terça-feira, 29 de setembro de 2009

Protagonistas e “bestializados”

Em busca permanente de liberdade, aos trancos e barrancos, a república brasileira faz 120 anos
CECÍLIA PRADA

Marianne, símbolo do povo e da república
/ "A Liberdade Guiando o Povo",
de Delacroix / Reprodução



Comemoramos em 2009 os 120 anos, vetustos e empoeirados, daquela bela moça alegórica que veio rondando as brasílicas plagas desde o final do século 18 – a emblemática Marianne da Revolução Francesa –, para ser entre nós entronizada solenemente cem anos depois, no dia 15 de novembro de 1889: a República. Moça nascida desencarnada, ideia pura, batizada Politeia na cabeça de um sábio grego do século 4 a.C., como uma utópica e democrática sociedade governada por sábios, onde todos gozariam de direitos cívicos e bem-estar. Isto é, quase todos – pois excluídos das benesses sociais continuariam a ser pelo menos os escravos, as mulheres, os metecos (estrangeiros). Ideia nascida meio capenga, portanto. Mas seu idealizador, Platão, antecipava já a Realpolitik quando dizia coisas como esta: "A democracia se estabelece quando os pobres, tendo vencido seus inimigos, massacram alguns, banem os outros e partilham igualmente com os restantes o governo e as magistraturas".

Na corrida dos séculos sucessivos, o termo foi tomado de forma abusiva e paradoxal tanto por teóricos do absolutismo como por praticantes de sangrentas ditaduras – haja vista a de Oliver Cromwell, na Inglaterra do século 17. Definida em geral em oposição à forma de governo monárquica, foi a designação "república" no entanto aplicada sem constrangimento, desde a Antiguidade, a Esparta, que tinha senadores vitalícios, e a Roma, no tempo dos reis. E no século 18 foi usada pelo iluminista Montesquieu para referir-se à Inglaterra, onde "o rei reina mas não governa".

Na Revolução Francesa, popularizou-se a alegoria da Marianne como símbolo do povo e da república – a moça do barrete frígio, moda herdada dos escravos libertos da Grécia e de Roma e, no século 19, dos marinheiros e revolucionários do Mediterrâneo. Acessório emblemático, mas que com o passar do tempo e em lugares diversos chegou a assumir franca identificação com diadema ou mesmo coroa. Quem diria, a República coroada. Ora esbelta meninota de saia curta e olhar sonhador, ora sensual matrona e mãezona – como retratada, seios à mostra e empunhando o pendão tricolor, no famoso quadro de 1830 de Delacroix, A Liberdade Guiando o Povo.

No Brasil, desde 1860 a moça de alma grega e corpo francês foi usada e abusada na iconografia e na imprensa – principalmente nos numerosos jornais e revistas de sátira e humor da Corte, na campanha republicana. Quer como emblema glorioso do progresso e da liberdade, quer como pretexto para caricaturistas famosos – Ângelo Agostini, Luigi Borgomainerio, Henrique Fleiuss, Bordalo Pinheiro e outros.

Proclamada a República, deram logo outra função à viajada senhora: teria de abrir asas sobre nós e, nas lutas e tempestades, fazer-nos sempre ouvir sua voz. Mas em seu retrato oficial, feito em 1896, em Roma, pelo pintor baiano Manuel Lopes Rodrigues, a Marianne da vez, a moça instalada em um trono e coroada ao que parece de folhas de cafeeiro, não convence. O pintor oficial da monarquia limitou-se a pegar qualquer modelo em Roma – onde o quadro foi pintado –, enfeitar-lhe a cabeça com umas folhas que parecem de cafeeiro, sentá-la em trono dourado e fazê-la ficar olhando para nós com olhar mortiço e entediado. Melhor ideia teve Joaquim Murtinho, ministro da Fazenda do governo de Campos Salles: precisando de modelo para a figura da República nas cédulas nacionais, resolveu reproduzir retrato de sua ilustre amante, uma grande socialite da época, Laurinda Santos Lobo.

Entre idealismos e jocosidades, além de episódios históricos sangrentos – revoluções e ditaduras –, prosseguiram também, nestes 120 anos, as idas e vindas ideológicas e interpretativas de nossos historiadores, ainda hoje não de todo em acordo sobre as razões e os procedimentos que marcaram o período de transição entre o regime monárquico e a república.

O país acorda republicano

Aristides Lobo, escrevendo no "Diário Popular" de São Paulo três dias após a Proclamação da República, cunhou frase que ainda hoje é Leitmotiv de todos os historiadores que se ocupam do período. Descrevendo os eventos do dia 15, no Rio de Janeiro, disse: "O povo assistiu àquilo bestializado". Outro comentarista da época, Medeiros e Albuquerque, autor da letra do Hino à Proclamação da República, completa o quadro da alienação popular: "O regime [monárquico] não teve por si nem um gato pingado". E naquele tempo, como agora, o selo do "deu no ‘New York Times’" parecia valer, pois o correspondente do jornal comentava no dia 16 de dezembro de 1889 a falta de empolgação com o evento histórico: "...não houve demonstração de esfuziante alegria. O povo, como de hábito, mostrava-se um tanto constrangido, parecia e agia de uma forma apática e aturdida".

O golpe militar pegou a quase todos de surpresa. Mas a ideia de que o princípio republicano não encontrava respaldo na população vem já há bastante tempo sendo desmentida pela nossa historiografia. Obra das mais interessantes sobre esse tema é a tese de Maria Tereza Chaves de Mello, A República Consentida, de que nos ocupamos já extensamente na edição 383 desta revista. Reunindo um vasto material iconográfico e documental, a autora afirma que a República, embora não contasse com a participação direta do povo, não se construíra sobre um vazio – sua aceitação por uma grande maioria significava que "a desafeição ao regime havia prevalecido sobre um sentimento popular de grande afeição ao monarca".

A verdade é que a nação acordou um dia espantada e republicana – do bom e displicente imperador Pedro II (que não sem razão fora apelidado de Pedro Banana nos últimos anos) aos próprios republicanos mais exaltados, o inesperado gesto militar do dia 15 de novembro surpreendeu e deixou mesmo momentaneamente "bestializados" a todos. Dizem que, informado do que ocorrera, o monarca convocou o Gabinete de Ministros para tratar da nova situação, mas foi adiando a reunião pelo resto do dia. E passaria toda a manhã do dia seguinte (16) entregue à sua paixão, as leituras científicas. Realmente não fez nada para se manter no trono, e aceitou – ao que parece aliviado – o embarque forçado para o exílio europeu, com a família. Teria ele próprio, talvez, a convicção de que a existência do Império do Brasil entre o total de repúblicas sul-americanas que o rodeavam fora uma "aberração" política?

A ideia da república rondava já os inconfidentes mineiros, como sabemos. Os vários levantes do século 19 atestam a existência da chama republicana na nacionalidade em formação: a Confederação do Equador, as revoltas Praieira e Baiana, o fuzilamento de frei Caneca, a Revolução Farroupilha do Rio Grande do Sul, com a proclamação da República de Piratini. Segundo os historiadores mais tradicionalistas, o sentimento republicano foi crescendo durante todo o Segundo Reinado principalmente por três motivos: a centralização do poder, que estabelecia o predomínio da Corte sobre as demais províncias; o absolutismo implícito no governo de Pedro II pelo exercício de seu Poder Moderador (o da "última palavra" incontestável e de valor decisório), e o agravamento de crises múltiplas nos diversos setores econômicos e sociais que constituíam a sociedade brasileira.

Esse último item foi desdobrado em três questões: a religiosa, a abolicionista e a militar. Esta última acabou representando mais do que as outras, dado o poder inerente de intervenção direta que somente as Forças Armadas possuem. A "surpresa" dos outros setores sociais pela proclamação do 15 de novembro deve-se a uma súbita impaciência do Clube Militar com o conservador ministério Ouro Preto, eleito a 7 de junho de 1889, que insistia em relegar a segundo plano os problemas econômicos e sociais da nação e a considerar os militares como uma "classe à parte", e como tal excluída do processo político. Nos primeiros anos do novo regime, os monarquistas, juntando-se a muitos republicanos "arrependidos", reforçaram a versão que acabou por se impor aos historiadores do período, durante bastante tempo: a de que o 15 de novembro não passara de um golpe militar, "alheio à vontade do povo", uma conspiração de caserna. E mais: teria sido apenas fruto da indisciplina da classe militar, com o apoio de uma parte dos fazendeiros que se sentiam lesados com a abolição dos escravos.

Na década seguinte, a instabilidade do Governo Provisório, a renúncia do marechal Deodoro em 1891 e principalmente a feroz ditadura mantida pelo seu sucessor, o "Marechal de Ferro" Floriano Peixoto, não somente retardaram a entrega da chefia do país a um civil como marcaram a história da República com a presença, aberta ou velada, dos militares – que se prolongaria pelas décadas sucessivas, como sabemos. Bem antes da Proclamação da República, Floriano alimentava o sonho de implantar uma ditadura militar. É muito conhecida uma carta sua de 1887 ao general Neiva, em que dizia: "Como liberal que sou não posso querer para o meu país o governo da espada, mas não há quem desconheça, aí estão os exemplos, que é ele que sabe purificar o sangue do corpo social que, como o nosso, está corrompido". O poder somente seria entregue a um civil, Prudente de Moraes, em 1894, mas mesmo assim o clima de instabilidade política continuou – chegando mesmo ao episódio do atentado à vida do presidente, em 1897.

Contudo, ver a proclamação como apenas um "golpe militar" é minimizar o que realmente representou o exército nesse evento. No livro A Formação das Almas – o Imaginário da República no Brasil, José Murilo de Carvalho, analisando o ideário republicano, distingue três tendências: a militar, a sociocrática e a liberal. A república militar teve um aspecto castrense inegável, expressava a raiva dos velhos marechais – Deodoro e Floriano à frente – pelo desprezo dos "cartolas" (civis). A sociocrática, que representava o sumo do pensamento e da utopia positivista, desenvolvia-se principalmente nos setores militares mais cultos, nas academias caracterizadas pelo forte cabedal de conhecimentos técnicos e científicos e onde se abrigavam pensadores como Benjamin Constant Botelho de Magalhães, segundo o qual, diz José Murilo, "o exército era visto antes como um instrumento do que como o fim da ação" – persistindo porém o sonho de fundarem uma "ditadura republicana" que, dando vitaliciedade e poder sucessório ao chefe do governo, teria por fim "promover a república social, isto é, garantir todas as liberdades espirituais e a incorporação do proletariado à sociedade, mediante a eliminação dos privilégios da burguesia".

Essa corrente se opunha ao projeto de uma república liberal, elaborado pelos republicanos ditos "históricos", principalmente paulistas, e representados por um civil, Quintino Bocaiuva, autor principal do Manifesto Republicano de 1870. Essa ala, "burguesa", tinha como modelo de sua república a que fora instaurada em 1776 nos Estados Unidos.

Acima de todas as divisões políticas e de todas as ideologias invocadas, pairava como mito supremo a Revolução Francesa de 1789 – a presença inequívoca da emblemática Marianne. A Marselhesa era peça obrigatória, cantada em todos os tons pelos entusiastas da ideia republicana, em reuniões, conferências, até nas casas de família. Um sentimento jacobinista extremado perpassava o ar – com o lema da "Igualdade, Liberdade, Fraternidade" e até mesmo com o hábito, que se quis introduzir, de chamar os revolucionários de "cidadãos". Um dos republicanos mais exaltados, Antônio da Silva Jardim, chegava a propor até o fuzilamento do odiado príncipe consorte, o conde d’Eu. E engrossava a propaganda republicana a ideia de que a mudança do regime devia se processar em 1889, quando se comemorava um século da Queda da Bastilha (o que acabou por acontecer).

A nova orientação da historiografia, advinda com a francesa Escola dos Annales em meados do século 20, e mais tarde o revisionismo marxista inaugurado em 1933 com o livro Evolução Política do Brasil, de Caio Prado Junior, causaram uma mudança de padrões e de avaliação, combatendo mitos simplificadores, como o de que fora o poder pessoal do imperador, exercido arbitrariamente, a principal causa do advento da República. Caio Prado dizia que a política do imperador fora apenas "o reflexo das forças que atuavam no seio da sociedade" e que a principal razão da queda da monarquia "foi a inadequação das instituições imperiais ao progresso do país".

Por infelicidade, estruturalmente não houve quase mudança alguma, na passagem de um regime a outro – os "barões do café" perderam certamente seus títulos, mas, mantendo-se na mesma pele ou transmigrando para um perfil industrial, mais adequado ao século 20, continuaram a governar o país. Isso motivou arrependimento e desilusão nos republicanos, sentimento condensado na frase do jornalista e senador Saldanha Marinho: "Esta não é a república dos meus sonhos".

E a república que hoje temos, o que é?

Nossa herança

A verdade é que entre sonhos, desilusões, violências, desordens e pesadelos, os primeiros anos da República marcaram o amadurecimento da ideia de nação – a consolidação de uma identidade nacional, em vão tentada desde a Independência, seria a tarefa da geração intelectual da Primeira República. Como diz ainda José Murilo de Carvalho, alguns elementos de identidade nacional, como a unidade da língua, da religião e mesmo política, não eram suficientes para unir, no país de dimensões continentais, a nacionalidade em um sentimento coletivo de "pertença". Alberto Sales, irmão do presidente Campos Sales e considerado o líder intelectual dos republicanos liberais, publicou em 1901 um virulento ataque ao novo regime, que considerava "mais despótico e corrupto do que o governo monárquico". O que, já na segunda década do século, seria expresso por Alberto Torres nestes termos: "Este Estado não é uma nacionalidade; este país não é uma sociedade; esta gente não é um povo. Nossos homens não são cidadãos".

Se a república proclamada por Deodoro deveria ser "a salvação do exército", e a sonhada pelos positivistas "a salvação da pátria", como poderemos definir a nossa república de hoje, a veneranda e dilapidada senhora que se sobrepõe à sonhadora figura daquela Marianne revolucionária? Temos por certo uma visão amplificada de suas inúmeras contradições, de seus defeitos, de suas qualidades. Detectamos nela, na sua continuidade, os vestígios do pensamento ortodoxo positivista e a permanência da divisão entre as várias classes militares – com o desaparecimento quase do pensamento pacifista e idealista de um Benjamin Constant e o favorecimento de linhas mais "duras". Diz Carvalho, na obra citada: "Não seria despropositado ver no movimento dos tenentes, iniciado em 1922, assim como nas agitações lideradas pelo Clube Militar na década de 1950, ressonância explícita da vertente positivista. A Segunda República, implantada em 1930 por Getúlio Vargas, retomava o sonho da ‘ditadura republicana’ já expresso 50 anos antes, e o realizava com o Estado Novo. A mesma convicção de que somente um ‘governo forte’ poderia ser adequado à nação esteve sempre presente, nos bastidores militares, até durante um período essencialmente democrático como o de Juscelino Kubitschek. E estourou nítido, estabelecido para durar 21 anos, em 1964".

Nossa herança foi a necessidade de continuar uma grande luta. Entre mortos e feridos, e aos trancos e barrancos, a história de nossa república e a simultânea formação de uma nacionalidade brasileira vieram tendo seu curso. De suas lições tiramos ainda – somos maioria – a ideia de que somente com a liberdade de pensamento e de ação poderemos chegar a figurar entre as nações que contam neste planeta. Que uma república sem democracia, ou uma falsa e abusada "democracia" sem liberdade, nada significa em termos políticos e em nada contribui para o bem-estar e o progresso espiritual e cultural da humanidade.

Como sugere o jornalista Alberto Dines, no "Observatório da Imprensa" de 18 de janeiro de 2009, nada mais significativo neste momento do que escolher a figura de Ingrid Betancourt, cobrindo o rosto com as mãos e chorando de emoção ao ser libertada do cativeiro das Farc após seis anos, como emblema atualizado daquela mesma Marianne que nos guiou, e a muitos outros povos, na busca de uma liberdade conquistada a duras penas – incompleta e sofrida embora, mas da qual não podemos abdicar.

Revista Problemas Brasileiros

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