domingo, 25 de outubro de 2009

Artur: De Guerreiro a Rei Cristão

Artur: De Guerreiro a Rei Cristão
nas Fontes Medievais Latinas e Célticas

Profa. Ms.Adriana Zierer
Doutoranda em História/ UFF
medival@domain.com.br


Fig 1. Rei Artur em combate contra os bárbaros, com o estandarte do dragão. Século XIV. Biblioteca Nacional de Paris. In: ROLLESTON, T.W.Guia Ilustrado de Mitologia Céltica . Lisboa: Editorial Estampa, 1993, p. 125


A figura de Artur como rei foi construída do século VI ao século XII quando o mito — até então forma de resistência dos bretões contra os seus dominadores, os saxões — foi relido pelos invasores normandos, tornando-se modelo de conduta régia em toda a Europa Ocidental.
Como o mito (1) arturiano surgiu primeiro entre os bretões, seria interessante situar historicamente esta população. Povo de origem céltica, habitantes da Bretanha, os bretões viviam em tribos rivais entre si, sendo liderados por um chefe ou rei. Acreditavam na existência do Outro Mundo, povoado por vários deuses, sempre em contato com os vivos.
Um relato ilustrativo da passagem dos celtas ao Além é o conto Pwill, Princípe de Dyvet. Esta fonte relata a troca de papéis entre Pwill, do mundo dos vivos, com o rei do Outro Mundo, Arawn. Cada um assume a identidade e forma física do outro, sendo que Pwill reina no mundo dos mortos e dos deuses por um ano. Sua principal prova consistia em matar um oponente de Arawn, no que foi vitorioso. Como prêmio, ao voltar ao mundo dos vivos, passa a ser conhecido como Pwill, princípe de Awnnwvyn (isto é, princípe do Outro Mundo)
( Mabinogion , 1988: 03-43).

Devido à sua falta de unidade política, a população celta sofreu conquistas sucessivas. No século I, foram atacados pelos romanos. Estes, apesar da dominação realizada, protegeram os bretões de outros invasores através da construção das muralhas de Adriano. Os romanos também não interferiram muito na cultura céltica, apesar de terem perseguido os druidas. O druidismo era forte na Bretanha e se constituía num perigo para o pensamento e a política dos romanos. No ano 61, por exemplo, foram massacrados os druidas de Anglesey e destruído esse grande santuário do druidismo. No entanto, em busca de aliados compreensivos nesta região longínqua do Império Romano, a romanização na região não foi profunda e foi permitido na Bretanha a manutenção da hierarquia céltica tradicional (MARKALE, 1994: 152-156).
Mas, com o fim do Império Romano no século V, os bretões passaram a sofrer o ataque de outros povos que pretendiam conquistar a ilha: os escotos, pictos e saxões. É bom lembrar que os escotos (irlandeses) e pictos (escoceses) eram também povos de origem céltica, mas sempre estiveram em conflito com os bretões. No século VI, sob a chefia dos saxões conseguiram dominar a Bretanha.
Neste momento, os bretões passaram a difundir histórias sobre a existência de um rei perfeito, Artur, que um dia retornaria da Ilha de Avalon e retomaria o controle da Bretanha, expulsando os invasores. Foi assim que surgiu o mito arturiano.
Pistas histórias se espalharam pois muitos bretões após a dominação saxã refugiaram-se na Armórica ou Pequena Bretanha.
A existência de Artur não é atestada pela historiografia. Se existiu, teria sido um chefe guerreiro (dux bellorum ) vencedor de várias batalhas contra os saxões, sendo a mais importante a batalha do Monte Badon, já no século VI.
Por isso, após a derrota dos bretões, as histórias construídas em torno da imagem de Artur se tornaram um meio de resistência à dominação através das idéias. O elemento básico do mito é a crença de que ele é uma realidade vivida, isto é, as pessoas acreditam que o mito é real.
Com a invasão normanda sobre a Bretanha, houve uma apropriação do mito arturiano, pois os conquistadores criaram uma nova interpretação sobre Artur, procurando apresentar-se como descendentes do rei bretão. Entendo o conceito de apropriação como uma nova interpretação de um discurso (ato de comunicação linguística). (ROMANO, 1989) Para Chartier as práticas discursivas são “produtoras de ordenamento, afirmação, distâncias, divisões; daí o reconhecimento das práticas de apropriação cultural como formas diferenciadas de interpretação”(CHARTIER, 1988: p.27-28).
Artur, transformado então em modelo de rei cristão, portava agora uma dupla ambigüidade; possuía a espada Caliburn, forjada no Outro Mundo e o escudo com a imagem da Virgem Maria, símbolo da religião cristã. Neste segundo momento, a figura de Artur continuou como um mito, pois transformou em modelo de rei perfeito, espelho dos reis medievais, um rei que nunca havia existido.
Procurarei agora apresentar as principais fontes sobre o mito arturiano, lembrando que este relaciona-se estreitamente à narrativa, pois o mito expressa-se através de um relato.
A partir do século XII, começou a ser construído por escrito na Europa Ocidental o mito do rei Artur. Esta imagem do soberano perfeito, senhor de uma cavalaria modelo é particularmente interessante por ter sido utilizada para fins políticos por diversos grupos dominantes na época — rei, nobreza, clero, cada qual visando fortalecer o seu poder.
As histórias sobre Artur e seus cavaleiros não compõem um único ciclo ou conjunto de narrativas. Pelo contrário, independentes umas das outras, têm em comum alguns elementos. Artur, seja personagem central ou secundário, é sempre apontado como rei justo, congregando ao redor de si uma corte valorosa. Quando sua atuação bélica é mencionada, seu papel como guerreiro excepcional é sempre louvado.
O mito construído pelos bretões era bem diferente daquele imaginado pelos escribas desde o século XII, os quais só conservaram elementos superficiais das histórias tradicionais e as reescreveram de acordo com os gostos e interesses das cortes européias.
Tratarei a seguir das fontes arturianas, fazendo um mapeamento das mesmas e não apresentando a visão de uma história única e linear sobre Artur.

Figura 2. Rei Artur. Escultura alemã do século XIII. Germanisches Nationalmuseum, Nuremberg



II.1. FONTES LATINAS
II.1.1. Geoffroy de Monmouth
A obra que favoreceu a difusão das lendas arturianas na Europa Ocidental foi a Historia Regum Britanniae (1135-1138), do clérigo Geoffroy de Monmouth. Não que esses relatos não fossem conhecidos, como se pode atestar pela presença de esculturas de Artur e Guenièvre na catedral de Módena, na Itália, antes da obra de Geoffroy (BRUNEL, 1997: 102, MARKALE: 1994, p. 101). Porém, foi a dinastia anglo-normanda, conquistadora da Inglaterra no século XI, a primeira a se apropriar do personagem Artur para fins políticos, com o objetivo de reforçar seu poder.
O relato é uma mistura de crônica histórica e canção de gesta. Enquanto a crônica trata de fatos contados na ordem de sua sucessão, codificando esses fatos e suas datas ano a ano, reino a reino, numa narrativa sucinta e linear, a canção de gesta é um longo poema de tema guerreiro (épico). Era cantada com auxílio de um instrumento de cordas e sua temática eram as lutas da Alta Idade Média para a conquista de territórios, nos quais os heróis lutam contra os inimigos dos cristãos. As canções de gesta foram compostas nos séculos XII e XIII e fazem parte da literatura aristocrática. Os poemas mais famosos são A Canção de Rolando e A Canção do Mio Cid.
Embora cite vários reinados, o que a caracterizaria como uma crônica, a Historia Regum Britanniae não é linear; por exemplo, o anúncio do nascimento de Artur por Merlin é uma antecipação (2). O relato de Geoffroy aproxima-se das canções de gesta porque Artur é apresentado como guerreiro invencível. O fato de ser um rei guerreiro em luta com os pagãos e de empreender uma guerra santa contra eles era um motivo do gênero épico.


O texto é ambíguo, misturando ficção e história. Ao tentar dar veracidade à sua narrativa, o autor cita duas fontes:
De Excedio et Conquestu Britanniae , de Gildas (século VI) e Historia Ecclesiastica Gentis Anglorum (século VIII), de Beda, embora utilize também informações da Historia Brittonum
, de Nennius (século IX). Apesar de citar estas fontes se apresenta como tradutor de uma fonte bretã única para o latim.
O objetivo da Historia Regum Britanniae é a exaltação dos bretões, procurando fazer uma história genealógica para legitimar os grandes senhores normandos, e logo depois a dinastia dos Plantagenetas. O texto fora uma encomenda da corte de Henrique I (1100-1135), avô de Henrique II e então rei da Inglaterra. A obra é dedicada ao conde Roberto I, filho ilegítimo de Henrique I, tendo sido concluída após a sua morte, já no governo de Estevão de Blois (1135-1153). A dedicatória pode ser vista através destes versos: “Tu também Roberto, conde de Gloucester (...) fazes com que esta obra traga um brilhante sucesso com o público. Tu és um descendente do ilustre rei Henrique.” (GEOFFROY DE MONMOUTH (HRB), 1985: 26).
De acordo com o tradutor Mattey-Maille, Roberto I foi protetor não apenas de Geoffroy, como também incentivou a segunda e terceira edições da Historia Regum Anglorum , de William de Malmesbury, composta entre 1135-1140 e que é também dedicada a este conde. Embora a maioria dos manuscritos da Historia Regum Britanniae sejam dedicados a Roberto, alguns fazem uma dupla menção, referindo-se ao conde de Gloucester e ao conde de Meulan, Galeran. (MATHEY-MAILLE, 1985:p.289).
Geoffroy usa livremente suas fontes sem se preocupar em ser fiel ou respeitar o conteúdo das mesmas. Quanto à fonte bretã que ele diz traduzir, foi certamente, uma invenção para dar legitimidade a seu texto e conferir-lhe autoridade (HRB, 1985: 14).
O texto pretendia valorizar o glorioso passado dos bretões, identificando-os aos normandos, os quais se apresentavam como continuadores da linhagem bretã através de seu mais nobre representante, Artur.
Além disso, existe uma clara relação entre Artur e Rolando, o herói da canção de gesta francesa. Os anglo-angevinos pretendiam dar uma resposta literária ao rei da França, apresentando um herói guerreiro à altura de A Canção de Rolando , cujo personagem central é ligado à figura de Carlos Magno e consequentemente à dinastia capetíngia.
A Canção de Rolando é um poema escrito entre os fins do século XI e meados do século XII, que contém 4002 versos decassílabos assonânticos. Baseia-se num fato real do reinado de Carlos Magno, a batalha de Roncesvales, na qual morreu Rolando, sobrinho do rei. No relato, que mistura elementos fantasiosos, o motivo da derrota dos cristãos é a traição de Ganelão, nobre da corte do rei que se alia aos muçulmanos em virtude de vingança pessoal contra o enteado Rolando. Este último é apresentado como exemplo de bravura, juntamente com outros doze cavaleiros, denominados os Doze Pares da França.
Na obra o monarca francês é apresentado como o único capaz de impedir os infiéis de dominarem a Europa. Como resposta, Henrique Plantageneta, vassalo do rei Luís VII e rei da Inglaterra, encomendou a Robert Wace a transcrição para o francês dos versos de Geoffroy, que apresenta a história de um rei expansionista, conquistador de trinta reinos e de Roma. Artur, assim como Rolando, também combatia pela Cristandade ao expulsar os pagãos da Bretanha: os saxões, escotos e pictos. O primeiro chega a conquistar a França, então sob domínio romano.

3. Rei Artur. Detalhe da tapeçaria francesa Os Nove Cristãos Notáveis . Século XIV.



Sobre o uso político de figuras como Rolando, Carlos Magno e Artur, é interessante este trecho de Georges Duby: o poder de Henrique (II) enraizava-se fortemente no reino de França. Embora se estendesse para lá da Mancha, onde o príncipe era rei. Na rivalidade que o opunha ao Capetíngio, o Plantageneta apoiava-se nesse cargo insular. Facilmente ia buscar à cultura das ilhas britânicas os materiais de um edifício ideológico construído contra a ideologia da realeza franca. Sabe-se como os literatos que escreviam sob encomenda exploraram a ‘matéria da bretanha’, erguendo ante a figura de Carlos Magno, a do rei Artur (DUBY, 1982: 313).
O monarca bretão portava elementos pagãos e cristãos: uma espada (Caliburn) forjada no Outro Mundo, mas seu escudo Pridwen, a quem sempre apelava nas batalhas, continha a imagem da Virgem Maria (HRB, 1985: 208-209).
A morte de Artur ocorre devido à traição de Mordret, que usurpa o trono quando o tio empreendia a conquista de Roma. Até então invencível, Artur é mortalmente ferido na luta contra o sobrinho, indo a seguir à Ilha de Avalon para curar seus ferimentos. A obra de Geoffroy não diz, no entanto, se Artur algum dia retornará, como afirmavam as velhas crenças.
A conquista dos bretões é vista no seu livro como um castigo divino. Com o domínio saxão, uma série de calamidades se abatem sobre o país, como a peste e a fome. O último rei bretão, Cadwallader, refugia-se na Armórica, e recebe de um anjo um aviso para se dirigir ao papa de Roma, onde morre. A ressurreição dos bretões é prometida para um dia no futuro, graças à fé cristã (HRB, 1985: 259-285).
Numa obra posterior de Geoffroy de Monmouth, Vita Merlini (1148), Artur também não retorna de Avalon para salvar seu país. De acordo com as profecias de Taliesin, serão Cadwallader e Conan que mais tarde libertarão a Bretanha:


Na Vita Merlini (...), o papel de messias é igualmente
recusado a Artur numa conversa onde Taliesin aconselha a
enviar mensageiros até a Ilha de Avalon, a fim de trazer de
volta o grande rei para expulsar os saxões. Serão
Cadwallader e Conan, que segundo as profecias de Merlin,
deverão ser mais tarde os libertadores do país
(SÉCHELLES, 1957: 187).



A suposta descoberta dos túmulos de Artur e Guenièvre na abadia de Glanstonbury em fins do século XII também parece contribuir com a idéia de que o rei realmente estaria morto, procurando sepultar a idéia bretã de que um dia conseguiriam retomar o controle da Ilha.

Figura 4. Placa do local onde estão supostamente enterrados Artur e Guenièvre diante das ruínas da Abadia de Glanstonbury. Os restos mortais do rei e rainha foram sepultados em 1278, por ordem do rei Eduardo I.

Matéria completa no endereço a seguir: http://www.brathair.cjb.net número 2 - 1 - 2002

Revista Brathair

Nenhum comentário:

Postar um comentário