quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Sabina era a tal

Mulata Sentada, s/d
Fernando P. ( Brasil 1917)
Óleo sobre tela 20 x 24 cm


Sabina era a tal
Sem querer, uma humilde vendedora de laranjas inspirou passeata, virou tema de música e inaugurou as figuras da “mulata” e da “baiana” nas artes nacionais.
Tiago de Melo Gomes

Sem banana macaco se arranja
E bem passa monarca sem canja
Mas estudante de medicina
Nunca pode passar sem as laranjas
As laranjas, as laranjas da Sabina

Este refrão foi um dos maiores sucessos musicais do país na passagem do Império para a República. O caso que ele narra deu início a uma história surpreendente: como Sabina, uma negra idosa e humilde, tornou-se o primeiro modelo da “mulata sensual” brasileira.

Na manhã de 25 de julho de 1889, um grupo de estudantes da Imperial Escola de Medicina uniu-se em uma inesperada passeata pelas ruas do centro do Rio de Janeiro. O motivo: Sabina, uma baiana vendedora de laranjas, havia sido proibida de armar seu tabuleiro em frente à faculdade, na Rua da Misericórdia. A decisão de expulsá-la, anunciada pelo subdelegado da área, provocou imediata reação dos alunos. Por onde passava, o cortejo ganhava mais adeptos e recebia aplausos de uma multidão entusiasmada. Bem-humorados, os estudantes carregavam uma coroa feita de bananas e chuchus e uma faixa criticando a autoridade, a quem chamaram de “O eliminador das laranjas”. Passaram também pelas redações dos principais jornais da cidade denunciando a arbitrariedade, o que renderia grande repercussão para o caso.

“Um viva aos rapazes, que acabam de escrever a melhor cena das próximas futuras revistas de ano”, publicava a Gazeta de Notícias três dias depois. O jornal estava sendo profético. As “revistas de ano” eram peças teatrais cômicas e musicadas, nas quais desfilavam os eventos tidos como mais importantes do ano anterior. Daí sua denominação: era o momento de passar um ano inteiro em revista. Em 1890, os irmãos escritores Artur e Aluízio Azevedo encenaram sua revista de ano, A República, e Sabina foi uma das personagens mais comentadas. Noite após noite, os cariocas corriam até o Teatro Variedades Dramáticas só para ouvir a canção “As laranjas da Sabina”.

Sabina era interpretada por uma bela atriz grega, Ana Menarezzi, bem diferente da idosa rechonchuda retratada pela imprensa. Certamente os diretores não queriam desagradar ao público, que gostava de ver belos corpos nos palcos. Além disso, em tempos de racismo exacerbado, quase não existiam atores profissionais com o perfil da vendedora ambulante. Ainda assim, A República marca a aparição da primeira “mulata” no teatro brasileiro. Estava inaugurado um dos tipos mais recorrentes do humor nacional: a mulata sexualmente atraente. Na letra da canção, esta qualidade é insinuada:

Os rapazes arranjaram
Uma grande passeata
Deste modo provaram
Quanto gostam da mulata, ai

Estimulada pelo enorme sucesso da aparição da agora “mulata” Sabina, a companhia portuguesa Sousa Bastos, em excursão pelo Brasil em 1892, resolveu incluir um novo número em sua popular peça “Tintim por Tintim”. No quadro denominado “Munguzá”, a espanhola Pepa Ruiz, estrela da companhia, levava a platéia ao delírio ao se caracterizar como baiana vendedora de rua e cantar um lundu. O nome de Sabina não era mencionado na peça, mas a inspiração do quadro era óbvia.

“As laranjas da Sabina” foi uma das primeiras gravações musicais feitas no Brasil, em 1902, interpretada pelo lendário cantor Bahiano (Manoel Pedro dos Santos). Nas décadas seguintes, as figuras da baiana e da mulata se tornaram cada vez mais populares nas peças de teatro musicado e nos programas de rádio. Também desembarcaram na maior de nossas festas populares, o carnaval. Os anos passavam, mas quem disse que Sabina era esquecida? No início do século XX, as agremiações carnavalescas mantinham grupos formados por homens que, nos dias de folia, saíam às ruas fantasiados de baianas e mulatas. Numa homenagem à velha quitandeira da porta da Escola de Medicina, eles eram chamados, no grupo Kananga do Japão, de “Sabinas da Kananga”. Na sociedade dos Fenianos, eram conhecidos simplesmente como “Sabinas”.

Em 1915, títulos do Tesouro nacional lançados no mercado não puderam ser honrados por causa do déficit nas contas federais, o que gerou grande descrédito para o governo de Wenceslau Brás. No meio da crise, o ministro da Fazenda, Sabino Barroso, (tio de Ary Barroso) tornou-se o centro das atenções. Seu nome serviu de mote para o autor teatral J. Brito, que relembrou a “mulata” pioneira em sua peça “A Sabina”. Nela, as letras do Tesouro eram denominadas “Sabinas”, em referência ao ministro, e associadas à popular vendedora, personificada na estrela Maria Lino – uma italiana, a terceira estrangeira a representar a lendária vendedora ambulante. Brito usava o recurso de satirizar um tema da atualidade associando-o a uma personagem que ainda estava na memória de todos.

Mas não era só humor que a baiana inspirava. Em 1923, um artigo de A Notícia, ao falar sobre o novo status do trabalho e compará-lo com os tempos da escravidão, lembrou o ato de desagravo que os estudantes de Medicina prestaram à “preta velha” – “trazendo-a de passeata e mais ao seu tabuleiro, entre vivas e brados, pelas ruas da cidade. Foi quando surgiu aquela canção, cujo estribilho muita gente trauteia [cantarola], sem conhecer-lhe a origem”. O autor queria mostrar como aquele tipo de trabalho, antes considerado “coisa de pretos”, agora era algo aceito com naturalidade por indivíduos de todas as classes sociais. Nossa heroína foi escolhida por ele para personificar os séculos de trabalho escravo, mais de trinta anos após a passeata e a peça dos irmãos Azevedo.

Como explicar tamanha força simbólica, capaz de manter viva a memória daquele evento depois de tanto tempo? Os jornais publicados logo após a passeata foram unânimes em destacar o caráter cômico e pacífico da manifestação. A maioria recorreu à palavra “préstito” para defini-la – um jargão típico do vocabulário carnavalesco do período. Segundo a Gazeta da Tarde, tudo ocorreu “na melhor ordem possível, e sem ocorrência alguma desagradável”, e nas palavras da Gazeta de Notícias, a passeata foi “genuinamente acadêmica, alegre, barulhenta e inofensiva”. O Jornal do Commercio concordava, observando que “não houve da parte dos que a promoveram e levaram a efeito intuito de desprestígio a ninguém, nem de desobedecer a nenhuma autoridade”. O que era apenas uma meia verdade, pois os estudantes questionaram abertamente uma autoridade, e quando o subdelegado Jacome Lazary teve sua ordem revogada – o que restituiu a Sabina o direito de manter seu tabuleiro –, tornou-se alvo de chacota.

Muito tempo depois, um relato escrito pelo jornalista Ferreira da Rosa voltou a descrever o episódio, mas desta vez com uma novidade: ele apresentava a passeata como um comício republicano. É uma pista bastante sugestiva, pois em 1889 os ânimos ainda estavam exaltados pelos violentos confrontos entre monarquistas e republicanos ocorridos no ano anterior. Esse relato permite levantar outra hipótese para entender o protesto: a injustiça sofrida por Sabina teria sido usada como um pretexto pelos estudantes para armar um evento de cunho republicano, sem que seu conteúdo político ficasse muito explícito. Aproveitando-se de seu alto status social, esses jovens brancos filhos da elite brasileira se apresentaram como defensores dos mais pobres e humildes sem serem importunados pela polícia ou pelos monarquistas mais exaltados. Aparentemente, tratava-se apenas de defender uma vítima inocente da arbitrariedade policial.

Não se conhecem outros dados que confirmem o caráter político da manifestação. Ainda assim, o caso, sem dúvida, foi emblemático: em uma sociedade onde a cor escura da pele era automaticamente uma desvantagem, jovens de elite saem em defesa do direito de uma descendente de escravos de manter um minúsculo comércio nas ruas da Corte imperial meses antes da mudança de regime. Mesmo sem querer, Sabina tornou-se símbolo de uma era que chegava ao fim, e inspirou novas imagens na sociedade que começava a emergir dali.

A “mulata” e a “baiana” foram a porta de entrada dos afro-brasileiros no mundo do entretenimento, onde ganhariam grande visibilidade a partir de então. A transição não foi rápida nem simples – basta lembrar que esses personagens serviram antes ao apelo cômico e erótico, e para subir aos palcos dependeram, por um bom tempo, de atrizes européias. Mas se o racismo persistia, passou a ser temperado por visões mais condescendentes: a progressiva presença nas artes simbolizava uma possibilidade de ascensão social para os afro-descendentes. As laranjas de Sabina fizeram história.


Tiago de Melo Gomes é professor de História do Centro Universitário do Leste de Minas Gerais e autor de Um Espelho no Palco: identidades sociais e massificação da cultura no teatro de revista dos anos 1920 (Ed. Unicamp, 2004).

Saiba Mais - Bibliografia:

CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. 3ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
SKIDMORE, Thomas. Preto no Branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.
VENEZIANO, Neyde. O Teatro de Revista no Brasil: dramaturgia e convenções. Campinas: Pontes-Ed. Unicamp, 1991.

Saiba Mais - Site:

Ouça uma gravação de 1904 de “As laranjas da Sabina” no site http://www.franklinmartins.com.br (digite “Sabina” na busca).

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

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