quarta-feira, 21 de outubro de 2009

A heroína do Novo Mundo


A heroína do Novo Mundo
“Maria de Sanabria – a lendária expedição das mulheres que atravessaram o Atlântico no século XVI”, do ítalo-uruguaio Diego Bracco, é um romance histórico sobre a aventura dessa nobre sevilhana que, em 1550, chegou ao litoral de Santa Catarina
Dida Bessana


(12/09/2008)

Cervantes os chamou de “o povo do rio”. Eles eram de todos os tipos na cidade de Sevilha, a mais meridional de Castela e a mais populosa do reino, com 45 mil habitantes. Capital da Andaluzia, cortada pelo rio Guadalquivir, era o principal porto fluvial dos domínios da rainha Isabel no século 16. A 130 quilômetros do mar, operava como porto de embarque para as expedições espanholas ao sul e a oeste e vivia cheia de marinheiros, carregadores, mendigos, moleques, ladrões e comerciantes. Entre aqueles com uma perspectiva de vida nada promissora, grande número de mulheres. Sem dote para aspirar a um bom casamento, ou perseguidas por haver dúvidas quanto à sinceridade da conversão de seus pais ao catolicismo, cerca de cinqüenta jovens foram convencidas a integrar uma expedição ao Novo Mundo, sob o comando de uma nobre sevilhana: Maria de Sanabria.

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O ítalo-uruguaio Diego Bracco, autor de Maria de Sanabria – a lendária expedição das mulheres que atravessaram o Atlântico no século XVI, alia pesquisa documental e ficção, para falar daquela que, segundo ele, “é a única expedição de mulheres à época de que se tem notícia”.

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Historiador formado pelo Instituto de Professores do Uruguai, doutor em História pela Universidade de Sevilha, pesquisador do Museu de Antropologia do Uruguai e especialista em história indígena, Bracco, que atualmente mora em Sevilha, nasceu em Copenhage, em 1959, e já estava bastante familiarizado com os documentos do período retratado no romance. Boa parte das informações que embasam seu relato ele extraiu do Arquivo Geral das Índias, em Sevilha, e do Arquivo Geral da Nação Argentina.

“O início dessa aventura”, explicou, “foi um motim em Assunção do Paraguai, em que os colonizadores se revoltaram contra a administração metropolitana”, a cargo de Álvar Núñez Cabeza de Vaca, que tentou, sem sucesso, conter os abusos dos europeus na região. “Uma vez derrotado em Assunção, Cabeza de Vaca passou os anos seguintes negociando com a monarquia, que nem o reconduzia ao cargo, nem o destituía oficialmente, porque isso significaria dar razão aos revoltosos. Mas o que ele fez e onde esteve exatamente nessa época é um mistério para os historiadores”, concluiu Bracco. Mesmo assim a Coroa nomeou outro governador em 1547, Juan de Sanabria, que morreu logo em seguida em circunstâncias pouco claras (as quais o autor explora no romance para dar a entender que Maria teria contribuído, e muito, para que ele não estivesse vivo na hora de zarpar). Decorrência natural, seu filho foi indicado para substituí-lo, mas declinou do encargo, sendo substituído então por sua irmã mais velha, Maria, que embarcou acompanhada de sua mãe, Mencía, e de sua irmã caçula, Mencita. Para alcançar esse objetivo, tornar-se a responsável pelo comando da expedição, Maria se teria valido, ainda, de uma aliança secreta com Cabeza de Vaca.

O Novo Mundo
“O Rio da Prata era um território pouco conhecido nessa época. Havia entre trezentos e quatrocentos espanhóis isolados em Assunção do Paraguai, os quais somavam todo o contingente na região, que abrangia os atuais Argentina, Uruguai, Paraguai, parte do Brasil e provavelmente a Bolívia”, contou Bracco. “Assunção era conhecida como o Paraíso de Maomé, pois cada conquistador espanhol tinha dezenas de mulheres indígenas”. Foi precisamente essa necessidade de evitar a mestiçagem o fator determinante no momento em que se decidiu pela expedição. “A presença das mulheres européias era um fator relevante para a Coroa, a fim de poder manter uma classe dominante de origem não mista na América”, acrescentou.

Durante a travessia, cujos cenários incluem Sanlúcar de Barrameda (ponto de partida), Lisboa, Canárias e o Atlântico, a tripulação enfrentou vários percalços, desde calmarias prolongadas, tempestades e enfermidades até o ataque, no Golfo da Guiné, de corsários, que saquearam praticamente toda a carga que deveria ser comercializada em terras coloniais. Neste enfrentamento, após “um angustiante anúncio vindo da gávea que indicava velas perto da costa”, ponto alto do livro, pode-se ter uma idéia, mesmo que um pouco incrementada pela ficção, da pertinácia e esperteza de Maria, que age à revelia do capitão Salazar, descrente da possibilidade de vitória caso tentassem enfrentar “os heréticos franceses”.

Embora “uma sucessão de desastres”, segundo o autor, pois “a expedição teve poucas conseqüências políticas e militares” – fundeou no litoral de Santa Catarina em 1550 desfalcada de uma embarcação, cujo destino nunca se soube –, María de Sanabria fez história.

Se, no romance, ela se apaixona pelo arcabuzeiro Hans Staden, desaparecido antes de chegar a terras brasileiras, na vida real casou-se duas vezes, primeiro com Hernando de Trejo, substituto do capitão Salazar, e depois com Martín Suárez de Toledo, estabeleceu-se em Assunção, onde permaneceu até 1558, e deixou para os filhos uma herança moral. Um deles, Hernando Arias de Saavedra, conhecido como Hernandarias, dedicou sua vida à evangelização, tendo sido um dos fundadores de Corrientes; o outro, Fernando de Trejo y Sanabria, no fim do século 16 tornou-se bispo de Tucumán e foi um dos responsáveis pela criação da Universidade de Córdoba. Mas essa é outra história que Bracco, também autor de El mejor de los mundos, Prêmio de Narrativa da Universidade de Sevilha e Prêmio Revelação da Feira do Livro do Uruguai, talvez ainda nos conte.

Le Monde Diplomatique

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