual do novo território foi missão fundamental a que se dispuseram os jesuítas, viabilizada pelo projeto catequético, expressão de uma vocação universal que caracterizou esta nova cristandade, a partir do século XV, com a expansão do missionarismo4.

Desbravadores da natureza indômita do Brasil quinhentista, os soldados da Companhia de Jesus enfrentaram duros desafios e árduas condições de subsistência: um clima instável, exércitos de insetos, animais selvagens, peçonhentos e mortíferos, como escorpiões, aranhas e cobras e ainda violentos ataques de grupos de nativos agressivos. Ao lado de um discurso edenizador acerca da natureza colonial, inspiradora de tantos encantamentos, descritos pelas penas de cronistas e viajantes, que louvaram à farta sua opulência e riquezas5, os terrores de se viver no Trópico foram também constantemente lembrados. Mas a grandiosidade do projeto missionário de conversão do gentio superaria as inúmeras dificuldades com que se depararam estes clérigos. A força destes ideais foi expressa por ninguém menos do que o Pe. Antônio Vieira, quando afirmara que "o português tem obrigação de ser católico e de ser apostólico. Os outros cristãos têm obrigação de crer a fé; o português tem a obrigação de a crer e mais, de a propagar"6.

Além de trabalharem incansavelmente na difusão da fé cristã, os jesuítas também foram uma grande âncora da saúde na colônia, atestada pela vastíssima documentação das correspondências que mantiveram com seus irmãos em Portugal e no Brasil. Alguns deles vinham de Portugal já formados nas artes médicas, mas a maioria acabou por atuar informalmente como físicos, sangradores e até cirurgiões, aprendendo, na prática, o ofício na colônia, como José de Anchieta, João Gonçalves ou Gregório Serrão. Outros, em meio a obras e cartas, onde comentavam sobre a natureza colonial, dedicaram várias páginas à descrição de ervas e plantas curativas, inaugurando os primeiros escritos sobre a farmacopéia brasileira7. Fernão Cardim, por exemplo, descreveu as propriedades curativas de várias espécies de plantas e árvores em seu livro Tratados da terra e gente do Brasil, escrito entre 1583 e 1601, quando desempenhou o cargo de secretário do padre visitador Cristóvão de Gouveia8.

A escassez de médicos leigos, formados por escolas de medicina na Europa, pelo menos até o século XVIII, fez dos jesuítas os responsáveis quase que exclusivos pela assistência médica no primeiro século de colonização do Brasil9. Ao longo do tempo, foram aperfeiçoando seus conhecimentos mediante contatos com os profissionais leigos residentes na colônia, e ainda pela leitura de importantes obras de medicina, encontradas em muitas das bibliotecas de seus colégios. O do Maranhão, por exemplo, entre seus cerca de 5 mil volumes, vários tomos eram dedicados às artes médicas. Além das obras que vinham de Portugal, muitas foram adquiridas por compra ou doações10.



Boticas e medicamentos

As boticas dos colégios jesuítas foram inigualáveis, em qualquer parte onde estivessem. A do Colégio do Pará, segundo inventário datado de 1760, além de 20 tomos de medicina, continha recipientes diversos, estantes com mais de 400 remédios, fornalhas, alambiques, almofarizes de mármore, ferro e marfim, armários, frascos e potes de várias cores e tamanhos, balanças, pesos, medidas, tachos de cobre, de barro, bacias, prensas, tenazes, enfim, todo um aparato técnico para a confecção dos medicamentos. E com tudo isto era tida como uma botica modesta, comparativamente às existentes nos Colégios da Bahia e do Rio de Janeiro11. Constituídas em geral por uma sala e uma oficina, tinham ainda uma espécie de loja, onde disponibilizavam seus produtos gratuitamente ao público, salvo para os que tinham melhores condições financeiras e os podiam comprar. Os recursos oriundos destas vendas eram reinvestidos na própria botica e na aquisição de novos medicamentos e livros12. Em muitas cidades e vilas, eram as únicas disponíveis e, nas regiões onde existiam outras farmácias, proviam-nas, como foi o caso da botica do Colégio do Rio de Janeiro, que, em 1706, era dirigida por um Irmão, com grandes conhecimentos e estudos, e autor de inúmeras receitas13. Os inacianos possuíam também embarcações que transportavam remédios ao longo da costa, como foi, por exemplo, o caso do Colégio do Maranhão, que, através de sua "Botica do Mar", abastecia o litoral em direção ao norte, até o Pará14.

Os medicamentos que supriam suas boticas vinham do Reino, mas a pouca freqüência de chegada dos navios, as eventuais perdas por deterioração nas embarcações e nos portos e os altos preços obrigaram-nos, ao longo do tempo, a se voltarem para os recursos naturais oferecidos pela nova terra, ajudados pelos conhecimentos dos indígenas na decifração desta natureza estranha. Os jesuítas foram exímios observadores da fauna e da flora brasileira, identificando variadas espécies e cultivando as de efeitos curativos. Estudavam seu modo de ação para os inúmeros males que acometeram a população colonial, elaborando fórmulas e receitas, organizadas metodicamente com o nome do Colégio onde foram criadas, do autor, dos ingredientes utilizados, o peso e a finalidade15.

Levaram para a Europa o conhecimento das virtudes terapêuticas de raízes, caules, folhas, cascas, sumos, polens, minerais e óleos, a exemplo da quina, planta da região da Amazônia, que curava a malária e era conhecida como "mezinha dos padres da Companhia de Jesus"16. A quina chegou a Roma em 1649, levada pelas mãos de um Irmão, e, depois, difundiu-se rapidamente pelo continente; também era chamada de água febrífuga, cuja fórmula básica foi feita no Colégio de Santo Antão, em Lisboa17. De igual modo, a ipecacuanha, erva excelente para problemas respiratórios, teve suas virtudes divulgadas na Europa em 1625, através de um manuscrito de autoria do Pe. Fernão Cardim, onde estavam arroladas várias receitas do Irmão Manuel Tristão, enfermeiro do Colégio da Bahia18. O Pe. Manoel da Nóbrega, por exemplo, remeteu a Portugal algumas conservas de efeito terapêutico, como suco de ananás verde, para "pedras e areias na urina", recomendando que viessem ao Brasil os que deste mal sofressem. E, sobre o tabaco, escreveu que "nesta terra do Brasil todas as comidas são difíceis de desgastar, mas Deus remediou isto com uma erva cujo fumo muito ajuda a digestão e outros males corporais e a purgar a fleuma do estômago"19.

Das fórmulas medicinais dos inacianos, com uso privativo em suas farmácias, citemos uma compilação, datada de 1766, e de autor até então desconhecido, intitulada Coleção de várias receitas e segredos particulares das principais boticas da nossa companhia de Portugal, da Índia, de Macau e do Brasil, compostas e experimentadas pelos melhores médicos e boticários mais célebres que têm havido nessas partes. Aumentada com alguns índices e notícias muito curiosas e necessárias para a boa direção e acerto contra as enfermidades. Este extenso receituário, de mais de duzentos títulos, organizado em ordem alfabética, trazia em cada fórmula o nome do colégio onde foi preparada, a dose dos ingredientes, a indicação e o modo de administrá-la. Dos Colégios no Brasil, por exemplo, constavam trinta e oito receitas da Bahia20, sete do Recife e duas do Rio de Janeiro, a partir das quais é possível levantar alguns dos problemas que assolavam a população colonial: doenças de pele; males venéreos, como a sífilis; verminoses variadas; problemas oculares; anemia; febres; chagas; tumores; dores de cabeça; paralisias; cólicas; males do estômago, do coração e dos ossos; mordidas de cobra; insônias, sem contar, é claro, as enfermidades epidêmicas, como varíola e outras21. Destacou-se desta Coleção de receitas a célebre Triaga Brasílica, composta de dezenas de ervas, plantas, raízes, gomas, sais minerais e óleos, para cura de envenenamentos, ocasionados tanto por ervas e plantas como por animais, além de outras tantas enfermidades: quaisquer dores internas, verminoses intestinais, febres, doenças epidêmicas, doenças "de mulheres", etc. De largo consumo no Brasil e na Europa, vendida a preços altos, foi elaborada no Colégio da Bahia e gerou recursos consideráveis para a instituição22.

As boticas dos outros colégios jesuítas também integraram esta Coleção, a exemplo dos Colégios de Lisboa, Évora, Macau e Goa23. Além das suas próprias, os jesuítas incluíram ainda as elaboradas por médicos afamados, como Curvo Semedo, Jacob de Castro Sarmento, Luis Gomes Ferreira, João Cardoso de Miranda e outros24.

Foram obra dos jesuítas a fundação e a reforma de algumas instituições de saúde no Brasil. Em março de 1582, a armada do almirante espanhol Diogo Flores Baldez, que rumava para o Estreito de Magalhães, aportava no Rio de Janeiro com uma tripulação doentíssima: escorbuto, febres, beribéri, dentre outras, fazendo o Pe. Anchieta mobilizar-se para tratar dos enfermos num barracão toscamente construído na orla do Morro do Castelo. Embora já existisse, desde os inícios da história da cidade, a Santa Casa da Misericórdia foi ampliada e reformada a partir deste episódio25. Já a Santa Casa de São Luís do Maranhão foi criada na última metade do século XVII, considerada pelo Pe. Antônio Vieira como fundamental, tendo que funcionar "perto da casa dos Missionários, aonde se curem todos os enfermos da Aldeia com toda a caridade a quem não tem suas casas por extrema miséria, e pouca caridade dos seus, a qual os nossos procurarão suprir"26.



Desafios

A nova colônia americana assistiu à chegada impiedosa de inúmeras moléstias trazidas pelos portugueses e, ainda, pelos escravos vindos de África, precariamente atochados nos tumbeiros desde finais do século XVI. Assolada por surtos epidêmicos de doenças como malária, sarampo, febre amarela, disenteria e varíola, contou com a enorme habilidade dos jesuítas na observação dos sintomas, na evolução destas moléstias e na aplicação da terapêutica possível. Todos os aldeamentos indígenas na colônia foram alvo da ação jesuítica na área da medicina e da saúde. Em 1574, o Provincial Inácio de Tolosa determinou que em todas as aldeias fossem criadas enfermarias e casas isoladas, que funcionassem como hospital27. O trabalho era intenso: além das epidemias e outras doenças, cuidavam também de índios feridos pelas guerras, de parturientes, drenavam pântanos para melhorarem as condições dos aldeamentos e reforçavam a alimentação dos doentes.

Exemplo notável foi a passagem do Pe. José de Anchieta pelo Brasil, cuja correspondência deixou relatos impressionantes. Tendo como estímulo e exemplo o Pe. Francisco Xavier e sua atuação no Oriente, chegou à Bahia em 1553, aos 20 anos, com o segundo Governador-Geral do Brasil, Duarte da Costa, e neste mesmo ano ajudou na fundação da vila de Piratininga, criando um colégio de nome "São Paulo", em homenagem ao apóstolo. Escrevendo ao próprio Inácio de Loyola, narrou as primeiras dificuldades desta empreitada: "E aqui estamos às vezes mais de 20 dos nossos numa barraquinha de caniço e barro, coberta de palha (...). Isto é a escola, a enfermaria, o dormitório, refeitório, cozinha, dispensa"28. Anchieta aprendeu tupi, escreveu uma gramática, autos teatrais e criou uma "língua geral", no intuito de facilitar a catequese29. Escreveu, em 1554, a alguns irmãos enfermos de Coimbra, que, em Piratininga, servia de médico e barbeiro, curando e sangrando muitos índios "dos quais viveram alguns de que se não esperava vida, por serem mortos muitos daquelas enfermidades"30. Narrou em suas cartas o quão fundamentais eram os jesuítas para os gentios, não só no socorro "com as medicinas", mas também no fornecimento de alimentos, no quadro de escassez que grassava na colônia neste momento. E mesmo para os portugueses, que "parecem que não sabem viver sem nós outros, assim em suas enfermidades próprias, como de seus escravos". Nos soldados da Companhia de Jesus, bradava Anchieta, tinham "médicos, boticários e enfermeiros; nossa casa é a botica de todos, poucos momentos está quieta a campainha da portaria, uns indo, outros vindo, a pedir diversas coisas"31.

Descreveu com detalhes dezenas de animais, a exemplo das diversas espécies de cobras venenosas: sua aparência, como atacam, onde se escondem, de que modo o veneno atua e ainda o tempo de sobrevivência das vítimas. Uma delas era chamada de boicininga, que significa "cobra que tine", "paralizando com seu veneno a vista, o ouvido, o andar e todas as ações do corpo (...), até que no fim de vinte e quatro horas se expira". Em meio a esta multidão de répteis, porém, desabafou que "só o Senhor nos conserva incólumes, e confiamos mais nele do que em contra-veneno ou poder algum humano; só descansamos em Jesus, Senhor nosso, que é o único que pode fazer com que nenhum mal soframos, andando assim por cima de serpentes"32.

Um dos grandes desafios enfrentados pelos jesuítas na prática de suas artes médicas foram as epidemias de varíola que devastaram a população ameríndia33. Tendo atravessado os mares, trazida pelos colonizadores, iniciou seu flagelo no Brasil em 1559, na costa, para depois se alastrar para o norte. No Espírito Santo, por exemplo, dizimou, neste ano, cerca de seiscentos escravos indígenas, e chegou ao auge em 1662, quando faleceram mais de 30 mil dos que estavam submetidos aos portugueses no litoral. Também foram incontáveis os que pereceram no sertão, fugidos das terríveis condições das regiões litorâneas, à medida que a epidemia se alastrava. Nas aldeias jesuíticas, as perdas foram de um terço e, nos engenhos, a mortalidade foi igualmente devastadora34. O padre Leonardo do Vale, numa cruzada inglória contra a doença, acudiu a muitos, narrando as mazelas vividas dramaticamente pelas comunidades ameríndias35. A observação arguta deste cotidiano devastador fê-los perceber variações da doença: algumas brandas, de tratamento mais fácil, outras mais virulentas e mortíferas36.

Anchieta tratou-os com sangrias e com extirpação das partes do corpo já "corrompidas" pela doença, procedimentos, por sinal, considerados como os mais eficazes pelo médico Simão Pinheiro Mourão, quando, em 1694, escreveu o Tratado único das bexigas e sarampo, na época o trabalho mais completo e original sobre o assunto. A chamada água cordial bezoártica contra bexigas e sarampo, cuja fórmula era de autoria do famoso Curvo Semedo, também foi recurso utilizado no tratamento da varíola, constando das boticas jesuíticas e citada na Coleção de várias receitas, como esta: flores de papoulas vermelhas, esquibas (excremento) recentes de cavalo, bezoártico do Curvo, arrobe de bagas de sabugo e água comum. É interessante observar que os jesuítas, como já foi dito, faziam uso de terapêuticas diversas, fundamentados em tratados médicos importantes37.

Também implacável foi a epidemia de sarampo, que, em 1563, agravou a crise demográfica indígena, afetando a economia colonial, nestes tempos dependente da mão-de-obra escravizada nos engenhos açucareiros e da produção de gêneros alimentícios nativos38.



Medicina indígena, pajés demônios

Os olhos dos jesuítas estavam diante de uma sociedade extremamente diferente, cujos costumes, crenças e ritos por vezes os assombraram, exigindo persistência e determinação ao lidar com o canibalismo, com a poligamia, com o incesto, com suas crenças e com a organização, para eles caótica, do modo de vida do indígena. O Novo Mundo povoava-se de ameríndios tidos como bárbaros, ferozes, quase animais, intensificando-se os propósitos jesuíticos de resgatá-los desta espúria condição39. Nóbrega, indignado, via-os como "cães em se comerem e matarem, e são porcos nos vícios e na maneira de se tratarem", "gente de condição mais de feras bravas que de gente racional"40. Para Anchieta, inclusive, a própria integração e convivência tranqüila do indígena com a natureza colonial, para ele avassaladora, perigosa e misteriosa, era claro indício de animalidade41.

À percepção brutalizada e animalesca dos indígenas, associou-se a visão demoníaca, freqüentemente referida nas considerações dos inacianos ao lidar com este outro mundo. Sua habitação era a própria visão do Inferno, como narrou Fernão Cardim, diante de tal ajuntamento de índios: "E como a gente é muita, costuma ter fogo de dia e noite, verão e inverno, porque o fogo é a sua roupa e eles são mui coitados sem fogo. Parece a casa um inferno ou labirinto, uns cantam outros choram, outros comem, outros fazem farinhas e vinhos, etc. e toda casa arde em fogos"42. A incompreensão daquele espaço, gigantesco, cuja entrada eram "buracos", superpovoado, sem distinções de nenhuma espécie, sem ordem, sem hierarquias, sem divisões de tarefas aparentes, sem normas familiares, causou enorme espanto e a certeza de que os aldeamentos, estes sim, território cristão, corrigiriam estas distorções43. A ausência de leis, o desconhecimento total de regras, levando-os à exposição de seu corpo nu e à ingestão de outros, eram os responsáveis pelo sentimento de repúdio ao ameríndio44.

Outro exemplo do quão intenso foi o olhar demonológico dos jesuítas e de muitos cronistas leigos e eclesiásticos sobre o Brasil está na percepção das práticas mágico-religiosas dos gentios, cujos principais protagonistas eram os pajés, agentes do espaço do sagrado, mas também agentes satânicos. A possibilidade de compreensão daqueles fenômenos estava na associação com os rituais sabáticos da feitiçaria européia, assimilando estes cronistas o que viam através de seus códigos culturais45. Assim, a empreitada hercúlea da catequese esbarrou ainda na ação nefasta do xamanismo tupi, destacando-se, no conjunto destes ritos, variados procedimentos curativos, vistos pelos inacianos como ilegítimos e demonizados. Este conflito se deu tanto no plano espiritual, como nas artes terapêuticas, pois os pajés eram considerados feiticeiros e embusteiros46. Citemos Nóbrega novamente, quando, em 1549, na Informação da terra do Brasil, descreve um ritual das chamadas "santidades" ameríndias47:

Acabando de falar ao feiticeiro, começam a tremer, principalmente as mulheres, com grandes tremores em seu corpo, que parecem demoninhadas (como de certo o são), deitando-se em terra, e escumando pelas bocas, e nisto lhes persuade o feiticeiro que então lhes entra a santidade; e a quem isto não faz tem-lho a mal. Depois lhe oferecem muitas coisas e em as enfermidades dos gentios usam também estes feiticeiros de muitos enganos e feitiçarias48.

Detentores do saber nas comunidades indígenas, o pajé era alvo importante do projeto missionário. Era preciso desmascará-lo, mostrá-lo nos seus embustes e falsidades, apresentá-lo como instrumento demoníaco e também convertê-lo, abrindo espaço para o verdadeiro e único saber, que era do Deus cristão49. Suas práticas curativas foram duramente detratadas pelo próprio Anchieta:

Já não ousas agora servir-te de teus artifícios, perverso feiticeiro, entre povos que seguem a doutrina de Cristo: já não podes com mãos mentirosas esfregar membros doentes, nem com lábios imundos chupar as partes do corpo que os frios terríveis enregelaram, nem as vísceras que ardem de febre, nem as lentas podragas nem os baços inchados. Já não enganarás com tuas artes os pobres enfermos que muito creram, coitados! Nas mentiras do Inferno50.



Cura e catequese

Os inacianos viam-se como médicos espirituais e corporais, expressando, assim, uma inequívoca correlação entre a cura dos corpos e a perspectiva da conversão à fé cristã51. O discurso jesuítico, presente nas várias correspondências, vai mostrar que o último suspiro de muitos foi precedido de batismos, como narrou Anchieta sobre o caso de uma índia, que, já sem esperanças de sobrevivência, pediu o sacramento e rapidamente recuperou a saúde. Anchieta dizia ainda que o batismo "apagava a malignidade das doenças", causando verdadeiros milagres de cura52.

Em uma de suas cartas, escrita em 1554, contou que um índio fora gravemente ferido no braço. O sangue escorria-lhe das veias sem parar, não havendo meio de estancá-lo e "depois de breve expiração de seus pecados recebeu o santíssimo corpo de Cristo, e repentinamente o moribundo reviveu"53. A intenção era mostrar a recompensa da cura pela conversão ao cristianismo, como afirmou em outra carta, de 1556, explicitando claramente esta correlação: "fazemos isto na intenção de preparar o recebimento do batismo (...), por igual motivo é que desejamos assistir as parturientes a fim de batizar mãe e filho. Assim acontece atender-se a salvação do corpo e da alma"54.

De importância fundamental para a catequese, o batismo era o signo por excelência de um novo e verdadeiro nascimento, que não é físico, mas espiritual. Signo da aceitação da conversão e de sucesso, para os missionários, de seu papel de evangelizadores55. Nas cartas jesuíticas datadas dos anos difíceis em que a varíola devastou parte da população indígena, para além do trabalho insano de percorrer léguas e léguas acudindo os doentes, a angústia dos padres voltava-se para o grande número dos que faleciam sem os sacramentos.

A associação entre vida, saúde, conversão e salvação pressupunha o oposto: a recusa da fé cristã poderia levar à morte. Escrevendo em 1560, de Piratininga, ao Provincial Geral da Companhia, contou Anchieta que, chegando a uma aldeia para acudir a um índio gravemente enfermo, "para lhe dar algum remédio, principalmente para sua alma" (grifos meus), persuadiu-o a que aceitasse o batismo e abandonasse seus "costumes passados". Rebelde, indignado, negou veementemente a oferta por várias vezes, até que, já bem agravado seu estado, "e permanecendo na mesma obstinação, no outro dia, morreu"56.

A cura trazida pelo jesuíta, intermediada pelo batismo, era a legítima, proporcionada, em última instância, pelo Deus cristão57. A efervescência dos costumes ameríndios, no discurso dos padres da Companhia, poderia ser punida com o castigo divino, por doenças e morte, "porque os que se apartaram de nós outros não fazem senão morrer aqui e acolá, por suas malditas habitações, sem confissão, uns amancebados; outros levados e comidos por seus contrários"58.

Em síntese, a vastíssima documentação jesuítica descreveu lendas indígenas, línguas, tipo físico dos nativos, seus costumes e modo de vida, religião, embates entre tribos. Ao longo do tempo e dos caminhos que trilharam para o estabelecimento e a consolidação da Companhia de Jesus no Brasil, fundando colégios e seminários, e tentando cumprir com o máximo êxito sua missão evangelizadora e educacional, perceberam o Brasil com os olhos de naturalistas, botânicos, zoólogos, geólogos, etnógrafos, médicos, sangradores, cirurgiões. Os padres da Companhia de Jesus cumpriram com precisão seu modelo de atuação, constituindo-se um de seus princípios básicos a capacidade de serem "polivalentes", realizando um pouco de tudo para o bem correr de sua divina missão59.

Para além do que vinha da farmacopéia européia e oriental, a natureza brutalizada e violenta do mundo colonial ofereceu aos inacianos ervas, raízes, enfim, os remédios para as curas, auxiliados pelos conhecimentos dos nativos, graças a quem os jesuítas adensaram suas fórmulas e práticas curativas. No entanto, foram estas mesmas práticas que serviram de apoio ao projeto catequético inaciano, projeto aculturador, que, em nome da fé cristã, marcou presença decisiva no mundo colonial.
Notas
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-77042005000200005&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

Revista Tempo - UFF

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