terça-feira, 13 de outubro de 2009

A América do desejo: pesadelo, exotismo e sonho


Elizabeth Cancell
Historiadora da Universidade de Brasília. Instituto de Ciências Humanas. CEP 79910-900. cancelli@unb.br

Por maiores que sejam as diferenças, as particularidades
de outros homens ou outros povos, sempre haverá
algo que seja comum a todos. Este algo deverá ser o
ponto de partida de toda a compreensão.

Leopoldo Zea


As várias construções sobre a América, o Novo Mundo, encerram, de uma forma geral, projeções que poderiam ser circunscritas sob um eixo principal: o do desejo. Mas de um desejo que se projeta primeiro em sonho, depois em exotismo e pesadelo. À primeira vista, estes componentes de projeção que perfazem esta vontade de possuir ­ a utopia ­ poderiam ser tidos como antagônicos entre si. Com ser sonho e pesadelo, realidade de uma terra alcançada, e exotismo ao mesmo tempo? Complexas, estas construções de projeção por sobre a América encerram um dos princípios primários do comportamento humano, veneração e horror ao mesmo tempo: totem e tabu.2

Assim, longe de se constituírem como um todo antagônico, estas três projeções se complementam e se fundem como um amálgama indissolúvel. O desejo, sob o qual todas elas se agrupam, manifesta a vontade de possuir. Tem o significado do totem. Uma projeção de prazer que o continente descoberto exercia enquanto foco de atração irresistível para a aventura, para a riqueza e para a lascívia. Uma busca de liberdade perante o suplício da Europa miserável e autoritária,3 daí o sonho, a utopia, a projeção no futuro.

Mas também um pesadelo, não pela razão que queria Leopoldo Zea ao qualificá-la como fruto do demônio aos olhos do recente conquistador seiscentista,4 mas porque mais e mais a América ao longo dos séculos, ou mais especificamente a América Latin a, se construiu, ao invés da utopia paradisíaca, como o lugar da dificuldade, da pobreza e da miséria, onde sonhos se transformaram em pesadelos, onde se criavam novos e se reproduziam horrores europeus: uma América da (des)ilusão;5 uma América que se construiu como estranhamento, como exótico, não mais como utopia. Se a utopia pressupunha a razão, ou seja, a libertação do ódio e das agruras européias, esta América era lida cada vez mais como o antídoto da razão e da vontade, não na inserção de sua existência pré-colombiana, mas na inclusão de sua dinâmica ao longo dos últimos cinco séculos da história universal. Por isso, sobre os que passaram a ser chamados de párias americanos (os seus habitantes) e sobre este exotismo como diferença, se reservaram construções políticas que não a viam e não a vêm como Novo Mundo, já que o novo deveria carregar em si a idéia de recomeço, ou mesmo de simbiose e de extensão em relação ao Velho Mundo; em vez disto, construiu-se algo que se constituiria no imaginário destas construções políticas como a América como representativa do verdadeiramente velho, no sentido de ultrapassado, de pesadelo, de estranhamento, de antiparadisíaco.

Se um dos fatores provocativos deste sentido de estranhamento é justamente a construção de uma América como sinônimo de atraso ­ e daí de algo ou de algum lugar que não se aceita como adequado ou como digno de vir à luz ­, não admira que toda a América ­ com sua cultura intelectual ­ tenha sido classificada como "fora de lugar", sincrética, ou como estabelecia, em meados do século XIX, o argentino Esteban Echeveria, um inspirado em Saint Simon, Pierre Leroux e Eugène Lermier,6 que em ciência poderíamos seguir a Europa, "em política não; nosso mundo de observação e aplicação está aqui (...). Apelar para a autoridade dos pensadores europeus é introduzir a anarquia, a confusão, o embrolho na solução de nossas questões".7

Entenda-se: como dar legitimidade ou reconhecer pensamento em um lugar que se sente como de estranhamento?

Sentir-se, portanto, a América a partir da estética, de perceber o outro, tal qual definida por Freud ao refletir sobre o estranho (unheimlich),8 é assumir que o unheimlich é apresentado de certa forma como assustador, estranho, exótico porque, na verdade, deixou de ser familiar (heimlich), assimilável, e que, embora devesse permanecer secreto, acabou por vir à luz e trazer à tona significados secretos capazes de produzir esta sensação de estranhamento (Unheimlichkeit).9

De certa forma, Colombo antecipara esta postura de alteridade do e em relação ao homem americano. É como sugere Todorov ao analisar a relação do descobridor do Continente com os selvagens e afirmar que Colombo constrói simultânea e ambiguamente dois tipos de relação perante o "outro": ou pensa que os índios

são seres completamente humanos, com os mesmos direitos que ele, e aí considera-os não somente iguais, mas idênticos, e este comportamento desemboca no assimilacionismo, na proteção de seus próprios valores sobre os outros; ou então parte da diferença, que é imediatamente traduzida em termos de superioridade e inferioridade (no caso, obviamente são os índios os inferiores): recusa a existência de uma substância humana realmente outra, que possa não ser meramente um estado imperfeito de si mesmo.

E ­ complementa a ácida crítica de Todorov ­ que estas duas figuras básicas da experiência da alteridade baseiam-se no egocentrismo.10

Assim, de uma certa forma, as palavras do peruano José Carlos Mariatégui11

Pelos caminhos da Europa encontrei o país da América que havia deixado e no qual havia vivido quase como um estranho e ausente. A Europa revelou-me até que ponto eu pertencia a um mundo primitivo e caótico e, ao mesmo tempo, me impôs e me esclareceu o dever de uma tarefa americana.

Não fogem muito do pensamento desenhado por vários autores ao longo da construção de pensamento sobre a América Latina ou, como querem alguns, da América Ibérica: conseguir reconhecer-se apenas a partir da exterioridade em relação ao Velho Mundo. Ser tido e se assumir como estranho,12 não mais porque índio, como definido por Colombo, mas como latino-americano. Um exercício de construção política difícil de entender se partirmos de um outro pressuposto: o de que não somos mais do que um lugar de simbiose histórica. Como construção da América, como fruto da diáspora européia, somos o mesmo, não o outro.

Era também assim, de uma visão integrante, que Hannah Arendt partiria para finalmente lançar, em 1963, nos Estados Unidos, o seu On Revolution. Um estudo sobre a independência americana que ela resolvera ousadamente batizar de Revolução. Era originado de uma série de palestras dadas em Princeton, no mês de abril de 1955, e foi retrabalhado durante o ano de 1960.13 Este estudo carregava em si, além da peculiar crítica da autora à banalização da idéias de democracia, princípios de análise que evidenciavam não só a aposta em um novo começo, como o aviso sobre a perda da herança democrática deixada pelos pais fundadores norte-americanos: a ênfase na diferença crucial existente entre liberdade e libertação. Neste ponto especificamente, Arendt deixou transparecer os princípios díspares que teriam guiado a independência americana e os modelos de "revolução latino-americanos", muito mais engajados na libertação do que na liberdade. Portanto, muito menos utopia.14

As afirmações de Arendt eram contundentes e partiam da premissa de que as condições alarmantes de miséria das massas, tão importantes para a Revolução Francesa, não exerceram qualquer influência na Revolução Americana,15 já que há muito o novo continente havia se transformado "em um refúgio, um 'asilo' e um ponto de encontro de pobres" que construíram neste novo mundo uma vida em que a questão social, ou seja, os problemas gerados pela miséria não tinham mais lugar, já que a miséria simplesmente fora extinta, provocando uma mudança radical nas condições sociais do mundo moderno:

Se fosse verdade que nada mais estava em jogo nas revoluções da Idade Moderna do que a mudança radical das condições sociais, poder-se-ia então dizer que a descoberta da América e a colonização do novo continente constituíram suas origens ­ como se a adorável igualdade "que surgiria naturalmente, e como que organicamente, no Novo Mundo, só pudesse ser conseguida, no Velho Mundo, através da violência e da sangrenta revolução.16

Era, segundo Hannah Arendt, pode-se dizer, a própria concretização de sonhos utópicos realizados. Malgrado todos os enfrentamentos que Arendt encararia devido à sua postura simpática em relação à revolução burguesa norte-americana, em plena Guerra Fria e em pleno incentivo da CIA no sentido que o debate entre intelectuais americanos e europeus solapasse a simpatia aos soviéticos no Ocidente,17ela recuperava, na verdade, uma velha discussão do continente americano nos séculos XIX e XX sobre o sentido e as formas de governo. Muito impressionados por pensadores como Tocquevile, Hobbes, Locke e Rousseau, as lideranças dos movimentos de libertação das colônias americanas tinham em pauta a necessidade de debate sobre aquilo que acontecera no final do século XVIII na colônia inglesa ­ que se transformaria nos Estados Unidos ­, a fim de construírem um arcabouço de interpretação e um projeto para suas próprias realidades.

Também no Brasil se reiterava esse debate, acometido da discussão da forma e do sentido dos governos, não apenas porque declarara-se o País independente de Portugal, mas porque ele sofrera, ao longo do regime imperial, no transcorrer de quase todo o século XIX, dos impulsos em direção à institucionalização do regime republicano.

Assim, a longa, torturante, preconceituosa e esquisofrênica polêmica em torno do meio e da raça como os verdadeiros definidores do perfil cultural nacional brasileiro, e de comportamento nas esferas pública e privada tentava estabelecer, em verdade, os parâmetros sob os quais os aspectos de exercício de poder deveriam estar circunscritos e por onde poderia e deveria caminhar a nação. Ou seja, primeiro era preciso construir a nação, e este passo só poderia ser dado com as garantias do território e de um raça capaz de vencer os desafios do Novo, quer no sentido de um recomeço para uma civilização alijada da Europa, quer no sentido do novo como um Novo Mundo mesmo, como numa utopia. E não seria por um acaso a iniciativa de D. Pedro II, imperador do Brasil, amigo próximo e admirador de Gobineau,18 de apadrinhar o Instituto Histórico Geográfico do Brasil e incentivar pesquisas de fundamentação histórica, geográfica e antropológica que, em sua maior parte, buscavam o "sentido" da nacionalidade e da raça.19

Tidos como atrasados, porque enredados em seus problemas de ordem social, esta América Latina e este Brasil começaram, especialmente a partir do século XIX e especialmente nas proximidades do XX e daí em diante, a ser refletidos politicamente: estavam distantes daquilo que Arendt imputava como sendo o legado mais importante dos pais fundadores, ou founding fathers ­ os princípios de liberdade e a criação de esferas múltiplas para o exercício da cidadania e da preservação do direito à diferença. Esta restante América estaria, nos séculos XIX e XX, atolada e comprometida com o fazer revolucionário, ou melhor, com as lutas de libertação. A libertação que, segundo Arendt, visava à garantia dos direitos civis: da vida, do fim da penúria e do medo. Isto é, do estabelecimento apenas da condição para a liberdade e não da liberdade propriamente dita.

Reflexões intelectuais acerca do Brasil e da América eram abundantes entre homens envolvidos na vida pública. Elas se constituíam como sendo o direcionamento político que eles pretendiam encetar. Em praticamente todas estas discussões, apesar de seus matizes diferenciados, a problemática de raça e do meio se apresentava como fundante para o futuro do continente e de suas nações. Mas apresentava-se como fundante, a bem da verdade, porque mascarava o lugar em que a discussão da raça e do meio se justificava teoricamente: a crença em uma ciência infalível, sinônimo de verdade e produtora de saber incontestável, que impunha a causalidade da raça e do meio para justificar, em última análise, a exclusão social e política e os problemas de violência e miséria.

Se o sentido original do bom selvagem era o antídoto do homem europeu embrutecido, como queria Rousseau, quem poderia construir uma nova civilização no lugar que originariamente havia sido escolhido como ideário utópico ao pressupor-se, durante o séc. XIX e parte do XX, que caracteres raciais seriam determinantes da vontade? Partia-se da constatação de que esta América conturbada, estranha e exótica, transformara-se muito mais em purgatório do que em paraíso: lugar dos párias. Havia-se doravante de, definitivamente, soterrar a herança barroca ­ se é que ela existia em sua generalização mais superficial de representar a imposição ibérica do barroco, como contra-reforma, da fé contra a razão, da fé contra a ciência. Daí o entusiasmo em relação às idéias de Tocqueville. Havia-se igualmente de superar os impasses de estigmas de ordem científica generalizados por Buffon de que tanto a natureza animal quanto os homens americanos seriam inferiores diante do europeu.20

Tentar consertar um eixo de caminho para que esta realidade purgatorial fosse contornada fazia com que, recorrentemente, vários autores buscassem a estratégia romântica do retorno ao mito fundador da nação e da peculiaridade de sua formação. A implicação era óbvia: se em quase todos estes pensadores o mal de origem encontrava-se na própria história da colonização,21 somente uma ação consciente (do Estado ou da ciência) poderia reimprimir um direcionamento ao povo, na forma de seu comportamento, e à nação como um todo, na forma de sua administração. A recorrência ao mal de origem estava assim intimamente ligada à busca de elaboração de imagens identitárias que imprimissem sentido ao passado que se construíra como vistas a um projeto de futuro: uma espécie de naturalização da identidade pelo nascimento em dado território.22 Corrigir-se-ia, através da busca do entendimento do passado, a trajetória histórica que se desviara do sentido positivo de realização utópica.

Em vários autores com matizes diversos e até conflitantes, a percepção do sentido original dado pela criação, ou melhor, pela colonização, tornar-se-ia determinante. Num livro que foi recolhido pela polícia ao ser lançado em São Paulo em 1893, por exemplo, Eduardo Prado, simpatizante incansável do exotismo que representaria a forma republicana e "materialista" de governo para o Brasil, explicitava suas teses. Monarquista, Eduardo Prado era taxativo ao afirmar que teríamos muitas "razões para detestar essa Constituição exótica [a republicana], copiada de uma raça estranha [a norte-americana], sem raízes, nem antecedentes históricos entre nós (...) e que entrega a sorte dos Estados a tiranos locais, Castilhos e Barbosas Limas",23 seguidores de ditames materialistas positivistas. O argumento definitivo do autor era de que se os Estados Unidos estavam se constituindo como potência mundial era em virtude do fato de ser o país mais rico do mundo em recursos naturais e de ter "povoado um solo destes pela raça saxônica". Assim, não seria grande em razão de seu governo,24 mas da raça e do meio (grifos nossos), já que "o solo não se pode trocar, a raça não se pode substituir, mas, em todo o tempo, é possível mudar o governo".25 O jornalista usava ainda o desprezo dos americanos do norte contra a América Latina, reproduzindo o sarcasmo, para ele merecido, dos irmãos do norte:

No último número da Harper's Magazine, a grande revista americana, vem a relação de uma viagem feita por três americanos, através das repúblicas espanholas. Entre outras regiões, visitaram eles a colônia inglesa de Belise, na América Central, e a seu despeito escreveram: 'a única vez , nesta viagem, em que nos sentimos tão livres, como se andássemos em Nova Yorque, foi quando nos achamos debaixo da proteção da odiada monarquia inglesa, em Belise. Nunca vimos sinal de liberdade em nenhum dos desorganizados acampamentos militares, que, na América espanhola, têm a alcunha de repúblicas livres. O cidadão dessas terras está tão preparado para o a forma republicana, como para fazer uma expedição ao pólo norte.26

O exotismo a que se referia o monarquista partia de um princípio galgado na determinação do império da raça sobre o meio e no fato de que a própria noção de república estaria impregnada de exotismo, de imitação, uma vez que existiria uma vontade incontestável: da Europa é que partiriam sempre "a luz e o pão do espírito" ­ e por uma questão de colonização ­ Europa também incluiria Estados Unidos.27 Daí a naturalidade de se adotar a monarquia para o Novo Mundo já que, por definição, a escolha norte-americana é que seria estranha.

Aqui a questão do exótico toma seu real sentido: só poderia ter surgido do estranho, do original, fruto de uma raça e de um meio diferentes dos americanos do norte. Uma mistura sui generis que seria, antes de mais nada, a-histórica. Quanto ao determinismo biológico, resultante da simbiose de raças, de tão idiossincrático teria resultado nos arranjos de originalidade ­ ou cópia; pode-se dizer de cópia malfeita ou "fora do lugar" (imitação, segundo palavras de Prado) ­, que faziam com que a preocupação latente de olhar a América ou o Brasil fosse não a de encontrar a sua história, mas de pensar em sua evolução.

A presença agora de um Estado laico, que havia se tornado, com a Proclamação da República em 1889, independente da Igreja, revoltava Eduardo Prado.28 Não admitia a organização materialista do Estado e do governo, e refletia em seus escritos a tradição de formação ibérica em que se pensava ser a Igreja o corpo místico, enquanto o Estado, o corpo político e moral: ambos indissociáveis.29 No corpo político e moral, o peso da tradição, da raça, que dependendo de sua constituição poderia caminhar no sentido mais ou menos positivo de princípios organizadores do corpo político que, para o monarquista Prado, sem dúvida não poderia nunca ser republicano, uma vez que essa organização, quando sadia, não estaria baseada no "contrato", mas em princípios orgânicos de organização só acessíveis ao "desinteressado" regime monárquico e de acordo com a tradição ibérica. Dizia Prado:

O espírito americano é um espírito de violência; o espírito latino transmitido aos brasileiros, mais ou menos deturpado através dos séculos e dos amálgamas diversos do iberismo, é um espírito jurídico que vai, é verdade, à pulhice do bacharelismo, mas conserva sempre um certo respeito pela liberdade(...). O período de desbravamento da terra, da derrubada das matas, do estabelecimento das primeiras culturas, é, no interior e nas localidades novas, a idade do capanga; É a lei que substitui e violência. O espírito americano infundido nas populações, é antes favorável ao capanga do que à gente do fôro; é o estrangeiro, cujo prestígio é sempre grande, é o homem de cabelo louro e de olhos azuis sempre acatado pelos nossos negroides, influindo em favor da violência, notabilizando-a pela sua prepotência.30

Temia Prado que a República trocasse a tradição imperial baseada na lei e na serenidade política pelo aventurismo do conquistador do norte; do simbolismo da monarquia aglutinadora pelos embates políticos constantes do modelo político republicano.31

Embora o centro de discussão de Eduardo Prado e de outros intelectuais pudesse resultar na forma de organização de governo, sem que houvesse, a bem da verdade, preocupação maior em garantir a existência política do direito à liberdade ou à cidadania, como no caso da revolução norte-americana, o ponto-chave das análises ­ para que chegassem à origem do problema: raça e meio-partia sempre da constatação relativa às dificuldades de ordem social (pobreza e miséria), muito mais do que das dificuldades de ordem política (exercício do poder e possibilidade de impotência política). Fugia-se da definição sobre os princípios de liberdade e da criação de esferas múltiplas para o exercício da cidadania e para o convívio com a diferença. As explicações calcadas na raça e no meio tentavam, em verdade, dar, por vieses diversos (exotismo, desespero ou esperança, conforme a postura do autor), explicações para aquilo que estava tão visível no final do século XIX e início do XX: a miséria e a infelicidade da grande maioria da humanidade, em especial na América Latina. Eram explicações de cunho político para um espectro de ordem material: a felicidade como realização do indivíduo e não do cidadão. Se monarquia ou república o modelo constitucional a ser adotado, ele só era referência como forma mais ou menos própria de resolver as carências, não de garantir os princípios de liberdade e de isonomia. Não se pensava em homens livres, mas em homens pobres, miseráveis!32 Daí o enfoque dado ao papel do Estado e da ciência como fundamentais. A lei, portanto, a que se referia Prado, era antes de mais nada a garantia de preservação do Estado contra a violência de sua destruição. Aos moldes da tradição ibérica, como bem assinalaria Richard Morse mais de oitenta anos depois:

Como estava centrado no Estado, na estrutura herdada da comunidade política, o pensamento político da era barroca espanhola representava a liberdade não como uma circunferência de imunidade para o indivíduo, e sim como uma obediência 'voluntária' ou ativa ao poder constituído, noção vinculada à doutrina católica que definia o papel do livre-arbítrio na obtenção da graça.33

Momento agitado de embate político, especialmente no início do século XX, projetos nacionais diferentes expostos por uma infinidade de intelectuais engajados, portanto, tentaram responder de certa forma ao exotismo existencial da América Latina, e do Brasil em particular. Em outras palavras, precisava-se criar um Brasil moderno.

Se de um lado a nação era vista e revista como um conjunto em relação ao restante dos países de colonização espanhola, esta visão era indesejável para a maioria desses intelectuais políticos. A melhor maneira de negar esta visão seria encontrar um modelo político para a supressão da miséria. A razão deste sentido obstinado em relação à supressão da miséria estava assentada na percepção de que a existência da pobreza absoluta reforçava a noção construída pelo mundo ocidental de uma América obsoleta, atrasada, até porque a visibilidade de sua miséria erroneamente fazia crer que, com tais problemas, discutir questões de cunho verdadeiramente político ­ e que portanto iam muito além da problemática de supressão da miséria ­, seria um luxo inaceitável. Primeiro, precisava-se arrumar o povo, sua raça, e criar nele uma nova mentalida de. Liberdade, talvez, para o futuro. Segundo, porque a própria tradição ibérica é que estaria a definir o estado de pobreza autoritária: seria nosso legado genético.

Oswald de Andrade, um dos expoentes do modernismo brasileiro, à época já bebendo das águas do marxismo, respondia à questão de maneira esperançosa. Raça e meio permeavam sua análise:

Quando eu falo em contra-reforma, o que eu quero é criar uma oposição imediata e firme ao conceito árido e desumano trazido pela Reforma e que teve como área cultural particularmente a Inglaterra, a Alemanha e os Estados Unidos da América. Ao contrário, nós brasileiros, campeões da miscigenação tanto da raça como da cultura, somos a contra-reforma, mesmo sem Deus ou culto. Somos a Utopia realizada, bem ou mal em face do utilitarismo mercenário e mecânico do Norte. Somos a caravela que ancorou no paraíso ou na desgraça da selva, somos a bandeira estacada na fazenda. O que precisamos é nos identificar e consolidar nossos perdidos contornos psíquicos e históricos.34

Suas palavras centravam-se assim tanto na essência da Antropofagia modernista, qual seja, a de deglutir, comer, assimilar os paradigmas estrangeiros e vomitá-los de outra forma, através (como sugere Richad Morse ao endeusar quase que ingenuamente o capital político-cultural ibero-americano) da enorme e admirável capacidade de auto-renovação dos latino americanos, como na crença na questão racional, mas não de sua forma negativa como fator de inferioridade, mas deglutida antropofagicamente, de uma forma positiva, e por isso seríamos "a Utopia realizada, bem ou mal em face do utilitarismo mercenário e mecânico do Norte...". Daí que para Oswald, não só as utopias foram conseqüência do descobrimento da América, como a América era o lugar da utopia para o mundo ocidental. O ócio generalizado seria a recompensa pelas penas sofridas no mundo.

É interessante notar, a exemplo de muitos outros autores, que tanto Eduardo Prado como Oswald de Andrade, mesmo que compartilhando da questão da raça e do meio sob pontos de vista bastante diversos, possuíam um tom que não era negativista em absoluto. Para Prado, nosso problema residia no meio (pressuposto supostamente galgado na assertiva sobre a natureza tropical adversa tão fartamente explorada nos relatos dos naturalistas do século XIX) e na raça como constituinte do corpo político e moral pelo peso da tradição. Precisaríamos, portanto, recuperar o princípio orgânico sob o qual estariam organizados os ibéricos. Para Oswald, havíamos, por nossas características raciais diversas da dos saxões e de sua ética protestante, utilitarista, chegado ao prazer da preguiça estipulado como direito pela utopia do paraíso, e agora bastaria que nos identificássemos e consolidássemos "nossos perdidos contornos políticos e históricos".

Um outro autor brasileiro, Manoel Bomfim,35 que pertenceria a ordem diversa de escritores, alinhada a perspectivas mais pessimistas do que as de Oswald e Prado, apostava de forma diversa na utopia e na transformação da população para erguer uma América diferente, nova. Era este o seu sonho, um contraponto ao pesadelo. Seu livro, A América Latina, males de origem, havia sido idealizado partindo de princípios caros às ciências naturais. O ponto de partida da análise de Bomfim era o parasitismo.36 Assim como nos organismos vivos, o autor cria que na ordem social a América como um todo fora a vítima de uma colonização ibérica que ao ter como base que "Os homens pensavam nos milhões de almas a ganhar para Deus! Montanhas de ouro a trazer para casa!" fora vítima de uma espécie de efeito dominó de uma estrutura organizacional parasitária:

O Estado era parasita das colônias; a Igreja parasita direta das colônias, e parasita do Estado. Com a nobreza sucedia a mesma coisa: ou parasitava sobre o trabalho escravo, nas colônias, ou nas sinecuras e pensões. A burguesia parasitava nos monopólios, no tráfico dos negros, no comércio privilegiado.. A plebe parasitava nos adros das igrejas ou nos pátios dos fidalgos.37

Em sua análise, o abuso das metáforas biológicas era recorrente. Mas um dos pontos centrais de seus argumentos residia no contraponto que estabelecera com as correntes conservadoras do evolucionismo biológico, em particular com Gustave Le Bon, que justificava a intervenção e a conquista sobre a América Latina partindo do suposto de que a supremacia de raças européias superiores poderia resolver o caos americano e o exotismo presente no constante afã revolucionário das repúblicas sul americanas. Bomfim contra-atacava, dizendo que os países latino-americanos haviam herdado um Estado que "existe para fazer o mal". Ele era "o inimigo, o opressor e o espoliador; a ele não se liga nenhuma idéia de bem ou de útil; só inspira ódio e desconfiança",38 ao contrário dos Estados Unidos, onde existia

[...] um regime político espontâneo, inspirado pelas necessidades próprias das sociedades nascentes; não era sequer um regime fictício, artificial, mas lógico, estável, garantidor e progressista, ao qual as nacionalidades em embrião se pudessem moldar com o tempo.39

Raça e meio, por conseguinte, não seriam determinantes, porque uma raça, para Bomfim, não era superior a outra. Mas a história seria o determinante, na medida em que entre as espécies animais só o homem aprisionava para fazer com que um semelhante trabalhasse pelo outro.40 Evoluir significava, então, libertar-se de jugos, pois que a nacionalidade fosse "produto de uma evolução (...) resultante de ação do seu passado, combinada à ação do meio".41

A degradação moral de um país ou de um continente ­ como tentava responder Manoel Bomfim aos intelectuais europeus que estavam a denegrir a América Latina como lugar de gente inferior ­, gerara-se na conseqüente ausência de educação das populações de descendência ibérica,42 que aceitava os jugos. Uma ausência que atestava a degeneração das populações que, revoltadas, estavam sempre a lutar em forma de levante pela libertação, embora não soubessem ainda guiar-se em direção à verdadeira liberdade democrática, seja internamente, seja contra o aprisionamento das nações imperialistas, européias ou americana do norte.43

Bomfim identificava, já em 1903, aspectos característicos da população brasileira que posteriormente seriam retrabalhados por outros intelectuais, Hannah Arendt inclusive, que certamente nunca tomou conhecimento do brasileiro. Em primeiro lugar, como Arendt, acreditava que fora a descoberta do Novo Mundo que suscitara a possibilidade do surgimento das utopias, dentre elas a da liberdade. Ou seja, de pensar que coisas novas entre o reino dos homens seriam possíveis de se construir. Quanto a Bomfim, no que concerne aos Estados Unidos, dizia que a América Latina não poderia ter tido a mesma "evolução":

É que as colônias inglesas puderam organizar-se desde logo segundo convinha aos seus próprios interesses, e não foram vítimas de uma parasitismo integral, como este que as metrópoles ibéricas estabeleceram para suas colônias.44

E identificava uma tristeza latente entre os povos latino-americanos, uma caracterização que seria tão cara ­ embora não original, como querem fazer crer alguns ­ das análises que Paulo Prado construiria alguns anos mais tarde, entre 1926-28, em seu Retrato do Brasil: ensaio sobre a pobreza brasileira,45 em que a cobiça e a lascívia46desenharam a herança do País, muito menos como mal de origem, mas para explicar a tristeza do povo brasileiro47 e a necessidade de se criar um homem novo. Um tipo próximo a uma nova raça, porque havíamos todos ao longo da história do País sofrido de degeneração.

Esta tristeza era compensada, nas análises de Bomfim, pela "sociabilidade natural, instintiva" do homem que vive à margem ­ nos sertões ­ do sistema exploratório:

Quem viajou o interior das terras brasileiras, por exemplo, notou, por força a cordialidade, a paz relativa em que vivem essas populações ­ arraiais, povoados, restos de aldeamentos, onde se acumulam os casebres de sapê, onde vivem como formigas ­ formigas que não trabalham48 ­ os produtos da mistura de negros, índios, resíduos de colonos, etc. [...] essa tendência à sociabilidade, esse altruísmo, é uma boa qualidade, um elemento favorável ao progresso moral. 49

O autor introduz aqui a construção do homem cordial, depois explorada por Sérgio Buarque de Holanda, tendo como elemento fundante justamente a mestiçagem acontecida no Brasil, que provaria não haver degradação racial no sentido dado à degenerescência dos que não fossem arianos, como queria crer Agassiz, por exemplo.50 Introduz também aqui a explicação para o matuto que não trabalha, e que anos mais tarde tornar-se-ia o Jeca de Monteiro Lobato.51 O exotismo da mestiçagem ­ atribuído por europeus ­ era então recuperado no sentido de que ele proporcionava não um fator negativo, mas um instrumento positivo de construção de uma sociedade utópica:

América feliz, na clemência de seu clima, no esplendor deste céu, inteligente, laboriosa e pacífica na comunhão social, meiga e fraternal na expansão natural da instintiva cordialidade, apartada dos egoismos ferozes que aviltam outras civilizações.52

Se o exotismo latino era desculpa para o ataque, para o estranhamento, ele era recuperado por Bomfim no sentido de construir através da educação uma sociedade livre e democrática, porquanto reunia justamente três raças que possuíam características tais que faziam possível ­ como podia ser constatado longe da presença do meio em que se reproduziam as relações parasitárias ­ que se produzisse este homem cordial. Toda a sua análise tinha como pressuposto que o essencial era saber o valor absoluto de cada uma das raças e se elas seriam ou não passíveis de serem civilizadas. A aposta era a de que todas as raças poderiam progredir se devidamente educadas pelo trabalho, pela ciência e pela igualdade. Mais ainda, que mesmo não tendo a hulha, apontada por Bomfim como riqueza fundamental para a aplicação dos conhecimentos científicos na industrialização, este conhecimento das características positivas de todas as raças, com uma futura intervenção em sua psicologia, era passível de apontar na direção da construção um novo homem (assunto, aliás, caríssimo tanto aos modernistas quanto aos governo totalitários do séc. XX). Assim, localizar e diagnosticar o exótico ­ o ser diferente do europeu porque em um outro meio físico e porque com características biológicas que se pressupunha fossem diferentes ­ era procurar uma forma de atingir o igual. É claro, para retrabalhar o exotismo em um sentido que pudesse vir a ser positivo. Este sentido positivo teria na solidariedade uma característica importante, porque dos ibéricos teríamos herdado, a par do parasitismo, a hombridade patriótica, intransigente, irredutível, heróica, resistente. Além disso, e talvez o mais importante, um extraordinário poder de assimilação social, resultante de uma grande plasticidade intelectual e de uma sociabilidade desenvolvidíssima.

Dos negros e índios, raças primitivíssimas para Bomfim, recebemos, pelos primarismos das duas raças, qualidades negativas: inconsistência de caráter, leviandade, imprevidência, indiferença pelo passado e, por isso mesmo, a grande adaptabilidade de ambos a qualquer condição de vida.53 Os negros, é bem verdade, teriam nos dado uma certa "afetividade passiva, uma dedicação morna, doce e instintiva, sem ruídos e sem expansões", que acompanham seus clássicos defeitos: "submissão incondicional, frouxidão de vontade, docilidade servil.54 O índio positivamente nos dava "um amor violento à liberdade, uma coragem física verdadeiramente notável e uma grande instabilidade intelectual (...), até mesmo uma instabilidade de espírito", acompanhadas de desinteresse e indolência. 55

Bomfim antecipava-se assim à criação intelectual do desejo por uma utopia calcada na transformação do homem ­ e não das esferas de poder ­ advinda das peculiaridades raciais e da aposta nas transformações educativas.56 Era um Gilberto Freire em antecipação, no sentido de que esta peculiaridade racial diferenciada fundava uma original cultura luso-brasileira, embora Freire fizesse a ressalva de que toda esta cultura se forjava em torno da família patriarcal e escravocrata e não do Estado, Igreja ou indivíduo.57 A discussão política que permearia América Latina, males de origem de Bomfim não seria, portanto, a desilusão em relação à República que sonhara e que não via realizar-se naquele início de século, como quer crer a historiografia, mas de uma proposta política que não privilegia o exercício de poder propriamente dito, mas a forma de governo como estrutura capaz de diagnosticar (ciência) e meio capaz de agir (ação educativa). As almas rudes poderiam, assim, transformar-se em algo original.58 Não pela negação, como pressupunha o "exótico", mas pela aprovação em função da miscigenação positiva e da solidariedade que ela engendraria através deste "Jeca" modificado, educado.

Neste sentido, igualmente Monteiro Lobato, ao escrever em 1931 um de seus livros de grande sucesso editorial, América,59 não se limitaria em diagnosticar a ausência de um Estado demiurgo capaz de soterrar a miséria. Lobato preconizava que o motor do desenvolvimento ­ e aqui sempre desenvolvimento é igual à supressão da miséria ­ era a economia. Somente a riqueza produzida por um conjunto de fatores comandados pela ciência poderia ser a resposta para os males da América Latina, e fundamentalmente do Brasil. O conjunto desses fatores era:

1 ­ o clima, já que cientificamente seria incontestável que a natureza tropical, por definição, seria sempre indomável ­ porquanto um meio difícil, quanto mais pela ausência da estação climática que impulsionaria os homens ao trabalho, ou seja, o inverno;
2 ­ o solo, maltratado pelas queimadas e pela intervenção danosa do homem ignorante, de falta de máquinas e de conhecimento técnico e científico;
3 ­ A saúde, porque este homem tropical havia se transformado no Jeca: pobre, doente e ignorante;
4 ­ a máquina, a grande aliada do homem para a introdução do trabalho organizado;
5 ­ o petróleo, fonte de energia fundamental para o acesso ao desenvolvimento moderno.

Como em Eduardo Prado, para Lobato a paisagem tropical era também um problema. Carecíamos de símbolos de aglutinação nacional e representávamos, por nossa inadaptabilidade aos novos tempos, o atraso. Estávamos longe das máquinas. Construíramos, em nossa evolução, o Jeca, a nossa síntese, o doente e ignorante. Agora, necessitávamos criar nossa identidade em outras bases. Tudo deveria começar pelo desenvolvimento, ou pelo desenvolvimentismo, tão ao gosto dos anos que se seguiriam, especialmente as décadas de 1940, 50 e 60.

Novamente partia-se da aceitação de uma situação de atraso para montar estratégias de modernidade. Liberdade como princípio e criação de esferas múltiplas para o exercício da cidadania e da preservação do direito à diferença estavam longe do sentido da modernidade. Raça e meio, ditava a ciência infalível que estes intelectuais preconizavam ad nauseum, construíram as mentalidades deste mundo não simbiótico, periférico; ou, como querem alguns, deste terceiro mundo.

De certa forma, o conjunto dessas posições tão intensamente presentes em autores como Eduardo Prado, Manoel Bomfim, Oswald de Andrade e tantos outros intelectuais encontra-se corroborada nas principais teses do livro de Richard Morse, O Espelho do próspero, que produziu forte impacto entre a intelectualidade latino-americana nos anos de 1980. Embora o trabalho do pensador norte-americano tente ser uma espécie de homenagem e aposta otimista na América Ibérica como contraponto à anglo-saxã, por postular que entre os decentes das tradições de organização ibérica poderia estar a resposta ao fracionamento imbecilizante do homem contemporâneo, envenenado pelos princípios de Lock e Hobbes do individualismo e da razão, numa retomada das principais teses de Adorno e Horkheimer, principalmente quando se deixam chocar pelos Estados Unidos, não deixa de ser revelador que o historiador americano trate tudo aquilo que chama de América Ibérica como um bloco político-cultural praticamente monolítico ou quase nada diverso. Transpiram em seu texto, constantemente, construções imagéticas que impulsionam em direção ao exótico e que reforçam, em última instância, a América como o lugar da exclusão: pesadelo, muito mais do que sonho, porque, afinal de contas, atrasado ou terceiro mundista, embora ressalve o autor, não fora de lugar, mas um outro lugar em que uma noção diversa de pertença e de Estado seriam talvez capazes de realizar a promessa de felicidade, quem sabe, diríamos nós, de utopia.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-90742004000200007&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

Revista Historia - UNESP

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