quinta-feira, 29 de outubro de 2009

A Imortalidade da Alma: O “Outro Mundo” Céltico, Mito e Rito Funerário


A Imortalidade da Alma:
O “Outro Mundo” Céltico, Mito e Rito Funerário
(parte 2 - final)

Vitor Soares Lares
Bacharel em História
CEIA – UFF
vitorlares@yahoo.com.br

Em torno do depósito do chefe encontram-se outros depósitos funerários periféricos, associados a chefes vassalos ou a sub-chefes.
Em cada um destes depósitos, organizados em torno de uma chefia mais ou menos importante existem enterros secundários (quase sempre inumações) muito menos bem providas. Homens raramente têm armas e mulheres joalheria, mas há algumas pretensões sobre objetos do dia-a-dia. Esses depósitos ocorrem normalmente em grupos de 4 a 10, mas grupos de 100 depósitos já foram conhecidos. Os enterros secundários variam entre 30 e 40 sendo o maior deles constituído de 126. O fim desta sociedade parece ter sido abrupto e inexplicado, com muitas fortificações destruídas, no entanto esta forma de organização, social e também funerária, tem alguma continuidade no período Lá Tene, embora a cremação vá ganhando espaço como rito oficial a ponto de tornar-se generalizada no séc I a.C., como atesta César ao relatar a suntuosidade dos
funerais na Gália, no qual todos estes objetos, que vemos em hallstatt sendo enterrados com os chefes, são queimados com o corpo por ocasião do funeral gaulês. (Bello Gallico, Líber VI, cap19)
A Tumba de Hochdorf é um representante classica da tradição funerária do período Hallstatt. A figura 1 ilustra a forma de construção dos depósitos funerários, nesse caso o depósito de um grande chefe:
Figura 1 – Desenho da construção do tumulus do chefe de Hochdorf
http://www.iath.virginia.edu/Barbarians/Sites/Hochdorf/Hochdorf_Finds.html


A figura 3, por fim, retrata o interior da câmara principal. Percebemos inúmeras riquezas nela contida, crateras, chifres, carro de guerra, aparelho de jantar.

Figura 3 – Reconstrução da câmara central do tumulus de Hochdorf.
http://www.iath.virginia.edu/Barbarians/Sites/Hochdorf/Hochdorf_Finds.html

O Sepultado repousa sobre um sofá de bronze com a cabeça orientada para o Oeste. Boa parte dos artefatos presentes eram importados da Etruria e regiões helênicas.

A presença destes objetos na tumba poderia indicar a crença celta num banquete do outro mundo, no uso desses objetos no pós-morte ou de relevância dos objetos materiais no momento da morte? Ora as fontes clássicas que analisamos parecem emitir uma opinião contrária, enaltecendo o caráter concreto da crença num outro mundo, enquanto as fontes medievais o caracterizam de forma dúbia, permitindo, pela passagem das ovelhas selecionada do Mabinogion, mesmo inferira possibilidade de uma crença em reencarnação.
Acreditamos que não é possível assegurar que os celtas tenham acreditado em reencarnação. Embora a vida num outro mundo fosse concreta e provavelmente esperada, o processo metafísico da reencarnação pode ser inferido apenas de um trecho de uma fonte medieval, podendo caracterizar, portanto, uma exceção e não uma norma em vista dos problemas que enumeramos ao tratar tais fontes. Guardaremos a possibilidade de uma pesquisa mais aprofundada sobre o assunto para uma próxima ocasião.
Continua, contudo, a necessidade de relacionar o sepultamento de objetos nos funerais celtas de todas as fases, especialmente Hallstatt, com algum aspecto de sua cultura. As crenças descritas pelos comentadores não parecem dar conta deste aspecto que parece conflitante: Uma vida em outro mundo seria feita à imagem da desse, certamente , mas os objetos seriam necessários lá?
Um ponto de aproximação entre o mito e o rito funerário nas sociedades celtas ocorre certamente pelo hábito de sepultar com as cabeças voltadas para o Oeste, como WAIT (1995: 500) observa nas tradições do Norte da França e Oeste da Alemanha, Hallstatt e lá Téne. na mitologia continental, o lugar dos deuses e dos seres do Outro Mundo. Contudo parece que a influência das crenças que nos chegaram para por aí.
Coloco-me aqui solidário às opiniões da pesquisadora Adriene Tacla, após analisar as relações de hospitalidade e comensalidade na sociedade celta de Vix E Hochdorf:



“A deposição desses serviços de banquete nas tumbas dos chefes de Vix e
Hochdorf, ao contrário do que pressupões Miranda Green (1997:68-69), não
representaria traços de um banquete funerário, nem tampouco constituiria
uma evidência da existência, na primeira Idade do ferro, da crença céltica do
Banquete do Outro Mundo (...) honrando o morto com a deposição de bens
de grande densidade simbólica (grifo meu), que evidenciassem o status e o
prestígio do morto (...) os aliados e descendentes do chefe e de seu grupo de
parentesco construíam seu próprio status ante a tribo e a rede de aliados,
possibilitando a continuidade das relações com a linhagem do morto e seu
sucessor na chefia da tribo.” (TACLA, 2001: 32).


Uma análise dos objetos da tumba de Hochdorf à luz da complexa sociedade de chefia que a construiu permitiu perceber que a suntuosidade dos funerais é mais importante para as relações entre os vivos do que para o morto, este se beneficiaria apenas à medida que seria recebido no outro mundo com igual status ao que teve em vida.
Tentadora é a possibilidade de estender essa dinâmica à sociedade gaulesa, que apresentava, em suas peculiaridades, relações tão ou mais complexas de chefia, lealdade, acordos, tensões e status, relações percebidas por César em sua famosa afirmação de que havia na Gália facções em cada cidade, em cada vila, em cada casa e seus líderes eram reputados, entre outras , pela quantidade de pessoas que orbitavam a seu redor na complexa relação de lealdade e proteção.
Se as relações sociais gaulesas assemelham-se como aparentam com as relações do período de Hallstatt, podemos inferir que em suas cremações os ritos funerários tinham valor simbólico aproximado. Afirmando as novas chefias sua própria qualidade diante da qualidade do predecessor morto, medida pela quantidade de bens, animais e mesmo pessoas (como esposas e escravos, dependendo do período) depositados na Pira funerária1.
Dessa forma, a presença de objetos, assim como a própria suntuosidade de alguns sepultamentos celtas são claramente formas afirmativas de elites, firmando-se e reafirmando-se no poder através de gestos simbólicos como a deposição de objetos e legitimando-se a partir da legitimidade do antigo chefe falecido.
Em relação aos funerais celtas nas ilhas, seria necessário um estudo mais aprofundado de suas peculiaridades, onde a presença forte de uma cultura pré-histórica anterior a ocupação celta provavelmente será percebida como modificador relevante.

Pequena Conclusão

Uma vez que por nenhuma fonte escrita nos chegam relatos dos funerais celtas, só podemos tentar encontrar um elo de coerência entre suas crenças religiosas e a prática funerária se percebermos o quanto a religião celta não se separava da prática política, e das relações de status social.
A pulverização da cultura celta pela Europa e Ilhas Britânicas é mais um fator que contribui para a dificuldade de generalizar quaisquer características da “religião celta”, que tem um forte apelo local, inclusive no tocante às divindades cultuadas. Isto nos leva a crer que mesmo as crenças druídicas, apesar da aparente unidade de seus praticantes, possam ter variações regionais ordenadas para melhor acomodação das relações de poder locais.
Podemos perceber através desta pequena análise, contudo, que o rito funerário celta parece ter se relacionado mais diretamente com a ordem social instituída do que com as crenças religiosas sobre o pós-morte, ao menos com as que nos chegaram via testemunhos escritos.
Os objetos sepultados com os mortos, assim como seus escravos ou animais, seriam distintivos da qualidade do morto quando vivo, identificadores de seu status e legitimadores do status de sua descendência e não objetos utilitários, destinados ao uso do morto no pós-vida.
Cumpririam assim uma dupla função, de garantir ao morto a manutenção de seu status no outro mundo e aos vivos a legitimação da reordenação social necessária pela morte do antigo chefe.

Nota
1 O costume de atirar à pira funerária animais e mesmo pessoas, incluindo as esposas e escravos do falecido, é mencionado por César como tendo sido uma prática antiga entre os gauleses, tendo sido abandonada pouco tempo antes de sua visita à Gália. (Bello Gallico, v.19, liber VI: 129) Não existindo indício de sua ampla disseminação no mundo celta.


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Revista Brathair

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