Hospitais: espaços de cura e lugares de memória da saúde
Gisele Sanglard
Doutora em História das Ciências da Saúde, Pesquisadora Visitante, Departamento de Patrimônio Histórico-Casa de Oswaldo Cruz-Fiocruz, av. Brasil 4365, Manguinhos, 21040-900, Rio de Janeiro – RJ. E-mail: <sangla rd@coc.fiocruz.br>.
Introdução
A década de 20 significou, entre outras coisas, o momento em que o Estado dá os primeiros passos na direção da organização da assistência hospitalar geral, até então a cargo da Irmandade da Misericórdia. Essa guinada na organização da saúde pública está intimamente ligada ao processo de reforma que o médico Carlos Chagas2 põe em prática, à época, na cidade do Rio de Janeiro. Nos seis anos em que esteve à frente do Departamento Nacional de Saúde Pública, são vários os hospitais abertos por Chagas: o primeiro, o Hospital São Francisco de Assis, data de 1922 e foi instalado no antigo asilo de Mendicidade, na região do Mangue; seguido, em 1924, do Abrigo-Hospital Arthur Bernardes, para crianças, estabelecido nas dependências do Hotel Sete de Setembro, no Morro da Viúva, Botafogo; e do Hospital Pedro II, no bairro rural de Santa Cruz, localizado em uma antiga escola e destinado aos casos de malária. Na mesma época, o médico dá início às obras de três hospitais: o Hospital Gaffrée e Guinle (1924-1929); o Hospital e Instituto do Câncer3 (1927-1934) – este último veio a se tornar Hospital Barata Ribeiro, destinado à ortopedia; e o Hospital de Clínicas Arthur Bernardes, da Faculdade de Medicina (1926-1934), obra iniciada e abandonada no início da Era Vargas. Tais edifícios, em grupo ou separadamente, nos falam muito desse momento peculiar da história da Saúde Pública no Rio de Janeiro, bem como da própria cidade.
Este artigo pretende analisar o Hospital Gaffrée e Guinle, construído durante a década de 1920, na cidade do Rio de Janeiro, como resultado do processo de tomada de controle, pela administração pública, da gestão da assistência hospitalar na capital federal. A instituição representa experiência singular na cultura de elite brasileira: sua construção deveu-se à filantropia do industrial carioca Guilherme Guinle4 – pouco valorizada pela historiografia e, portanto, quase desconhecida. O hospital é igualmente fruto de um projeto da Inspetoria da Lepra e das Doenças Venéreas (ou dos médicos que dela fizeram parte) e do próprio Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP), no momento da Reforma da Saúde Pública (1919-1920), estruturada e efetivada pela gestão Carlos Chagas à frente do DNSP. Confluência de vários interesses e projetos, essa organização sintetiza o espírito de uma época.
No Rio de Janeiro, a partir dos anos de 1920, percebem-se críticas, recorrentes, à falta de leitos na cidade. Eram médicos, intelectuais e políticos que, a reclamar dessa carência que colocava a medicina nacional e o próprio país em desvantagem com relação aos países vizinhos, ganhavam a imprensa leiga e especializada.
O quadro da assistência hospitalar no Rio de Janeiro permite perceber a existência de inúmeras instituições de auxílio mútuo ligadas a irmandades, em especial à Irmandade da Misericórdia – com seus diversos hospitais, Ordens Terceiras, comunidades de imigrantes – ou às Forças Armadas; a presença do Estado revelava-se apenas no que tange aos hospitais de isolamento (doenças contagiosas).
O Brasil, herdeiro da tradição lusa de assistência, encontrou na Irmandade da Misericórdia – ainda que se tratasse de instituição privada – o espaço público de atendimento e acolhimento. Desde a sua criação em Lisboa, ao final do século XV, a Irmandade viveu sob o padroado régio e exerceu o monopólio da gestão hospitalar. Na Colônia, no Império e nos primeiros anos da República, a Santa Casa da Misericórdia manteve a hegemonia da assistência médica no Brasil. Somente em princípios do século XX essa instituição perde lugar para outros espaços de cura, ligados diretamente às políticas de saúde. Constitui característica da colonização portuguesa a difusão das irmandades leigas de devoção e das Ordens Terceiras, que vieram a exercer importante papel de difusão da fé católica.
Muitas dessas irmandades e Ordens Terceiras sustentaram espaços de caridade e de assistência voltados para os "irmãos". As grandes exceções foram a Irmandade do Santíssimo Sacramento de Nossa Senhora da Candelária, que mantém, desde o século XVIII, o Hospital dos Lázaros – renomeado Hospital Frei Antônio – e a Irmandade da Misericórdia, cujas obras eram destinadas aos "irmãos" e aos pobres da cidade.
Assim, a Misericórdia tornou-se sinônimo de socorro aos desvalidos. O sociólogo pernambucano Gilberto Freyre (2000) chama a atenção para a mística que cercava os donativos e legados concedidos às Irmandades, notadamente à Misericórdia, a ponto de tais práticas tornarem-se uma das marcas da vida religiosa do Brasil na virada do século XIX para o século XX. Não só por seu caráter religioso e caridoso, como também pelo prestígio social que lhes era agregado desde os tempos coloniais, uma vez que a hierarquia das Irmandades refletia a hierarquia social existente. Assim, ser irmão da Misericórdia era símbolo de prestígio, da mesma forma que o era – guardada a devida hierarquia – participar das outras Irmandades e Ordens Terceiras.
Apesar dessa dependência, os serviços encontravam-se bem organizados, como mostra o viajante francês Emile Allain, que publicou, já ao final do Império brasileiro (1822-1889), um relato sobre a cidade do Rio de Janeiro e a administração imperial na segunda metade do século XIX. O autor dedicava parte de seu livro à análise dos hospitais e hospícios, estabelecimentos e sociedades de beneficência existentes na capital do Império. Com relação à assistência hospitalar, afirmava Allain:
La municipalité de Rio-de-Janeiro ne possède aucun hôpitaux, et le gouvernement brésilien nen maintient directement quun seul; l'hôpital maritime de Santa Isabel, situé à Jurujuba, dans la province de Rio-de-Janeiro, et spécialement est destiné aux marins, ou passagers atteints de maladies contagieuses.
Le service de lassistance publique est cependant fort bien organisé. Il est à la charge dune opulante société particulière, lIrmandade da Santa Casa da Misericórdia [...] à laquelle lEtat accorde en retour certains faveurs (ALLAIN, 1886, p. 231-232).
No que tange à questão da assistência hospitalar, o período do Oitocentos marcou considerável crescimento da rede hospitalar na cidade. Embora permanecesse muito dependente das associações de auxílio mútuo e de caráter privado, a rede passou a contar, além do Hospital da Misericórdia, com o Hospital dos Lázaros, mantido pela Irmandade do Santíssimo Sacramento de Nossa Senhora da Candelária; o Hospital Real Militar e o Hospital Central da Marinha, destinados às Forças Armadas; e os hospitais para irmãos leigos ou confessionais das diversas Irmandades e Ordens Terceiras, como o Hospital da Venerável e Archiepiscopal da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Monte do Carmo e o Hospital da Venerável Ordem Terceira de São Francisco da Penitência. O século XIX viu surgir o Hospital da Venerável Ordem Terceira dos Mínimos de São Francisco de Paula (1813); o Hospital do Corpo de Bombeiros (1841); o Hospital da Brigada Militar (1848); o Hospital de São João de Deus (1854); o Hospital da Real e Benemérita Sociedade de Beneficência Portuguesa; o Hospital Paula Cândido (1853); a Policlínica Geral do Rio de Janeiro (1882); o Hospital de São Sebastião (1889); o Hospital Copacabana (1890); e o Hospital Evangélico do Rio de Janeiro (1896). Nesse período, a Misericórdia ganhou novos hospitais, com a abertura do Hospício Pedro II para alienados (1841), seguido do Hospício de São João Baptista da Lagoa (1852); do Hospício de Nossa Senhora da Saúde (1853); do Hospício de Nossa Senhora do Socorro (1855); e do Hospital de Nossa Senhora das Dores (1884).
É certo que, desde 1881, o Hospital da Santa Casa da Misericórdia contava com a ajuda da Policlínica Geral e, a partir de 1899, da Policlínica de Botafogo – instituições filantrópicas destinadas ao atendimento gratuito da população. Vale ressaltar que as Policlínicas surgiram nos reinos germânicos e no Império Austro-Húngaro; contudo, nesses lugares seu desenvolvimento foi distinto: no primeiro caso, tratava-se de instituições públicas e vinculadas às Faculdades de Medicina, lugar por excelência das aulas práticas, caracterizando-se pelo reduzido número de leitos e pela diversidade de doenças ali tratadas, o que as distinguia dos hospitais (BUETTZINGSLOEWEN, 1997). No Império Austro-Húngaro, constituíam-se em organizações privadas, com perfil marcadamente beneficente (EDLER, 1992, p. 223 et seq.).
Com forte influência da experiência austríaca, a Policlínica do Rio de Janeiro foi criada em dezembro de 1881, por iniciativa dos médicos João Pizarro Gabizzo, Antônio Loureiro de Sampaio e Carlos Arthur Moncorvo de Figueiredo, tendo por beneméritos o imperador Pedro II e a imperatriz Tereza Cristina, além de grande número de doadores, responsáveis por sua fundação e manutenção. O hospital começou a funcionar em fevereiro de 1882, e garantia atendimento gratuito à população carente; ao mesmo tempo, assim como a Santa Casa da Misericórdia, cobrava daqueles que podiam pagar. Dentre seus objetivos, sobressaía a preocupação com o ensino médico.
Já a Policlínica de Botafogo foi criada pelo médico Luiz Barbosa em fins de 1899, e iniciou seus atendimentos em junho de 1900. Sua marca mais forte residia na atuação paroquial, restrita aos moradores de Botafogo e adjacências. Instituição privada, era mantida por seus protetores, todos moradores daquele bairro. Tinha por principais benfeitores o conselheiro Catta-Preta, Eugenio José de Almeida, Eduardo P. Guinle – de quem Luiz Barbosa era médico particular –, Candido Gaffrée, o senador Antonio Azeredo, John Gregory e Oswaldo Cruz (POLICLÍNICA DE BOTAFOGO, 1922).
Nos primeiros vinte anos do século XX, a rede hospitalar da cidade do Rio de Janeiro não passou por alterações expressivas em relação ao final do século anterior. O complexo da Santa Casa da Misericórdia ganhou mais dois integrantes: a Policlínica das Crianças (1909) e o Hospital de São Zaccharias (1914), ambos destinados ao atendimento a crianças, abrangendo o período pré-natal, o aleitamento e a puericultura – o primeiro, destinado às crianças da Zona Norte da cidade, e o segundo, às crianças da Zona Sul. Integrante do mesmo complexo, o Hospital de Nossa Senhora das Dores restringiu-se, no mesmo ano, ao tratamento de mulheres tuberculosas. Vale ressaltar que, muitas vezes, a abertura de novos hospitais e/ou enfermarias pela Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro atendia a anseios da Faculdade de Medicina – cujo hospital universitário era o Hospital da Misericórdia –, que negociava com a Irmandade a ampliação dos espaços para seus alunos. Acrescentava-se, assim, mais um ingrediente à já bastante tensa relação entre ambas as instituições (cf. OFÍCIOS FMRJ).
À mesma época também foram abertos na cidade: hospitais ligados às entidades ou sociedades de auxílio mútuo, como o Hospital Espírita (1912), para atendimento dos fiéis ao espiritismo; o Hospital dos Ingleses; o Hospital Oswaldo Cruz, construído no campus do Instituto Oswaldo Cruz (IOC) e voltado para doenças tropicais (malária e doença de Chagas) e endemias estudadas pelos pesquisadores da instituição; além de diversas casas de saúde.
Foi somente com a reforma da Saúde Pública, ocorrida em 1919, que se verificaram os primeiros sinais de mudança nesse quadro. A reforma teve por resultado a criação do Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP), com ação direta na capital federal (Rio de Janeiro) e no território do Acre, além de funcionamento nos estados através de convênios. Sua direção foi entregue ao mentor, Carlos Chagas, à época diretor do IOC. A estrutura estava baseada em três diretorias: Saneamento e Profilaxia Rural, às quais cabia gerir e executar os convênios; Serviços Sanitários Terrestres (na capital federal); e de Defesa Sanitária Marítima e Fluvial.
Este artigo estará centrado nas ações da Diretoria de Serviços Sanitários Terrestres que serviriam de modelo para as atividades nos estados. A Diretoria dividia-se em Inspetorias Profiláticas, a saber: Fiscalização de Gêneros Alimentícios; Engenharia Sanitária; da Tuberculose; Estatística Demógrafo-sanitária; Fiscalização do Exercício da Medicina, Farmácia, Arte Dentária e Obstetrícia; da Lepra e Doenças Venéreas; e de Profilaxia Marítima. Suas proposições foram definidas na edição do novo Regulamento Sanitário (1920), e notadamente nas ações da Inspetoria de Profilaxia da Lepra e das Doenças Venéreas, que vão dar corpo às proposições de Carlos Chagas para a Assistência Hospitalar.
Logo de início se fez sentir a preocupação com a Assistência Hospitalar. Em 1920, em mensagem ao Congresso Nacional, o presidente Epitácio Pessoa advertia os parlamentares para o fato de que o desenvolvimento dos serviços de saúde tornava necessária a melhoria da assistência hospitalar da capital; lembrava ainda que o hospital da Santa Casa da Misericórdia já não suportava o grande número de pacientes em busca de atendimento; e defendia a urgente criação de um hospital ligado à Faculdade de Medicina (BRASIL, 1920).
Esse tema foi recorrente nas mensagens presidenciais, durante os anos subseqüentes. As comunicações alertavam para a precária situação hospitalar da capital republicana e, sobretudo, para a insuficiência de hospitais gerais. No relatório do DNSP datado de 1922, Carlos Chagas mencionava a criação de hospitais regionais e rurais para atender à campanha de saneamento rural (BRASIL, 1923, p. 197). Em discussões na Câmara dos Deputados acerca da Reforma da Saúde Pública, Chagas salientava a deficiência da rede de assistência médico-hospitalar no país, tanto em relação aos preceitos modernos da higiene nos hospitais de isolamento, quanto no que se refere ao atendimento das "nosologias habituais", para as quais a falta de leitos constituía motivo de crítica recorrente. Em tal contexto, a tuberculose, as moléstias infantis e o atendimento aos alienados representavam as grandes preocupações do diretor da Saúde Pública, seja por questões do contágio, da falta de cuidados específicos para os recém-nascidos, seja pelos vícios no tratamento dos alienados.
Vale ressaltar que, desde 1918, Carlos Chagas já defendia a abertura de novos hospitais na cidade, como em seu discurso durante a homenagem aos médicos baianos no Derby Clube do Rio de Janeiro (1918; BIBLIOTECA VIRTUAL CARLOS CHAGAS, 2003):
O Brasil, senhores, necessita de outros e modernos hospitais, que possam atender a condições permanentes e a eventualidades epidêmicas inevitáveis. Possuímos, é certo, uma instituição benfazeja, cujos serviços seculares devem merecer a gratidão e o apreço maior de todos os Brasileiros; a Santa Casa de Misericórdia, porém, a menos que a pudessem ampliar em notáveis proporções, não pode hoje prover as necessidades de uma assistência hospitalar satisfatória em toda a Capital da Republica e zonas limítrofes, nem ainda atender a surtos epidêmicos de desusada intensidade.
Pensamos que o melhor, no assunto, seriam hospitais destinados a grupos de doenças, com adaptações espaciais, nos quais funcionariam serviços permanentes de assistência aos casos da nosologia habitual, e haveria a possibilidade de instalações urgentes para atender á ocorrência de grandes epidemias. Desse modo um hospital geral além do que existe, o de São Sebastião, ou este ampliado, para doenças infecciosas, agudas e crônicas, outro para doenças da nutrição, um terceiro para crianças, e, finalmente, um ultimo, destinado a afecções ou doenças cirúrgicas, viriam preencher uma das grandes lacunas da nossa administração sanitária, a assistência hospitalar.
Além de que, para os intuitos de salvaguardar a vida de Brasileiros, não podemos restringir nossas vistas á Capital do país, quando no interior grassam endemias mortíferas, com ausência absoluta de quaisquer medidas necessárias. Hospitais regionais, nas zonas de endemias intensas, viriam atender a uma das indicações sanitárias e de assistência publica mais urgentes em nossos sertões.
O discurso de Chagas encontrou eco no Congresso Nacional. Dentre as iniciativas, ressalta-se o chamado Projeto Mascarenhas, que propôs, em 1920, a construção de três hospitais com capacidade mínima de mil leitos cada um, a expensas do Poder Executivo. O projeto foi alvo de inúmeras críticas, como as publicadas no Jornal do Commercio, edição de 24 de julho de 1920. A discussão travada nas páginas desse periódico pelo professor Otávio Ribeiro da Cunha baseava-se em questões como assepsia, dimensão do terreno e espaço destinado a cada doente. Na opinião do médico, um hospital de mil leitos só evitaria o problema da superpopulação se construído em terreno bastante grande, onde deveriam ser mantidas as distâncias mínimas entre os pavilhões. Para reforçar sua idéia, Ribeiro da Cunha citava como exemplos hospitais de Hamburgo e de Berlim.
O Projeto Mascarenhas baseava-se nos estudos do médico José Mendonça, que assinava, nas páginas dos periódicos correntes, vários artigos sobre a questão da assistência hospitalar no Rio de Janeiro (ANAIS DA CÂMARA, 1920). Vale chamar atenção sobre seu artigo publicado na Revista do Brasil de 1924, e transcrito na revista Brazil Médico do mesmo ano. Embora posterior ao projeto, a matéria levanta um balanço das idéias defendidas pelo médico nos últimos anos. Mendonça defende a necessidade da construção de quatro hospitais, com capacidade de mil leitos cada um, para suprir a carência de leitos na cidade (MENDONÇA, 1924). Sua concepção de organização hospitalar é de forte inspiração austríaca. Assim, nas cidades, onde os terrenos eram mais caros, deveriam localizar-se os hospitais destinados a atender as vítimas de acidentes (rua e trabalho) – as Emergências; os hospitais para doentes "curáveis" (internações curtas) – as Policlínicas; e, para as parturientes – as Maternidades. Já no campo, onde os terrenos eram mais baratos, seriam instaladas as casas de convalescentes, os sanatórios para tuberculosos, os hospitais de alienados, e os sanatórios destinados a "nervosos e viciados", segundo os próprios termos do autor.
É nesse contexto que sobressai a criação do Hospital Gaffrée e Guinle. Se, de um lado, os grandes hospitais com capacidade de no mínimo mil leitos, propostos por médicos e políticos, não puderam ser implantados; de outro, adaptaram-se espaços já existentes e construíram-se novos edifícios, que atendiam às modernas exigências da higiene hospitalar, embora com menor número de leitos disponíveis. Em 1922, a transformação do antigo Asilo de Mendicidade, de 1870, em Hospital S. Francisco de Assis, ligado ao DNSP, é considerada como a primeira resposta oficial à falta de leitos. No mesmo ano deu-se início às obras de construção, no bairro rural de Jacarepaguá, do Asilo-Colônia de Curupaity para leprosos, inaugurado em 1927, e ligado à Inspetoria de Lepra e das Doenças Venéreas.
Em seguida, em 1924, inicia-se, graças à benemerência de Guilherme Guinle, a construção do Hospital Gaffrée e Guinle, ligado à Inspetoria de Lepra e Doenças Venéreas e inaugurado em 1929. No mesmo ano de 1924, parte do antigo Hotel Sete de Setembro é transformada no Hospital-Abrigo Arthur Bernardes, ligado à Inspetoria de Higiene Infantil. Ainda podem ser citadas as obras do Hospital do Câncer – iniciadas em 1927, também graças à benemerência de Guilherme Guinle –, ligado à Inspetoria de Lepra e Doenças Venéreas; o hospital, porém, jamais chegou a constituir-se em centro de pesquisa e controle do câncer, tendo sido transformado em hospital ortopédico em 1934. Por último, figura o processo de construção do Hospital das Clínicas Arthur Bernardes, da Faculdade de Medicina, iniciado em 1926 como obra da Assistência Hospitalar – órgão criado no mesmo ano, com duplo objetivo: resolver a falta de leitos da cidade (teria 1800 leitos) e fornecer um hospital para a Faculdade; a construção, entretanto, foi embargada em 1931, e as obras finalmente abandonadas em 1934.
Com a abertura desses hospitais, o estado passaria a gerir a assistência hospitalar na capital da República, rompendo, assim, a tradição luso-brasileira de Assistência, centrada nas ações da Misericórdia.
O Hospital Gaffrée e Guinle
Dentre os hospitais construídos na década de 1920 e ligados à política de saúde pública proposta por Carlos Chagas, destaca-se o Hospital Gaffrée e Guinle, cujas ações estão vinculadas às propostas da Inspetoria de Profilaxia da Lepra e das Doenças Venéreas, e inseridas nas discussões de construção da nação, dominantes no período. Destinado ao controle e tratamento da sífilis e das doenças venéreas em geral, o hospital propunha-se a concorrer para a geração de uma nação sadia, sem a presença da sífilis. Ao mesmo tempo, a opção do arquiteto pelo estilo arquitetônico do neocolonial, reporta aos debates acerca da construção da nacionalidade e de uma arte nacional, o que, em arquitetura, durante certa fase, significou a adoção do estilo neocolonial, até o advento do modernismo, na década seguinte.
A virada do século XIX para o século XX traz mudanças na percepção da nosologia da sífilis. O período presencia, na Europa, nova conscientização a respeito de três doenças há muito conhecidas, que passam a ser compreendidas como calamidades sociais: a tuberculose, a sífilis e o câncer. Esses males marcaram as preocupações cotidianas, chegando mesmo a encobrir parcialmente o sucesso da descoberta dos soros antidiftérico e anti-rábico. Faure (1994, p. 204) afirma: "[...] a tuberculose se torna perigosa quando se prova sua transmissibilidade, a sífilis quando triunfam as teorias sobre seu caráter hereditário". Já o câncer veio a despertar enorme inquietação quando estatísticas de óbitos alertaram sobre a sua incidência. Como ressalta Olivier Faure (Ibidem), as descobertas pasteurianas permitiram que os médicos diagnosticassem casos de câncer onde até então a doença passava despercebida, fazendo com que as suas estatísticas dobrassem em toda a Europa.
Em comum, esses três novos flagelos apresentavam o espaço de atuação: a cidade. Controlar, portanto, tais doenças era permitir o surgimento de uma cidade e de uma civilização salubres.
Contudo, a transformação da sífilis em calamidade social, nesse período, transcendia o ideário médico, pois trazia subjacentes as noções de pecado – das relações sexuais – e de degeneração da raça. E foi em tal cenário que, ao longo da primeira metade do século passado, desenvolveram-se todas as ações de controle e profilaxia dessas doenças.
No Brasil, as políticas públicas de terapia e profilaxia, tanto as relacionadas à sífilis quanto as referentes à tuberculose, só foram desenvolvidas a partir da Reforma Sanitária de 1920. Sérgio Carrara (1996), ao estudar a luta contra a sífilis no Brasil entre o final do século XIX e a década de 1940, lembra que, desde os anos de 1880, já se havia implantado o ensino de dermatologia e sifilografia na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, a cargo do professor João Pizarro Gabizzo; no mesmo período, inaugurou-se a Policlínica Geral do Rio de Janeiro, que contava, entre suas especialidades, com o Serviço de Doenças da Pele e de Sífilis, e com um curso livre de sifilografia, a cargo do médico Antônio José Pereira da Silva Araújo – à época, o grande nome da pesquisa e do combate à sífilis. O Serviço dirigido por Silva Araújo na Policlínica foi grande formador de quadros – por ali passaram médicos como Oswaldo Cruz e Salles Guerra.
Em 1904, na Policlínica de Botafogo, foi criado o Serviço de Moléstias da Pele, a cargo de Juliano Moreira – este último substituído, três ou quatro anos depois, por Eduardo Rabello, discípulo de Silva Araújo (Idem, p. 89, nota 14).
Entre os médicos que, no início do século XX, mais se destacaram no combate à sífilis, encontram-se Werneck Machado e Eduardo Rabello. O primeiro sucedeu a Silva Araújo na chefia do Serviço de Doenças da Pele da Policlínica Geral do Rio de Janeiro e esteve à frente de diversos movimentos em prol do combate à sífilis, além de figurar como membro da Academia Nacional de Medicina. O segundo iniciou sua carreira vinculado à Policlínica de Botafogo, transferindo-se em seguida para a Faculdade de Medicina, onde sucedeu a Fernando Terra na cátedra de Dermatologia e Sifilografia e na enfermaria da Misericórdia, já nos anos de 1920; incluiu-se, também, entre os membros da Academia Nacional de Medicina.
Na segunda década do século XX, a luta antivenérea ganha maior organização, com a criação, em 1912, da Sociedade Brasileira de Dermatologia e Sifilografia, na qual se congregavam os três grupos que militavam contra a sífilis no Rio de Janeiro. Eram eles: o grupo da Faculdade de Medicina, que reunia Fernando Terra, Eduardo Rabello e Oscar da Silva Araújo; o grupo de Manguinhos, formado por Adolpho Lutz, Gaspar Vianna, Arêa Leão e Heráclides de Souza Araújo; e o grupo da Policlínica, integrado por Werneck Machado e seus auxiliares. De São Paulo, faziam parte da Sociedade: Antonio Carini e Adolpho Lindenberg, ambos ligados ao Instituto Bacteriológico. A Sociedade editou os Anais Brasileiros de Dermatologia e Sifilografia, periódico que iniciou sua publicação em 1925, tendo por diretores científicos Fernando Terra, Adolpho Lutz e Werneck Machado (todos do Rio de Janeiro); A. Leitão (da Bahia); A. Lindeberg (de São Paulo); A. Aleixo (de Belo Horizonte); U. Nonahy (de Porto Alegre). A edição estava a cargo de Eduardo Rabello, Oscar da Silva Araújo e Gilberto de Moura Costa.
Outra ação importante no período foi a realização, em 1918, na cidade do Rio de Janeiro, do I Congresso Sul-Americano de Dermatologia e Sifilografia, que veio a difundir enormemente a idéia do processo de sifilização em que se encontrava o povo brasileiro – idéia esta subjacente às ações postas em prática pelos sifilógrafos do país na década seguinte (CARRARA, 1997, p. 401).
O início da década de 1920 pode ser considerado o divisor de águas no que tange à profilaxia da sífilis. A criação do DNSP e da Inspetoria de Profilaxia da Lepra e das Doenças Venéreas, esta última a cargo do sifilógrafo Eduardo Rabello, marcou o início de um processo de centralização da política de saúde e de ações mais dirigidas ao tratamento e profilaxia da sífilis – ou seja, o início de nova postura política com relação à doença. Vale ressaltar que a marca por excelência dessa reforma sanitária foram o combate às endemias rurais e o projeto de inserção do sertanejo na nação, ambos defendidos pelos intelectuais reunidos em torno da Liga Pró-Saneamento. Apesar de tal característica primordial, as ditas endemias urbanas também receberam atenção especial das autoridades, sobretudo em suas ações circunscritas à capital federal, orientadas para o combate à tuberculose, à lepra e às doenças venéreas.
O grupo formador da Inspetoria de Profilaxia da Lepra e das Doenças Venéreas tinha por líder Eduardo Rabello, circundado por seus discípulos mais próximos, Oscar da Silva Araújo e Joaquim Mota, sendo estreitamente vinculado tanto à Faculdade de Medicina quanto ao diretor do DNSP, Carlos Chagas.
A política de combate à sífilis – baseada principalmente na educação e propaganda higiênicas e no tratamento de doentes em dispensários e/ou hospitais especializados – não tardaria a dar resultados. Já no relatório apresentado em junho de 1920 por Alfredo Pinto Viera de Mello, ministro da Justiça e Negócios Interiores, era anunciada a participação dos irmãos Guinle na construção de um hospital destinado à profilaxia da sífilis no Rio de Janeiro (BRASIL, 1920, p. xxvi). Na mensagem enviada ao Congresso em maio do ano seguinte, ao expor o balanço das ações realizadas em prol da profilaxia da sífilis, fundamentalmente centrada na construção de dispensários, o presidente Epitácio Pessoa afirmava: "Outros se organizarão ainda, entre eles um hospital para 200 doentes, dádiva generosa feita ao Departamento Nacional da Saúde" (BRASIL, 1956, p. 276). Todas as mensagens presidenciais de Artur Bernardes pronunciadas entre 1923 e 1926 mencionavam o hospital para tratamento da sífilis, "obra de benemerência de dois capitalistas, Candido Gaffrée e Eduardo Palassin Guinle" (BRASIL, 1923, p. 39).
De modo geral, o texto das mensagens procurava reforçar a grandiosidade do projeto (Figura 1) – o que não deixa de ser verdade se o compararmos à malha hospitalar existente no país e, em particular, na capital republicana –, além de aludir ao desenvolvimento do projeto do hospital para venéreos. A Fundação Gaffrée e Guinle, mantenedora do hospital, foi constituída em agosto de 1923, mas desde 1920, ou seja, três anos antes de sua criação, o projeto já era anunciado, a demonstrar que os acordos entre o governo federal e Guilherme Guinle já vinham então em andamento; a entrada da Fundação Gaffrée e Guinle5 nas negociações representava mera formalidade jurídica. Reforça tal hipótese a afirmação de Carlos Chagas, no relatório do DNSP de 1922; segundo o médico, dentro de poucos meses o Serviço da Sífilis alcançaria maior desenvolvimento, com o início do funcionamento dos modernos dispensários construídos graças à benemerência dos herdeiros de Candido Gaffrée e Eduardo P. Guinle (BRASIL, 1923, p. 201).
Gisele Sanglard
Doutora em História das Ciências da Saúde, Pesquisadora Visitante, Departamento de Patrimônio Histórico-Casa de Oswaldo Cruz-Fiocruz, av. Brasil 4365, Manguinhos, 21040-900, Rio de Janeiro – RJ. E-mail: <sangla rd@coc.fiocruz.br>.
Introdução
A década de 20 significou, entre outras coisas, o momento em que o Estado dá os primeiros passos na direção da organização da assistência hospitalar geral, até então a cargo da Irmandade da Misericórdia. Essa guinada na organização da saúde pública está intimamente ligada ao processo de reforma que o médico Carlos Chagas2 põe em prática, à época, na cidade do Rio de Janeiro. Nos seis anos em que esteve à frente do Departamento Nacional de Saúde Pública, são vários os hospitais abertos por Chagas: o primeiro, o Hospital São Francisco de Assis, data de 1922 e foi instalado no antigo asilo de Mendicidade, na região do Mangue; seguido, em 1924, do Abrigo-Hospital Arthur Bernardes, para crianças, estabelecido nas dependências do Hotel Sete de Setembro, no Morro da Viúva, Botafogo; e do Hospital Pedro II, no bairro rural de Santa Cruz, localizado em uma antiga escola e destinado aos casos de malária. Na mesma época, o médico dá início às obras de três hospitais: o Hospital Gaffrée e Guinle (1924-1929); o Hospital e Instituto do Câncer3 (1927-1934) – este último veio a se tornar Hospital Barata Ribeiro, destinado à ortopedia; e o Hospital de Clínicas Arthur Bernardes, da Faculdade de Medicina (1926-1934), obra iniciada e abandonada no início da Era Vargas. Tais edifícios, em grupo ou separadamente, nos falam muito desse momento peculiar da história da Saúde Pública no Rio de Janeiro, bem como da própria cidade.
Este artigo pretende analisar o Hospital Gaffrée e Guinle, construído durante a década de 1920, na cidade do Rio de Janeiro, como resultado do processo de tomada de controle, pela administração pública, da gestão da assistência hospitalar na capital federal. A instituição representa experiência singular na cultura de elite brasileira: sua construção deveu-se à filantropia do industrial carioca Guilherme Guinle4 – pouco valorizada pela historiografia e, portanto, quase desconhecida. O hospital é igualmente fruto de um projeto da Inspetoria da Lepra e das Doenças Venéreas (ou dos médicos que dela fizeram parte) e do próprio Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP), no momento da Reforma da Saúde Pública (1919-1920), estruturada e efetivada pela gestão Carlos Chagas à frente do DNSP. Confluência de vários interesses e projetos, essa organização sintetiza o espírito de uma época.
No Rio de Janeiro, a partir dos anos de 1920, percebem-se críticas, recorrentes, à falta de leitos na cidade. Eram médicos, intelectuais e políticos que, a reclamar dessa carência que colocava a medicina nacional e o próprio país em desvantagem com relação aos países vizinhos, ganhavam a imprensa leiga e especializada.
O quadro da assistência hospitalar no Rio de Janeiro permite perceber a existência de inúmeras instituições de auxílio mútuo ligadas a irmandades, em especial à Irmandade da Misericórdia – com seus diversos hospitais, Ordens Terceiras, comunidades de imigrantes – ou às Forças Armadas; a presença do Estado revelava-se apenas no que tange aos hospitais de isolamento (doenças contagiosas).
O Brasil, herdeiro da tradição lusa de assistência, encontrou na Irmandade da Misericórdia – ainda que se tratasse de instituição privada – o espaço público de atendimento e acolhimento. Desde a sua criação em Lisboa, ao final do século XV, a Irmandade viveu sob o padroado régio e exerceu o monopólio da gestão hospitalar. Na Colônia, no Império e nos primeiros anos da República, a Santa Casa da Misericórdia manteve a hegemonia da assistência médica no Brasil. Somente em princípios do século XX essa instituição perde lugar para outros espaços de cura, ligados diretamente às políticas de saúde. Constitui característica da colonização portuguesa a difusão das irmandades leigas de devoção e das Ordens Terceiras, que vieram a exercer importante papel de difusão da fé católica.
Muitas dessas irmandades e Ordens Terceiras sustentaram espaços de caridade e de assistência voltados para os "irmãos". As grandes exceções foram a Irmandade do Santíssimo Sacramento de Nossa Senhora da Candelária, que mantém, desde o século XVIII, o Hospital dos Lázaros – renomeado Hospital Frei Antônio – e a Irmandade da Misericórdia, cujas obras eram destinadas aos "irmãos" e aos pobres da cidade.
Assim, a Misericórdia tornou-se sinônimo de socorro aos desvalidos. O sociólogo pernambucano Gilberto Freyre (2000) chama a atenção para a mística que cercava os donativos e legados concedidos às Irmandades, notadamente à Misericórdia, a ponto de tais práticas tornarem-se uma das marcas da vida religiosa do Brasil na virada do século XIX para o século XX. Não só por seu caráter religioso e caridoso, como também pelo prestígio social que lhes era agregado desde os tempos coloniais, uma vez que a hierarquia das Irmandades refletia a hierarquia social existente. Assim, ser irmão da Misericórdia era símbolo de prestígio, da mesma forma que o era – guardada a devida hierarquia – participar das outras Irmandades e Ordens Terceiras.
Apesar dessa dependência, os serviços encontravam-se bem organizados, como mostra o viajante francês Emile Allain, que publicou, já ao final do Império brasileiro (1822-1889), um relato sobre a cidade do Rio de Janeiro e a administração imperial na segunda metade do século XIX. O autor dedicava parte de seu livro à análise dos hospitais e hospícios, estabelecimentos e sociedades de beneficência existentes na capital do Império. Com relação à assistência hospitalar, afirmava Allain:
La municipalité de Rio-de-Janeiro ne possède aucun hôpitaux, et le gouvernement brésilien nen maintient directement quun seul; l'hôpital maritime de Santa Isabel, situé à Jurujuba, dans la province de Rio-de-Janeiro, et spécialement est destiné aux marins, ou passagers atteints de maladies contagieuses.
Le service de lassistance publique est cependant fort bien organisé. Il est à la charge dune opulante société particulière, lIrmandade da Santa Casa da Misericórdia [...] à laquelle lEtat accorde en retour certains faveurs (ALLAIN, 1886, p. 231-232).
No que tange à questão da assistência hospitalar, o período do Oitocentos marcou considerável crescimento da rede hospitalar na cidade. Embora permanecesse muito dependente das associações de auxílio mútuo e de caráter privado, a rede passou a contar, além do Hospital da Misericórdia, com o Hospital dos Lázaros, mantido pela Irmandade do Santíssimo Sacramento de Nossa Senhora da Candelária; o Hospital Real Militar e o Hospital Central da Marinha, destinados às Forças Armadas; e os hospitais para irmãos leigos ou confessionais das diversas Irmandades e Ordens Terceiras, como o Hospital da Venerável e Archiepiscopal da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Monte do Carmo e o Hospital da Venerável Ordem Terceira de São Francisco da Penitência. O século XIX viu surgir o Hospital da Venerável Ordem Terceira dos Mínimos de São Francisco de Paula (1813); o Hospital do Corpo de Bombeiros (1841); o Hospital da Brigada Militar (1848); o Hospital de São João de Deus (1854); o Hospital da Real e Benemérita Sociedade de Beneficência Portuguesa; o Hospital Paula Cândido (1853); a Policlínica Geral do Rio de Janeiro (1882); o Hospital de São Sebastião (1889); o Hospital Copacabana (1890); e o Hospital Evangélico do Rio de Janeiro (1896). Nesse período, a Misericórdia ganhou novos hospitais, com a abertura do Hospício Pedro II para alienados (1841), seguido do Hospício de São João Baptista da Lagoa (1852); do Hospício de Nossa Senhora da Saúde (1853); do Hospício de Nossa Senhora do Socorro (1855); e do Hospital de Nossa Senhora das Dores (1884).
É certo que, desde 1881, o Hospital da Santa Casa da Misericórdia contava com a ajuda da Policlínica Geral e, a partir de 1899, da Policlínica de Botafogo – instituições filantrópicas destinadas ao atendimento gratuito da população. Vale ressaltar que as Policlínicas surgiram nos reinos germânicos e no Império Austro-Húngaro; contudo, nesses lugares seu desenvolvimento foi distinto: no primeiro caso, tratava-se de instituições públicas e vinculadas às Faculdades de Medicina, lugar por excelência das aulas práticas, caracterizando-se pelo reduzido número de leitos e pela diversidade de doenças ali tratadas, o que as distinguia dos hospitais (BUETTZINGSLOEWEN, 1997). No Império Austro-Húngaro, constituíam-se em organizações privadas, com perfil marcadamente beneficente (EDLER, 1992, p. 223 et seq.).
Com forte influência da experiência austríaca, a Policlínica do Rio de Janeiro foi criada em dezembro de 1881, por iniciativa dos médicos João Pizarro Gabizzo, Antônio Loureiro de Sampaio e Carlos Arthur Moncorvo de Figueiredo, tendo por beneméritos o imperador Pedro II e a imperatriz Tereza Cristina, além de grande número de doadores, responsáveis por sua fundação e manutenção. O hospital começou a funcionar em fevereiro de 1882, e garantia atendimento gratuito à população carente; ao mesmo tempo, assim como a Santa Casa da Misericórdia, cobrava daqueles que podiam pagar. Dentre seus objetivos, sobressaía a preocupação com o ensino médico.
Já a Policlínica de Botafogo foi criada pelo médico Luiz Barbosa em fins de 1899, e iniciou seus atendimentos em junho de 1900. Sua marca mais forte residia na atuação paroquial, restrita aos moradores de Botafogo e adjacências. Instituição privada, era mantida por seus protetores, todos moradores daquele bairro. Tinha por principais benfeitores o conselheiro Catta-Preta, Eugenio José de Almeida, Eduardo P. Guinle – de quem Luiz Barbosa era médico particular –, Candido Gaffrée, o senador Antonio Azeredo, John Gregory e Oswaldo Cruz (POLICLÍNICA DE BOTAFOGO, 1922).
Nos primeiros vinte anos do século XX, a rede hospitalar da cidade do Rio de Janeiro não passou por alterações expressivas em relação ao final do século anterior. O complexo da Santa Casa da Misericórdia ganhou mais dois integrantes: a Policlínica das Crianças (1909) e o Hospital de São Zaccharias (1914), ambos destinados ao atendimento a crianças, abrangendo o período pré-natal, o aleitamento e a puericultura – o primeiro, destinado às crianças da Zona Norte da cidade, e o segundo, às crianças da Zona Sul. Integrante do mesmo complexo, o Hospital de Nossa Senhora das Dores restringiu-se, no mesmo ano, ao tratamento de mulheres tuberculosas. Vale ressaltar que, muitas vezes, a abertura de novos hospitais e/ou enfermarias pela Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro atendia a anseios da Faculdade de Medicina – cujo hospital universitário era o Hospital da Misericórdia –, que negociava com a Irmandade a ampliação dos espaços para seus alunos. Acrescentava-se, assim, mais um ingrediente à já bastante tensa relação entre ambas as instituições (cf. OFÍCIOS FMRJ).
À mesma época também foram abertos na cidade: hospitais ligados às entidades ou sociedades de auxílio mútuo, como o Hospital Espírita (1912), para atendimento dos fiéis ao espiritismo; o Hospital dos Ingleses; o Hospital Oswaldo Cruz, construído no campus do Instituto Oswaldo Cruz (IOC) e voltado para doenças tropicais (malária e doença de Chagas) e endemias estudadas pelos pesquisadores da instituição; além de diversas casas de saúde.
Foi somente com a reforma da Saúde Pública, ocorrida em 1919, que se verificaram os primeiros sinais de mudança nesse quadro. A reforma teve por resultado a criação do Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP), com ação direta na capital federal (Rio de Janeiro) e no território do Acre, além de funcionamento nos estados através de convênios. Sua direção foi entregue ao mentor, Carlos Chagas, à época diretor do IOC. A estrutura estava baseada em três diretorias: Saneamento e Profilaxia Rural, às quais cabia gerir e executar os convênios; Serviços Sanitários Terrestres (na capital federal); e de Defesa Sanitária Marítima e Fluvial.
Este artigo estará centrado nas ações da Diretoria de Serviços Sanitários Terrestres que serviriam de modelo para as atividades nos estados. A Diretoria dividia-se em Inspetorias Profiláticas, a saber: Fiscalização de Gêneros Alimentícios; Engenharia Sanitária; da Tuberculose; Estatística Demógrafo-sanitária; Fiscalização do Exercício da Medicina, Farmácia, Arte Dentária e Obstetrícia; da Lepra e Doenças Venéreas; e de Profilaxia Marítima. Suas proposições foram definidas na edição do novo Regulamento Sanitário (1920), e notadamente nas ações da Inspetoria de Profilaxia da Lepra e das Doenças Venéreas, que vão dar corpo às proposições de Carlos Chagas para a Assistência Hospitalar.
Logo de início se fez sentir a preocupação com a Assistência Hospitalar. Em 1920, em mensagem ao Congresso Nacional, o presidente Epitácio Pessoa advertia os parlamentares para o fato de que o desenvolvimento dos serviços de saúde tornava necessária a melhoria da assistência hospitalar da capital; lembrava ainda que o hospital da Santa Casa da Misericórdia já não suportava o grande número de pacientes em busca de atendimento; e defendia a urgente criação de um hospital ligado à Faculdade de Medicina (BRASIL, 1920).
Esse tema foi recorrente nas mensagens presidenciais, durante os anos subseqüentes. As comunicações alertavam para a precária situação hospitalar da capital republicana e, sobretudo, para a insuficiência de hospitais gerais. No relatório do DNSP datado de 1922, Carlos Chagas mencionava a criação de hospitais regionais e rurais para atender à campanha de saneamento rural (BRASIL, 1923, p. 197). Em discussões na Câmara dos Deputados acerca da Reforma da Saúde Pública, Chagas salientava a deficiência da rede de assistência médico-hospitalar no país, tanto em relação aos preceitos modernos da higiene nos hospitais de isolamento, quanto no que se refere ao atendimento das "nosologias habituais", para as quais a falta de leitos constituía motivo de crítica recorrente. Em tal contexto, a tuberculose, as moléstias infantis e o atendimento aos alienados representavam as grandes preocupações do diretor da Saúde Pública, seja por questões do contágio, da falta de cuidados específicos para os recém-nascidos, seja pelos vícios no tratamento dos alienados.
Vale ressaltar que, desde 1918, Carlos Chagas já defendia a abertura de novos hospitais na cidade, como em seu discurso durante a homenagem aos médicos baianos no Derby Clube do Rio de Janeiro (1918; BIBLIOTECA VIRTUAL CARLOS CHAGAS, 2003):
O Brasil, senhores, necessita de outros e modernos hospitais, que possam atender a condições permanentes e a eventualidades epidêmicas inevitáveis. Possuímos, é certo, uma instituição benfazeja, cujos serviços seculares devem merecer a gratidão e o apreço maior de todos os Brasileiros; a Santa Casa de Misericórdia, porém, a menos que a pudessem ampliar em notáveis proporções, não pode hoje prover as necessidades de uma assistência hospitalar satisfatória em toda a Capital da Republica e zonas limítrofes, nem ainda atender a surtos epidêmicos de desusada intensidade.
Pensamos que o melhor, no assunto, seriam hospitais destinados a grupos de doenças, com adaptações espaciais, nos quais funcionariam serviços permanentes de assistência aos casos da nosologia habitual, e haveria a possibilidade de instalações urgentes para atender á ocorrência de grandes epidemias. Desse modo um hospital geral além do que existe, o de São Sebastião, ou este ampliado, para doenças infecciosas, agudas e crônicas, outro para doenças da nutrição, um terceiro para crianças, e, finalmente, um ultimo, destinado a afecções ou doenças cirúrgicas, viriam preencher uma das grandes lacunas da nossa administração sanitária, a assistência hospitalar.
Além de que, para os intuitos de salvaguardar a vida de Brasileiros, não podemos restringir nossas vistas á Capital do país, quando no interior grassam endemias mortíferas, com ausência absoluta de quaisquer medidas necessárias. Hospitais regionais, nas zonas de endemias intensas, viriam atender a uma das indicações sanitárias e de assistência publica mais urgentes em nossos sertões.
O discurso de Chagas encontrou eco no Congresso Nacional. Dentre as iniciativas, ressalta-se o chamado Projeto Mascarenhas, que propôs, em 1920, a construção de três hospitais com capacidade mínima de mil leitos cada um, a expensas do Poder Executivo. O projeto foi alvo de inúmeras críticas, como as publicadas no Jornal do Commercio, edição de 24 de julho de 1920. A discussão travada nas páginas desse periódico pelo professor Otávio Ribeiro da Cunha baseava-se em questões como assepsia, dimensão do terreno e espaço destinado a cada doente. Na opinião do médico, um hospital de mil leitos só evitaria o problema da superpopulação se construído em terreno bastante grande, onde deveriam ser mantidas as distâncias mínimas entre os pavilhões. Para reforçar sua idéia, Ribeiro da Cunha citava como exemplos hospitais de Hamburgo e de Berlim.
O Projeto Mascarenhas baseava-se nos estudos do médico José Mendonça, que assinava, nas páginas dos periódicos correntes, vários artigos sobre a questão da assistência hospitalar no Rio de Janeiro (ANAIS DA CÂMARA, 1920). Vale chamar atenção sobre seu artigo publicado na Revista do Brasil de 1924, e transcrito na revista Brazil Médico do mesmo ano. Embora posterior ao projeto, a matéria levanta um balanço das idéias defendidas pelo médico nos últimos anos. Mendonça defende a necessidade da construção de quatro hospitais, com capacidade de mil leitos cada um, para suprir a carência de leitos na cidade (MENDONÇA, 1924). Sua concepção de organização hospitalar é de forte inspiração austríaca. Assim, nas cidades, onde os terrenos eram mais caros, deveriam localizar-se os hospitais destinados a atender as vítimas de acidentes (rua e trabalho) – as Emergências; os hospitais para doentes "curáveis" (internações curtas) – as Policlínicas; e, para as parturientes – as Maternidades. Já no campo, onde os terrenos eram mais baratos, seriam instaladas as casas de convalescentes, os sanatórios para tuberculosos, os hospitais de alienados, e os sanatórios destinados a "nervosos e viciados", segundo os próprios termos do autor.
É nesse contexto que sobressai a criação do Hospital Gaffrée e Guinle. Se, de um lado, os grandes hospitais com capacidade de no mínimo mil leitos, propostos por médicos e políticos, não puderam ser implantados; de outro, adaptaram-se espaços já existentes e construíram-se novos edifícios, que atendiam às modernas exigências da higiene hospitalar, embora com menor número de leitos disponíveis. Em 1922, a transformação do antigo Asilo de Mendicidade, de 1870, em Hospital S. Francisco de Assis, ligado ao DNSP, é considerada como a primeira resposta oficial à falta de leitos. No mesmo ano deu-se início às obras de construção, no bairro rural de Jacarepaguá, do Asilo-Colônia de Curupaity para leprosos, inaugurado em 1927, e ligado à Inspetoria de Lepra e das Doenças Venéreas.
Em seguida, em 1924, inicia-se, graças à benemerência de Guilherme Guinle, a construção do Hospital Gaffrée e Guinle, ligado à Inspetoria de Lepra e Doenças Venéreas e inaugurado em 1929. No mesmo ano de 1924, parte do antigo Hotel Sete de Setembro é transformada no Hospital-Abrigo Arthur Bernardes, ligado à Inspetoria de Higiene Infantil. Ainda podem ser citadas as obras do Hospital do Câncer – iniciadas em 1927, também graças à benemerência de Guilherme Guinle –, ligado à Inspetoria de Lepra e Doenças Venéreas; o hospital, porém, jamais chegou a constituir-se em centro de pesquisa e controle do câncer, tendo sido transformado em hospital ortopédico em 1934. Por último, figura o processo de construção do Hospital das Clínicas Arthur Bernardes, da Faculdade de Medicina, iniciado em 1926 como obra da Assistência Hospitalar – órgão criado no mesmo ano, com duplo objetivo: resolver a falta de leitos da cidade (teria 1800 leitos) e fornecer um hospital para a Faculdade; a construção, entretanto, foi embargada em 1931, e as obras finalmente abandonadas em 1934.
Com a abertura desses hospitais, o estado passaria a gerir a assistência hospitalar na capital da República, rompendo, assim, a tradição luso-brasileira de Assistência, centrada nas ações da Misericórdia.
O Hospital Gaffrée e Guinle
Dentre os hospitais construídos na década de 1920 e ligados à política de saúde pública proposta por Carlos Chagas, destaca-se o Hospital Gaffrée e Guinle, cujas ações estão vinculadas às propostas da Inspetoria de Profilaxia da Lepra e das Doenças Venéreas, e inseridas nas discussões de construção da nação, dominantes no período. Destinado ao controle e tratamento da sífilis e das doenças venéreas em geral, o hospital propunha-se a concorrer para a geração de uma nação sadia, sem a presença da sífilis. Ao mesmo tempo, a opção do arquiteto pelo estilo arquitetônico do neocolonial, reporta aos debates acerca da construção da nacionalidade e de uma arte nacional, o que, em arquitetura, durante certa fase, significou a adoção do estilo neocolonial, até o advento do modernismo, na década seguinte.
A virada do século XIX para o século XX traz mudanças na percepção da nosologia da sífilis. O período presencia, na Europa, nova conscientização a respeito de três doenças há muito conhecidas, que passam a ser compreendidas como calamidades sociais: a tuberculose, a sífilis e o câncer. Esses males marcaram as preocupações cotidianas, chegando mesmo a encobrir parcialmente o sucesso da descoberta dos soros antidiftérico e anti-rábico. Faure (1994, p. 204) afirma: "[...] a tuberculose se torna perigosa quando se prova sua transmissibilidade, a sífilis quando triunfam as teorias sobre seu caráter hereditário". Já o câncer veio a despertar enorme inquietação quando estatísticas de óbitos alertaram sobre a sua incidência. Como ressalta Olivier Faure (Ibidem), as descobertas pasteurianas permitiram que os médicos diagnosticassem casos de câncer onde até então a doença passava despercebida, fazendo com que as suas estatísticas dobrassem em toda a Europa.
Em comum, esses três novos flagelos apresentavam o espaço de atuação: a cidade. Controlar, portanto, tais doenças era permitir o surgimento de uma cidade e de uma civilização salubres.
Contudo, a transformação da sífilis em calamidade social, nesse período, transcendia o ideário médico, pois trazia subjacentes as noções de pecado – das relações sexuais – e de degeneração da raça. E foi em tal cenário que, ao longo da primeira metade do século passado, desenvolveram-se todas as ações de controle e profilaxia dessas doenças.
No Brasil, as políticas públicas de terapia e profilaxia, tanto as relacionadas à sífilis quanto as referentes à tuberculose, só foram desenvolvidas a partir da Reforma Sanitária de 1920. Sérgio Carrara (1996), ao estudar a luta contra a sífilis no Brasil entre o final do século XIX e a década de 1940, lembra que, desde os anos de 1880, já se havia implantado o ensino de dermatologia e sifilografia na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, a cargo do professor João Pizarro Gabizzo; no mesmo período, inaugurou-se a Policlínica Geral do Rio de Janeiro, que contava, entre suas especialidades, com o Serviço de Doenças da Pele e de Sífilis, e com um curso livre de sifilografia, a cargo do médico Antônio José Pereira da Silva Araújo – à época, o grande nome da pesquisa e do combate à sífilis. O Serviço dirigido por Silva Araújo na Policlínica foi grande formador de quadros – por ali passaram médicos como Oswaldo Cruz e Salles Guerra.
Em 1904, na Policlínica de Botafogo, foi criado o Serviço de Moléstias da Pele, a cargo de Juliano Moreira – este último substituído, três ou quatro anos depois, por Eduardo Rabello, discípulo de Silva Araújo (Idem, p. 89, nota 14).
Entre os médicos que, no início do século XX, mais se destacaram no combate à sífilis, encontram-se Werneck Machado e Eduardo Rabello. O primeiro sucedeu a Silva Araújo na chefia do Serviço de Doenças da Pele da Policlínica Geral do Rio de Janeiro e esteve à frente de diversos movimentos em prol do combate à sífilis, além de figurar como membro da Academia Nacional de Medicina. O segundo iniciou sua carreira vinculado à Policlínica de Botafogo, transferindo-se em seguida para a Faculdade de Medicina, onde sucedeu a Fernando Terra na cátedra de Dermatologia e Sifilografia e na enfermaria da Misericórdia, já nos anos de 1920; incluiu-se, também, entre os membros da Academia Nacional de Medicina.
Na segunda década do século XX, a luta antivenérea ganha maior organização, com a criação, em 1912, da Sociedade Brasileira de Dermatologia e Sifilografia, na qual se congregavam os três grupos que militavam contra a sífilis no Rio de Janeiro. Eram eles: o grupo da Faculdade de Medicina, que reunia Fernando Terra, Eduardo Rabello e Oscar da Silva Araújo; o grupo de Manguinhos, formado por Adolpho Lutz, Gaspar Vianna, Arêa Leão e Heráclides de Souza Araújo; e o grupo da Policlínica, integrado por Werneck Machado e seus auxiliares. De São Paulo, faziam parte da Sociedade: Antonio Carini e Adolpho Lindenberg, ambos ligados ao Instituto Bacteriológico. A Sociedade editou os Anais Brasileiros de Dermatologia e Sifilografia, periódico que iniciou sua publicação em 1925, tendo por diretores científicos Fernando Terra, Adolpho Lutz e Werneck Machado (todos do Rio de Janeiro); A. Leitão (da Bahia); A. Lindeberg (de São Paulo); A. Aleixo (de Belo Horizonte); U. Nonahy (de Porto Alegre). A edição estava a cargo de Eduardo Rabello, Oscar da Silva Araújo e Gilberto de Moura Costa.
Outra ação importante no período foi a realização, em 1918, na cidade do Rio de Janeiro, do I Congresso Sul-Americano de Dermatologia e Sifilografia, que veio a difundir enormemente a idéia do processo de sifilização em que se encontrava o povo brasileiro – idéia esta subjacente às ações postas em prática pelos sifilógrafos do país na década seguinte (CARRARA, 1997, p. 401).
O início da década de 1920 pode ser considerado o divisor de águas no que tange à profilaxia da sífilis. A criação do DNSP e da Inspetoria de Profilaxia da Lepra e das Doenças Venéreas, esta última a cargo do sifilógrafo Eduardo Rabello, marcou o início de um processo de centralização da política de saúde e de ações mais dirigidas ao tratamento e profilaxia da sífilis – ou seja, o início de nova postura política com relação à doença. Vale ressaltar que a marca por excelência dessa reforma sanitária foram o combate às endemias rurais e o projeto de inserção do sertanejo na nação, ambos defendidos pelos intelectuais reunidos em torno da Liga Pró-Saneamento. Apesar de tal característica primordial, as ditas endemias urbanas também receberam atenção especial das autoridades, sobretudo em suas ações circunscritas à capital federal, orientadas para o combate à tuberculose, à lepra e às doenças venéreas.
O grupo formador da Inspetoria de Profilaxia da Lepra e das Doenças Venéreas tinha por líder Eduardo Rabello, circundado por seus discípulos mais próximos, Oscar da Silva Araújo e Joaquim Mota, sendo estreitamente vinculado tanto à Faculdade de Medicina quanto ao diretor do DNSP, Carlos Chagas.
A política de combate à sífilis – baseada principalmente na educação e propaganda higiênicas e no tratamento de doentes em dispensários e/ou hospitais especializados – não tardaria a dar resultados. Já no relatório apresentado em junho de 1920 por Alfredo Pinto Viera de Mello, ministro da Justiça e Negócios Interiores, era anunciada a participação dos irmãos Guinle na construção de um hospital destinado à profilaxia da sífilis no Rio de Janeiro (BRASIL, 1920, p. xxvi). Na mensagem enviada ao Congresso em maio do ano seguinte, ao expor o balanço das ações realizadas em prol da profilaxia da sífilis, fundamentalmente centrada na construção de dispensários, o presidente Epitácio Pessoa afirmava: "Outros se organizarão ainda, entre eles um hospital para 200 doentes, dádiva generosa feita ao Departamento Nacional da Saúde" (BRASIL, 1956, p. 276). Todas as mensagens presidenciais de Artur Bernardes pronunciadas entre 1923 e 1926 mencionavam o hospital para tratamento da sífilis, "obra de benemerência de dois capitalistas, Candido Gaffrée e Eduardo Palassin Guinle" (BRASIL, 1923, p. 39).
De modo geral, o texto das mensagens procurava reforçar a grandiosidade do projeto (Figura 1) – o que não deixa de ser verdade se o compararmos à malha hospitalar existente no país e, em particular, na capital republicana –, além de aludir ao desenvolvimento do projeto do hospital para venéreos. A Fundação Gaffrée e Guinle, mantenedora do hospital, foi constituída em agosto de 1923, mas desde 1920, ou seja, três anos antes de sua criação, o projeto já era anunciado, a demonstrar que os acordos entre o governo federal e Guilherme Guinle já vinham então em andamento; a entrada da Fundação Gaffrée e Guinle5 nas negociações representava mera formalidade jurídica. Reforça tal hipótese a afirmação de Carlos Chagas, no relatório do DNSP de 1922; segundo o médico, dentro de poucos meses o Serviço da Sífilis alcançaria maior desenvolvimento, com o início do funcionamento dos modernos dispensários construídos graças à benemerência dos herdeiros de Candido Gaffrée e Eduardo P. Guinle (BRASIL, 1923, p. 201).
Se, de um lado, os anos 1920 observam a mudança na postura do governo federal em relação às doenças venéreas – em particular a sífilis –, de outro, o imaginário social a respeito desta doença continuava inalterado. Representações da moléstia como degeneradora da raça estão presentes nos discursos da população em geral e dos médicos, sobretudo daqueles ligados direta ou indiretamente ao movimento eugenista, uma das marcas desse período da história do Brasil.
O movimento eugênico organizado no Brasil surgiu em 1918, com a fundação, em São Paulo, da primeira Sociedade Eugênica no país. Dela fizeram parte, entre outros, o senador Alfredo Ellis, os médicos Arnaldo Vieira de Carvalho, Vital Brazil, Artur Neiva, Luiz Pereira Barreto e Antonio Austregésilo (STEPAN, 2004, p. 339-345). Com o tempo, outros médicos foram se reunindo em torno da Sociedade, como Carlos Chagas, Belisário Penna, Juliano Moreira e Miguel Couto. A maioria dos médicos membros da organização estava envolvida com o sanitarismo no Brasil e tinha em Belisário Penna, conforme mencionado anteriormente, o principal divulgador de suas idéias. A esse respeito afirma Nancy Stepan (Idem, p. 348):
Estrutural e cientificamente a eugenia brasileira era congruente, em termos gerais, com as ciências do saneamento, e alguns simplesmente a interpretavam como um novo ramo da higiene. Daí a insistência em que "sanear é eugenizar".
Não é difícil entender as ações desses médicos e sua opção pelo combate à sífilis, justamente quando se organizam em torno da Sociedade Eugênica. Stepan (Idem, p. 349 et seq.) chama a atenção ainda para a afinidade dos eugenistas brasileiros com as teorias biológicas francesas – ou teorias neolamarkianas, para me valer do conceito adequado –, que possibilitavam interpretação de cunho moral e científico para a questão da raça. A sífilis, em especial, permitia dupla interpretação – pelos vieses das condições sociais e da moralidade. Sérgio Carrara (1997, p. 405) vai mais longe, ao afirmar:
Conjugadas à crença em sua [da sífilis] extrema difusão no Brasil, devido ao excesso sexual que singularizava os nacionais, suas supostas características hereditárias contribuíram significativamente para que a luta contra a degeneração no país se realizasse principalmente através de intervenções sanitárias. Assim, ao invés de se eliminar ou esterilizar os biologicamente "inaptos", como aconteceu em várias partes do mundo ocidental, buscou-se curar os males que os afligiam.
Nesse ambiente favorável – tanto no âmbito governamental, com a criação do DNSP e do novo Regulamento Sanitário, quanto no âmbito social, com a criação da Sociedade Brasileira de Dermatologia e Sifilografia; a realização do Congresso Sul-Americano de Dermatologia e Sifilografia; e a organização do movimento eugênico no país –, foi criada a Fundação Gaffrée e Guinle, sem dúvida uma resposta às demandas e reivindicações dos movimentos eugênico e sanitarista, cujos representantes no governo eram Carlos Chagas, diretor do DNSP, e Eduardo Rabello, chefe da Inspetoria de Profilaxia da Lepra e das Doenças Venéreas.
O "grande entusiasmo científico" manifestado à época em torno da sífilis é apontado por alguns como fator preponderante na decisão de Guilherme Guinle a favor da construção de um hospital destinado ao tratamento deste mal (SANATÓRIOS E HOSPITAIS, 1939, p. 7), sobretudo se considerarmos o ideário da sífilis, segundo o qual a doença, por seu caráter hereditário, poderia degenerar as futuras gerações do país. Para um nacionalista como Guilherme Guinle, a oportunidade de colaborar para o futuro da nação justificaria seu investimento no projeto de Carlos Chagas e Eduardo Rabello, sem contar o respeito profissional e a amizade que unia o industrial a Chagas e, de certa forma, a todo o grupo envolvido nos projetos da Inspetoria de Profilaxia da Lepra e das Doenças Venéreas.
Segundo a escritura da Fundação Gaffrée e Guinle, datada de 1923, caberia à família Guinle a aquisição de terrenos e a construção de um hospital para sífilis e doenças venéreas, bem como a criação de ambulatórios para diagnóstico e profilaxia da sífilis. Todo esse patrimônio deveria ser posteriormente repassado para a instituição. O aparelhamento e a manutenção do hospital, assim como a instalação dos ambulatórios correriam a expensas do governo federal.
O hospital recebeu a designação de Hospital Gaffrée e Guinle, que, a partir de então, deveria ser obrigatoriamente mantida. Ficou acordado em 12 o número de ambulatórios a serem construídos pela Fundação, 4 dos quais ficariam subordinados às seguintes instituições de saúde: Santa Casa da Misericórdia; Instituto de Proteção à Infância; Maternidade de Laranjeiras; e Hospital Nossa Senhora das Dores. Um quinto ambulatório foi instalado nas dependências da Casa da Moeda. No entanto, a Fundação Gaffrée e Guinle extrapolaria o número de ambulatórios estabelecido no acordo. Em 1928, o arquiteto Porto dAve (1928a, p. 8) anunciava o registro de 15 ambulatórios em funcionamento, todos mantidos pela instituição; no ano seguinte, com a inauguração do Hospital Gaffrée e Guinle, ali começaria a operar o 16º.
Quanto à manutenção da Fundação e de suas instalações, ficou definido que o custeio do hospital e dos ambulatórios seria assegurado por verba do governo federal, repassada pelo DNSP6, além de doações, legados e taxas cobradas por serviços (a gratuidade destes seria assegurada somente aos pobres). Com relação à sua administração, a Fundação teria um Conselho Administrativo formado pelo diretor do DNSP (Carlos Chagas, à época), por um especialista da Faculdade de Medicina (Eduardo Rabello), e por um representante da família Guinle (Guilherme Guinle). Haveria também um Conselho Consultivo formado por 17 membros, escolhidos entre pessoas de destaque na sociedade, entre estas Ataulpho Napolis de Paiva, Clementino Fraga, Felix Pacheco, Fernando Terra, Fernandes Figueira, Gabriel Ozório de Almeida, José Xavier Carvalho de Mendonça, Linneo de Paula Machado, Miguel Couto, Paulo de Frontin, e Werneck Machado.
À época de sua regulamentação, a composição do Conselho Administrativo da Fundação Gaffrée e Guinle reafirmava a proximidade da instituição com a direção da Saúde Pública e com a Inspetoria, que deveria dirigir seus trabalhos. Eduardo Rabello está presente como representante da Faculdade de Medicina, além de atuar paralelamente como responsável pela legislação antivenérea, implantada naquele momento, e como chefe da Inspetoria de Profilaxia da Lepra e das Doenças Venéreas. Dois dos discípulos de Rabello também estavam diretamente ligados a esse projeto: Oscar da Silva Araújo e Joaquim Mota – este último alcançou o cargo de diretor do Hospital Gaffrée e Guinle, na década de 1940.
O capital inicial da Fundação foi formado com a verba destinada a tal fim por Cândido Gaffrée; com os recursos acrescentados pela família Guinle, representada por Guilherme Guinle; e com a doação de José Xavier de Mendonça, amigo da família, assessor jurídico das empresas Guinle e diretor da Companhia Docas de Santos. Sabe-se que Guilherme contou com a colaboração de todos os seus irmãos – Arnaldo, Eduardo, Guilherme, Otávio, Carlos, Heloísa e Celina –, sempre sob a sua liderança.
As realizações da Fundação não demoraram a aparecer. No primeiro relatório apresentado ao Conselho Consultivo, em 1925, 6 dos 12 ambulatórios já constavam como prontos e em funcionamento: Engenho de Dentro (Figura 2), Paulo de Frontin, Andaraí (Figura 3), Pró-Matre, Hospício e Gávea. E as obras do hospital não tardariam a começar.
A Fundação Gaffrée e Guinle estava baseada em dois princípios: a ação filantrópica e a pesquisa científica. Para dar corpo ao primeiro, construiu-se um hospital, inaugurado em 1929; e, em atenção ao segundo, foi criado um Instituto de Pesquisa, cujas obras foram concluídas em 1927, permitindo, assim, o início dos seus trabalhos. Para divulgar ambas as vertentes de atuação, foi lançado o periódico Archivos da Fundação Gaffrée e Guinle.
Os Archivos foram publicados ininterruptamente até 1931. Nos quatro anos seguintes, apenas dois números foram editados: o primeiro, relativo aos anos de 1932 e 1933; e o segundo, ao período de 1934 e 1935. A partir de então o periódico deixou de circular. A Comissão Técnica responsável por sua publicação era formada por Carlos Chagas, Eduardo Rabello e Gilberto de Moura Costa. Vale lembrar que Eduardo Rabello e Gilberto de Moura Costa eram também os editores dos Anais Brasileiros de Dermatologia e Sifilografia, que começaram a circular três anos antes, em 1925. Os Archivos publicaram trabalhos médicos como os do próprio Gilberto de Moura Costa e de Hélion Póvoa; a partir dos anos 1930, Álvaro Ozório de Almeida começou a publicar no periódico seus primeiros trabalhos sobre o emprego da cama hiperbárica no tratamento do câncer e da lepra.
O Hospital, cujo projeto era assinado pelo escritório Porto dAve & Haering, sob fiscalização e orientação dos médicos Eduardo Rabello e Gilberto de Moura Costa, foi inaugurado em 1º de novembro de 1929, sem que todas as enfermarias estivessem equipadas, visto que faltaram recursos governamentais. Seu primeiro diretor foi Gilberto de Moura Costa7, que assumiu o posto em 1924.
O projeto do hospital, elaborado para internar 320 pessoas, contava com um prédio principal de 4 pavimentos – o quarto andar era destinado ao solarium –, onde se localizavam os diversos serviços e um ambulatório. Nele funcionavam: os Serviços de Pronto-Socorro; de Vias Urinárias; de Ginecologia; de Obstetrícia; os Serviços Auxiliares ao Ambulatório do Hospital (laboratório, fisioterapia e raios X); os Serviços de Sífilis Visceral; de Otorrinolaringologia e Oftalmologia; as salas de cirurgia; e o Serviço de Mulheres Contagiantes. No mesmo prédio, estavam instaladas as Superintendências dos Serviços Administrativos, dos Serviços de Estatística e de Enfermagem, da Renda da instituição e dos Serviços Sanitários, bem como o anfiteatro, a rouparia, o salão de honra, a biblioteca e o museu. No campus foram projetados pavilhões especiais para abrigar o Instituto de Pesquisa, o Biotério, a capela consagrada a Nossa Senhora da Conceição do Brasil, a residência do diretor, as oficinas de conservação, o dormitório dos empregados e a lavanderia (Figuras 4 a 7).
O Instituto de Pesquisa foi planejado com elementos em homenagem à moderna bacteriologia, como, por exemplo, os vitrais da escadaria principal, que representam os dois maiores nomes da área, Louis Pasteur e Robert Koch, ladeando Oswaldo Cruz – o que também ilustra o cuidado com que o projeto foi pensado e desenvolvido (Figura 8). Vale ressaltar que coube a José Gomes de Faria8, pesquisador do IOC, a orientação técnica do projeto do Instituto. Outra aproximação com a ciência desenvolvida em Manguinhos pela escola de Oswaldo Cruz pode ser percebida nos detalhes a que se ateve Gomes de Faria: laboratórios individuais, salas de anatomia patológica, além de biblioteca própria, desvinculada da existente no Hospital.
Porto dAve conferia grande valor ao Instituto de Pesquisa; a seu ver, os trabalhos ali desenvolvidos dariam projeção às atividades da Fundação Gaffrée e Guinle. Em conclusão ao seu artigo sobre o Hospital Gaffrée e Guinle, na revista A Bandeira, o arquiteto afirmava: "A grande obra que orgulha a todos os brasileiros e que está prestes a beneficiar, inicialmente o Brasil, e depois atravessando as suas fronteiras, toda a humanidade, pelos ensinamentos e descobertas que seguramente terão origem no seu Instituto de Pesquisas" (PORTO DAVE, 1927, p. 14).
No mesmo terreno do Hospital, embora funcionando de forma independente, situava-se o laboratório de Álvaro Ozório de Almeida, custeado unicamente por subvenção particular de Guilherme Guinle. Nesse local, Álvaro Ozório desenvolvia suas pesquisas de fisiologia sobre o câncer e a lepra, em contato constante com o Instituto de Manguinhos e o Instituto da Indústria e Pesquisa Animal.
A melhor descrição do complexo hospitalar da Fundação Gaffrée e Guinle foi oferecida por Eduardo Rabello durante seu discurso à Academia Nacional de Medicina, em setembro de 1923. A extensa exposição permite perceber a dimensão conferida ao projeto:
Vou expor à Academia o plano deste instituto. A fundação propõe-se desde logo auxiliar o Governo na luta contra as doenças venéreas. [...] [Com] a fundação de um hospital e de ambulatórios modelos. [...]
O hospital não é somente um hospital, mas também um verdadeiro instituto, onde se estudarão e pesquisarão as doenças venéreas para o que se subdividirá em duas partes: uma, para o tratamento dos doentes, e outra, para as pesquisas.
Na parte das pesquisas haverá um verdadeiro instituto para o estudo da sífilis e das doenças venéreas. Nele se estudarão não só os melhores processos de diagnostico dessas doenças, como os de tratamento. Além disso, se procurará tratar da fabricação de remédios. Será um instituto de terapêutica experimental das doenças venéreas.
Conterá um serviço de ginecologia para atender aos casos de infecção ginecológica na mulher, e outro análogo de cirurgia para homens.
Além desses leitos, haverá mais cerca de 50 para prostitutas, que ficarão isoladas em um pequeno hospital a parte, completamente independente do resto do edifício, com logradouros próprios, jardins e mesmo quartos privativos para cada uma.
Para atender a questão da sífilis hereditária, será criada uma secção anexa à maternidade, para onde serão mandadas as gestantes que forem diagnosticadas como sifilíticas nos dispensários e não tiverem recursos para o tratamento. As crianças heredo-sifilíticas terão também uma creche anexa, onde permanecerão ate os dois três anos. Essa creche será a base de um futuro asilo para o tratamento dos heredo-sifilíticos.
Haverá ainda anexo um grande ambulatório, para todas as especialidades que tenham relação com as doenças venéreas, contendo consultórios para medicina, cirurgia, otorrinolaringologia, dermatologia, dentista, tudo enfim quanto for preciso para atender as diversas complicações e localizações da sífilis. Para ele irão os doentes que em outros dispensários tiverem necessidade de tratamento especial.
Além disso, atendendo a parte cientifica, será organizado um museu em uma das dependências do edifício; completar-se-á com uma biblioteca e sala de conferências.
Como se vê, e como eu disse, não é uma simples fundação de hospital, mas de uma grande instituição, que, uma vez levada a efeito, não terá par no mundo inteiro e colocará a profilaxia das doenças venéreas no Ro de Janeiro numa situação impar (RABELLO; BANM, 1923, p. 537-538).
Compreende-se o entusiasmo de Rabello, ao se ler a descrição do Hospital, fornecida pelo próprio arquiteto responsável. Além do aspecto espacial, Porto dAve (1927) chama a atenção para as transformações que o projeto do Hospital viera a sofrer em virtude da abertura de uma rua projetada nos fundos do terreno – a avenida dos Trapicheiros, atual rua Silva Ramos –, o que o obrigara a criar uma fachada posterior, na qual figuravam a capela, a entrada principal do Instituto de Pesquisa, e a casa do diretor-geral do Hospital. No artigo, Porto dAve também descreve as diversas seções e serviços do Hospital Gaffrée e Guinle. Ao discorrer sobre a parte destinada às prostitutas, Porto dAve confirma a política levada a cabo pela Inspetoria de Profilaxia da Lepra e das Doenças Venéreas, com base na qual se optou pela não-regulamentação da prostituição. Mais adiante no mesmo artigo, Porto dAve (1927, p. 9) ressalta todas as incertezas quanto à melhor política a ser posta em prática no controle da sífilis, além de marcar o papel do Hospital no combate ao mal venéreo:
Sendo impossível dentro da nossa constituição impor a obrigatoriedade do exame das meretrizes, como acontece em quase todos os países europeus embora com resultados discutíveis, cogitou-se no plano deste hospital, de reservar-lhes acomodações espaciais, dotadas de todo o conforto, de modo a atrai-las voluntariamente ao tratamento das doenças de que são as principais disseminadoras. Alem das enfermarias para as indigentes, localizadas no andar térreo, para aquelas que desejarem maior conforto e possam paga-lo, existem no 1o. andar, na parte posterior, 28 quartos reservados de um leito, e 4 apartamentos de luxo, aonde poderão ser tratadas com toda a reserva e conforto. As instalações destinadas a esta classe de doentes, embora no mesmo corpo do edifício principal são inteiramente isoladas, com entrada e jardim próprios, atendendo assim aos preconceitos sociais e constituindo por assim dizer um hospital independente.
O projeto do Hospital Gaffrée e Guinle estava inserido, em termos gerais, na tradição hospitalar moderna, com forte influência norte-americana, conquanto ainda apresentasse certa referência ao padrão arquitetônico europeu, o pavilhonar. Encontrava-se, assim, arquitetônica e funcionalmente, a meio caminho entre a estrutura pavilhonar – predominante na arquitetura hospitalar ao longo do século XIX, cuja principal característica era a preocupação com o contagionismo, revelada na separação dos serviços e na aeração dos pavilhões – e a arquitetura em monobloco, preponderante a partir do entreguerras.
Vicente Licínio Cardoso, em tese intitulada Higiene dos edifícios e saneamento das cidades, apresentada em 1927 no concurso para professor catedrático da disciplina Arquitetura Civil9, na Escola Politécnica (SANTOS, [s.d], p. 6), punha em relevo as diferenças básicas entre as arquiteturas americana e européia – esta última baseada em pavilhões, e aquela predominantemente em blocos. Cardoso entendia que as principais inovações incorporadas aos hospitais surgiram na Europa durante o século XIX – iluminação, aquecimento, água, gás, esgoto, aeração etc. – e, ao serem importadas pelos americanos, passaram a ser adaptadas e transformadas. Mas a diferença primordial entre ambas as concepções, para o autor, encontrava-se na interpretação e no uso dos preceitos da bacteriologia. O arquiteto baseava-se nos estudos de bacteriologia do médico americano Charles Chapin, publicados no livro The sources and modes of infections, de 1916, cuja tônica era a questão do contágio. Segundo Chapin, cujo pensamento é endossado por Vicente Licínio Cardoso, o controle do contágio estaria diretamente relacionado à assepsia do ambiente e ao bom funcionamento da enfermagem, o que permitiria a convivência de diversos serviços no mesmo prédio (CARDOSO, 1927, p. 104-108). Assim, para Vicente Licínio Cardoso (Idem, p. 146):
O hospital europeu traduz o temor do homem em face das teorias rigorosas ditadas pela bacteriologia, enquanto o tipo norte-americano exprime, ao contrário, o destemor hodierno conseqüente as conclusões epidemiológicas e bacteriológicas modernas que abriram horizontes novos, não só a higiene em sua fase profilática, como a medicina na sua ação de assistência hospitalar.
De acordo com a concepção norte-americana, um hospital geral moderno deveria ter enfermarias com pequeno número de leitos (de 10 a 20); quartos anexos para duas pessoas no máximo (e somente em casos especiais); quartos individuais (se houvesse pagantes) anexos às enfermarias, suficientemente amplos e bem distribuídos para o bom funcionamento da enfermagem. As clínicas seriam independentes e subdivididas em: geral, cirurgia; oftalmologia; otorrinolaringologia; obstetrícia e ginecologia; pediatria (médico-cirúrgica e ortopédica); dermatologia e sifilografia; e moléstias infecciosas. Conforme as dimensões do hospital, poderiam ainda funcionar clínicas de urologia, neurologia e psiquiatria, cancerosa etc. A seção de admissão dos doentes (triagem e diagnóstico) deveria ser bem atuante; caso o hospital recebesse grande número de enfermos, seriam necessários um dispensário e um ambulatório. Era imprescindível a instalação de um instituto de pesquisa para exames bacteriológicos, anatomopatológicos etc. Igualmente fundamentais seriam as instalações de fisioterapia, anexos como serviço de alimentação, lavanderia e casa de máquinas, bem como clínicas pediátricas – vetadas a casos declarados de doenças infecciosas –, e maternidade; esta última deveria receber tratamento especial e localizar-se afastada das outras clínicas (Idem, p. 161).
Por sua vez, um hospital para doenças contagiosas deveria cumprir requisitos especiais, assim resumidos nas palavras do professor (Idem, p. 163):
As enfermarias não devem ter mais de 12 leitos, devendo ficar metade do número de doentes em quartos de 1 e 2 leitos. Os pavilhões serão de dois ou três andares. Havendo elevador (3 pavimentos) - o uso para visitantes deve ser diferente do empregado para doentes e pessoal do hospital.
A análise das plantas do Hospital Gaffrée e Guinle revela que tais preceitos foram seguidos à risca pelo arquiteto e construtor Porto dAve (Figuras 9, 10 e 11).
Porto dAve descrevia seu projeto como "moderno" e com forte influência da arquitetura norte-americana, conforme atestava sua característica principal: tratava-se de um hospital urbano, e portanto, a questão do afastamento dos nosocômios em relação aos centros populosos estaria ultrapassada. Para o arquiteto, tal questão representava "preconceitos superados". Vale relembrar que tal urbanidade só pôde ser considerada a partir das novas teorias de transmissibilidade, com base nas quais solucionaram-se o contágio e a infecção nos hospitais com procedimentos de assepsia, de higiene, e com funcionamento eficaz da enfermagem.
Outros pontos característicos de um hospital moderno, para Porto dAve (1927, p. 8), consistiam em sua função eminentemente socioeducativa, sua localização de fácil acesso, e sua aparência alegre e atraente. Certamente o Hospital Gaffrée e Guinle adequava-se àquela teoria moderna: cumpria função socioeducativa, como ressaltara Vicente Licínio Cardoso, centrada em seu Instituto de Pesquisa; era de fácil acesso, melhorado ainda pela abertura da avenida dos Trapicheiros; e possuía ambiente "alegre e atraente", favorecido por um pátio interno arborizado, rodeado de arcadas, e por seu estilo colonial. Algumas particularidades do projeto reforçavam sua modernidade, como a separação das alas feminina e masculina, e a existência de elevadores, dois para cada uma das alas10. Enfim, na visão do arquiteto, o Hospital Gaffrée e Guinle observava a nova doutrina arquitetônica e bacteriológica.
A opção pelo estilo colonial, como explica Porto dAve, pode ser traduzida como uma visão de mundo – comum ao grupo formado pelo arquiteto e pelos médicos envolvidos no projeto do Hospital –, a partir da qual os traços nacionais eram valorizados: "Sua arquitetura obedece as linhas fortes, sóbrias e perfeitamente definidas do estilo colonial, cuja origem foi trazida através dos tempos, pela tradição dos velhos e grandiosos monumentos erigidos pelos primeiros artistas que aportaram as plagas brasileiras" (Ibidem).
A valorização do estilo brasileiro, presente no controle da sífilis – a salvação da raça e das gerações futuras –, manifestou-se, portanto, também no estilo arquitetônico colonial adotado na fachada dos prédios do Hospital Gaffrée e Guinle. Vale ressaltar os detalhes da ornamentação da fachada do biotério, onde o pórtico apresenta um afresco com papagaios e espigas de milho (Figuras 12 e 13), em referência tanto ao uso do espaço – destinado à criação de pequenos animais –, quanto a elementos da terra; ou mesmo os detalhes da caixa dágua com a representação de golfinhos. Paralelamente, a escolha do jacarandá nos lambris e na escadaria da casa do administrador, ou casa do diretor (Figura 14), em contraste com o mármore importado que revestia o chão11, iluminado por um vitral ornamental que circundava o recinto, reforça tanto a brasilidade quanto uma volta aos períodos colonial e imperial – quando o jacarandá era a madeira representativa da elite de então.
O complexo para o combate à sífilis – o Hospital, o Instituto de Pesquisa e os Ambulatórios – foi de modo geral bem recebido, não só na imprensa médica, mas também na imprensa cotidiana. Werneck Machado, na sessão da Academia Nacional de Medicina de 27 de setembro de 1923, discursou sobre a importância da criação da Fundação Gaffrée e Guinle. Referiu-se à própria experiência na Sociedade Brasileira de Profilaxia Moral, bem como à já mencionada proposta de Pizarro Gabizzo, e solicitou um voto de louvor a Guilherme Guinle pelo patrocínio do empreendimento – este discurso de Werneck Machado ensejou a resposta de Eduardo Rabello, citada anteriormente. Na mesma sessão, Nascimento Gurgel, então presidente da Academia, afirmava que a criação da Fundação constituía "notícia altamente significativa".
Os periódicos médicos Arquivos Brasileiros de Medicina e Brazil Médico, assim como os jornais Correio da Manhã, O Jornal e Jornal do Commercio, também publicaram, em setembro de 1923, a íntegra dos termos constitutivos da Fundação Gaffrée e Guinle. A grande divulgação desses termos pela imprensa especializada e geral atesta, de um lado, o valor atribuído à ação de Guilherme Guinle, e, de outro, a importância concedida pela sociedade ao controle da sífilis. Pode-se mesmo comparar a relevância que a imprensa cotidiana da época conferiu à Fundação Gaffrée e Guinle à que recebeu a Liga Brasileira contra a Tuberculose, outra presença constante nos jornais.
Também os Annaes Brasileiros de Dermatologia e Syphilografia publicaram, em seu primeiro número, em janeiro de 1925, um artigo sobre a Fundação Gaffrée e Guinle. Para seus editores, aquele exemplar não poderia deixar de fazer referência à instituição. O texto alude aos ambulatórios da Fundação e ao projeto que tornaria o empreendimento uma
Vasta e perfeita organização de profilaxia venérea [...], [o] grande hospital, já em construção, que obedece ao tipo dos mais adiantados das grandes organizações hospitalares americanas, será dotado de todos os requisitos modernos que lhe permitirão, não só prestar aos doentes uma assistência eficaz, como servir aos interesses da ciência médica (ABDS, 1925, p. 90).
Vale mencionar que os editores dos Annaes estavam envolvidos nesse projeto: Eduardo Rabello pertencia ao Conselho Administrativo da Fundação, Gilberto de Moura Costa era o diretor do Hospital Gaffrée e Guinle, e Oscar da Silva Araújo era da mesma forma ligado ao empreendimento.
A imprensa médica de grande circulação também publicava anualmente a movimentação dos ambulatórios da Fundação, uma forma de divulgar entre a comunidade médica os bons resultados colhidos pela instituição e a sua boa aceitação por parte da sociedade.
Um depoimento importante é o de Oscar Silva Araújo, que substituiu Eduardo Rabello à frente da Inspetoria da Lepra e das Doenças Venéreas. Ao assumir o posto, em 1927, Araújo publicou nos Arquivos de Hygiene um balanço das ações da Inspetoria em relação à profilaxia das doenças que constituíam objeto de trabalho daquele órgão. No texto, a Fundação Gaffrée e Guinle era reconhecida como uma instituição que cooperava com os trabalhos da Inspetoria. Ainda segundo Araújo, após a conclusão das obras, a Fundação se tornaria "Uma vasta e perfeita organização de prophylaxia venérea" (ARAÚJO, 1927, p. 216).
No relatório da Inspetoria da Lepra e das Doenças Venéreas de 1927, Oscar da Silva Araújo expunha um balanço do trabalho da repartição nas doenças que lhe cabia assistir. Com relação à sífilis, o médico mencionava a construção e manutenção dos dispensários, frisando que aqueles destinados à população civil lograram maior êxito do que os dedicados aos militares. Araújo consagrava destacada atenção ao Serviço Especial para Prostitutas, o qual, a seu ver, alcançara ótimos resultados, "muito superiores aos obtidos em certas cidades onde a prostituição é regulamentada" (Idem, p. 210), em virtude sobretudo da propaganda – conferências para o público leigo e especializado, além de exposições de educação sanitária (Ibidem).
Os bons resultados colhidos pelas campanhas de profilaxia da sífilis, bem como o sucesso no controle da doença (ARAÚJO, 1927, p. 218-219), permitiram que, com o tempo, o Hospital Gaffrée e Guinle diversificasse seus serviços. Em 1946, um acordo entre o DNSP e a Fundação Gaffrée e Guinle permitiu que parte do Hospital fosse arrendada ao Serviço Nacional do Câncer; o acordo vigorou por cerca de 10 anos (BODSTEIN, 1987, p. 46-47).
Após a morte de Guilherme Guinle, em 1960, não perdurariam as relações entre Hospital Gaffrée e Guinle e a família que o fundou e o manteve. Em meados dos anos 1960, um acordo entre o governo federal e a Fundação Gaffrée e Guinle, tendo à frente Carlos Guinle, transferiu para a alçada federal o Hospital, que passou a constituir o Hospital Universitário da Faculdade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro – hoje Universidade do Rio de Janeiro (Unirio) –, e teve seu nome alterado para Hospital Universitário Gaffrée e Guinle.
Considerações finais
Ao longo deste trabalho, procurei mostrar que a criação da Fundação Gaffrée e Guinle (representada pelo Hospital Gaffrée e Guinle e seus ambulatórios antivenéreos) materializou, antes de tudo, o projeto de um grupo de médicos ligados à Faculdade de Medicina e à Inspetoria de Profilaxia da Lepra e das Doenças Venéreas. Assim, tal projeto veio a sintetizar o pensamento médico da época, tanto no que tange à arquitetura hospitalar quanto no que se refere ao entendimento sobre a sífilis.
Dentro da análise da criação da Fundação Gaffrée e Guinle no contexto histórico-institucional da saúde pública, entrecruzam-se diversas relações, como a cultura da elite brasileira da virada do século, a institucionalização de determinado saber médico – representado pela legislação antivenérea desenvolvida e realizada pelo grupo liderado por Eduardo Rabello –, e a política de saúde pública. A dimensão das ações da Fundação passa a ser fruto não apenas do altruísmo do filantropo Guilherme Guinle, mas também do interesse dos médicos que o circundavam e, cientificamente, respondiam por aquele empreendimento. Bem-sucedida união da vontade de doar com o objeto da doação. E também investimento em determinado projeto de saúde pública e de valorização do homem brasileiro – a garantia do futuro da nação.
A Fundação Gaffrée e Guinle representou, de certa forma, o feliz encontro entre o salão e o laboratório; as distâncias entre um e outro não eram tão grandes, como atestam os ambientes comuns freqüentados por representantes de ambos os grupos, e as sociabilidades que ali se teciam.
As imagens do hospital não só nos permitem refletir sobre os saberes médicos envolvidos em sua construção – sobretudo pela tipologia escolhida, clara inspiração dos hospitais higiênicos do século XIX, onde era fundamental a preocupação com a ventilação e a insolação –, mas também tornam possível constatar a valorização do nacional. Valorização esta que se manifestava seja através da linguagem arquitetônica do neocolonial, ou da opção do uso do jacarandá nos lambris da casa do diretor – madeira por algum tempo associada ao período imperial, vindo mais tarde a perder o seu status para o mobiliário moderno, em estilo francês –, seja através de sua estreita vinculação com a ciência nacional, aquela defendida e praticada em Manguinhos, explicitada no vitral do Instituto de Pesquisa. A opção nacionalista trazida à tona pelo hospital sintetiza todo o ideal de uma época em que a criação e a construção da Nação figuravam na ordem do dia – no caso em questão, a salvação da raça se daria através do combate e controle da sífilis.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-47142007000200020&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt
Anais do Museu Paulista: História e Cultura Material
ILMA PESQUISADORA
ResponderExcluirBoa noite sou aluno de enfermagem da unirio e nunca tinha ouvido falar ou ler mesmo dentro da unirio nada sobre a origem do gafreguinle.
eu desconfiou que isso nao e de sua alçada mas as imagens e estruturas aqui mostradas...
o que aconteceu com elas ?
o que levou a desintegraçao dessa
mega estrutura de saude ?
sem mais para o momento
cordiais saudaçoes
abreujoaoabreu@ymail.com