sexta-feira, 18 de setembro de 2009

A primeira viagem de Vasco da Gama à Índia


A primeira viagem de Vasco da Gama à Índia
Famintos e pobres, os portugueses foram tratados como mendigos
por Fábio Pestana Ramos*
Trinta mil quilômetros, fome e terríveis doenças para buscar pimenta, cravo, gengibre e uma pitadinha de açafrão. Pode parecer uma receita salgada demais, mas valia a pena. Lucros de 21000% esperavam os portugueses que, nos séculos 15 e 16, se aventuravam a atravessar o mundo em busca de especiarias na Índia. Pimenta e companhia eram produtos de primeira necessidade para disfarçar o gosto da carne salgada ou defumada (e às vezes meio podre) que os europeus eram obrigados a consumir durante o inverno. É que a falta de pastos os forçava a matar todo o gado no outono e depois não havia como conservar tanto bife. Por isso, quando navios abarrotados de especiarias chegavam, os navegadores eram bem recompensados. E eles faziam por merecer. Além da miséria em alto-mar, eles penavam em terra, pois no Oriente eles não eram recebidos como semideuses, como aconteceu no Brasil. Na primeira viagem de Vasco da Gama a Calecute (hoje Calcutá), em 1498, sua tripulação teve que mendigar comida e por várias vezes foi espezinhazada pela corte indiana.

Com a ajuda de um “língua” (um tradutor), o capitão-mor português se apresentou na Índia como embaixador do rei de Portugal, entregando duas cartas de dom Manuel ao samorim, o soberano que controlava a produção de especiarias. Ele contou uma deslavada mentira: disse que o rei português era senhor de terras e possuidor de infinita quantidade de ouro e prata. A tática funcionou. O indiano firmou um termo de paz, mas logo percebeu a real condição financeira dos portugueses.

Em troca da pimenta, Vasco da Gama enviou à corte indiana quatro capuzes, seis chapéus, quatro ramos de coral, um fardo de bacias e quatro barris cheios de azeite e mel. A reação dos indianos, diante das quinquilharias que fariam a alegria dos nativos da América, não poderia ter sido pior. Os emissários do samorim começaram a gargalhar ao ver as bugingangas, dizendo que aquilo não se igualava à oferta do mais pobre mercador de Meca. Os portugueses tentaram consertar a situação, enviando ao samorim uma imagem de Santa Maria. Diante do objeto, ele teria perguntado com desdém se a santa era feita de ouro. Único referencial que regulava o intenso comércio do oceano Índico, o metal era escasso aos portugueses.

Um massacre só não aconteceu porque os indianos não perceberam uma ameaça nos estranhos esfarrapados. O soberano indiano autorizou os portugueses a negociarem o que traziam pelo melhor preço que conseguissem, mas isso não ajudava muito. Além de suas mercadorias não valerem quase nada frente às especiarias, a tripulação lusitana estava morrendo de fome. Para garantir o sustento de seus homens, Vasco da Gama ordenou que todos os tripulantes da armada fossem à terra e comprassem o que quisessem com recursos próprios. Sem dinheiro, os portugueses foram tratados como pedintes. Esfarrapados, desnutridos, feridos e mal pagos, falando uma língua estranha, os orgulhosos servidores da Coroa (a mesma estirpe que dois anos depois descobririam o Brasil), foram alimentados pela generosidade daqueles que olhavam com pena para o seu estado lastimável.

Com uma boa conversa, muitas promessas e explorando as inimizades regionais, os portugueses conseguiram um acordo com líderes rivais do samorim para retornar a Lisboa levando especiarias.

Vasco da Gama retornou à Índia, em 1502, para acertar os acordos que fez. Logo ao chegar, enforcou 50 pescadores que encontrou nas redondezas. Mandou esquartejá-los, cortou seus pés e suas mãos, e enviou tudo ao samorim com uma carta que dizia ser aquele um presente que sinalizava o pagamento que faria por mais especiarias. Em seguida, abriu fogo contra Calecute, mostrando que não estava brincando. Foi um estrago. Vasco da Gama conseguiu um acordo vantajoso que garantia o fornecimento de especiarias. E os portugueses passaram de mendigos dignos de pena a temíveis inimigos.

* Fábio Pestana Ramos é doutor em história social pela USP, professor titular de sociologia da Uniban e autor do livro No tempo das especiarias (Contexto).

Revista Aventuras na Historia

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