sexta-feira, 25 de setembro de 2009

O sonho do Eldorado amazônico

A arqueologia brasileira e a eterna busca por civilizações ocultas na Floresta Amazônica
Carlos Haag
Edição Impressa 160 - Junho 2009

Pesquisa FAPESP - © Reproduções do livro Legendes Croyances et Talismans des Indiens de l’Amazone/Ilustração de V. de Rego Monteiro

Ao encontrar, em uma caverna, um papiro com a figura humanizada do sol e uma inscrição indígena, o Doutor Benignus decide partir à procura de mundos perdidos numa arriscada expedição pelo interior do Brasil. Depois de uma série de aventuras rocambolescas, o documento o leva até uma ilha misteriosa e lá resolve criar uma “civilização” que reuniria todos os povos e seria capaz de livrar os brasileiros “da indolência e do barbarismo”. Todo o esforço em solucionar o enigma valeu a pena, pois, assegurava o naturalista, “o Brasil é fonte inexaurível como subsídio para a história das primeiras épocas da humanidade!” Infelizmente, o pobre cientista descobre que correra em busca de uma falsa utopia, pois o tal papiro era uma falsificação feita por seu criado, que queria tirá-lo da tristeza em que mergulhara em face da realidade pouco gloriosa do país. Não é uma coincidência que a primeira obra de ficção científica feita no Brasil, Doutor Benignus (1875), de Emílio Zaluar (1826-1882), tenha sido um “romance arqueológico de mundos perdidos”. Procurar monumentos escondidos na floresta densa pode ser risível, mas, em outras plumagens, o dilema se fomos “inferno ou Eldorado” ainda hoje é um dos principais motivos de discussão entre arqueólogos, como revela Cotidiano e poder na Amazônia pré-colonial (240 páginas, R$ 92), de Denise Cavalcante Gomes, Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, lançado agora pela Edusp.

Em pesquisas feitas no Pará, a arqueóloga cava buracos nas teorias que tentam explicar a ocupação amazônica. Uma “briga” acadêmica que não esconde diferenças ideológicas. A primeira, do “paraíso ilusório”, é defendida pela arqueóloga americana Betty Meggers, para quem o ambiente de solos “pobres” em nutrientes da região impediu uma agricultura intensiva e, logo, a formação de grandes populações avançadas. A sua rival prega a existência de um “Eldorado quase real”, como afirmam os seguidores de outra arqueó­loga americana, Anna Roosevelt, que desprezam as hipóteses “deterministas ambientais” de Meggers como “imperialistas” e interessadas em reforçar “a degeneração dos índios”. Esse grupo prefere trabalhar com a hipótese de que, em tempos pré-coloniais, a Amazônia abrigou cacicados desenvolvidos e com “um nível de sofisticação em seu modo de vida que rivalizava ou mesmo excedia o europeu”, para usar as palavras do antropólogo Neil Whitehead, da Universidade de Wisconsin.


© Reproduções do livro Legendes Croyances et Talismans des Indiens de l’Amazone/Ilustração de V. de Rego Monteiro

“Após três séculos o mito de Eldorado está sendo revivido por arqueólogos. Insistir no ‘mito de impérios amazônicos’ não apenas impede pesquisadores de reconstruir a pré-história da região como os faz cúmplices na aceleração do processo de degradação ambiental, já que subsídios para a crença de que a exploração do ecossistema da floresta é possível”, afirmou Meggers em seu artigo “The continuing quest for El Dorado: round two”. Efetivamente, num livro recém-lançado nos EUA, The lost city of Z (que deve sair em julho no Brasil pela Companhia das Letras), de David Grann, a história da malfadada expedição do coronel britânico Percy Fawcett (1867-1925) ao Xingu em busca da civilização perdida de “Z”, o arqueólogo Michael Heckenberger, da Universidade da Flórida e um dos principais detratores de Meggers, reforça o mito. “Havia nessa região uma cultura estética da monumentalidade e os índios gostavam de ter belas estradas e praças e pontes. Seus monumentos não eram pirâmides, daí ser difícil de achá-los, mas criações horizontais não menos extraordinárias”, diz o pesquisador, parte integrante de uma equipe que afirma ter encontrado provas arqueológicas de cacicados avançados na Amazônia. “Fawcett estava convencido de que a floresta selvagem escondia vestígios de pelo menos uma civilização avançada. Ele estudou as lendas do Eldorado e ouviu dos índios descrições de grandes cidades com muitas ruas, lugares onde o ambiente não era problema e havia comida abundante”, afirma Grann. “O coronel irritava-se com seus detratores, os ‘homens de ciência’, que também haviam ridicularizado a ideia de grandes civilizações pré-colombianas ou a existência de Troia. Falava sempre da sua visão de uma cultura majestosa no Amazonas que se irradiou para regiões distantes, mas, por fim, acabou devorada pela floresta.” O mesmo destino aguardava o coronel, desaparecido naquele mesmo ano no Xingu. “Ele pode ter sido um amador e facilmente desprezado como um ‘maluco’, mas, de certa forma, viu as coisas com mais clareza do que muitos eruditos profissionais da arqueologia”, nota Heckenberger.

O pesquisador deixa claro que não está em busca de “eldorados”, embora seja difícil não pensar nesses (e em Fawcett) em face de suas descobertas recentes de vestígios das chefias pré-coloniais, cuja interpretação, alerta Denise, contribui perigosamente “para a construção de uma imagem grandiosa do passado amazônico, reafirmada em sínteses acadêmicas”. Efetivamente, a arqueologia é uma das ciências que mais mexem com o imaginário ocidental. Não sem razão foi (e é) fonte de romances e filmes populares. As ideias de Fawcett, por exemplo, inspiraram Conan Doyle (1859-1930), o criador de Sherlock Holmes, a escrever Mundo perdido (1912), primeira novela a usar a Amazônia como cenário de um “romance de mundo perdido”. Entre meados do século XIX e do século XX esse subgênero predominou em detrimento do chamado “romance planetário” (aventuras espaciais futuristas) como tema central da incipiente ficção científica nacional. “Há uma ausência do ‘romance planetário’, muito em voga no exterior, entre nós. O ‘mundo perdido’, em especial o amazônico, teve mais ressonância por causa do exotismo e imensidão que víamos no nosso território, que nos fazia pensar o Brasil como ‘romance planetário’, um vasto mundo cuja ecologia evocava mistério e inquietação”, analisa Roberto de Sousa Causo, autor de Ficção científica, fantasia e horror no Brasil (1875-1950), estudo editado pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). “O território selvagem dava à nossa consciência uma paisagem colonial ocupando o nicho mental de um império rico e inexplorado que ajudaria a nossa projeção no resto do mundo. Só que, aqui, ao contrário do ‘mundo perdido’ colonialista de escritores estrangeiros, era expressão de um imperialismo interno, projeção de estratégias colonialistas sobre regiões inexploradas do próprio país”, avalia. Há para todos os gostos, desde A Amazônia misteriosa (1925), de Gastão Cruls, que descreve encontros com guerreiras amazonas, até A República 3000 ou a filha do inca (1927), de Menotti del Picchia, que mistura princesas incas, civilizações cretenses, florestas tropicais brasileiras e utopias eugenistas e racistas, que afirmavam a degeneração do índio e do caboclo e a superioridade europeia.

© Reproduções do livro Legendes Croyances et Talismans des Indiens de l’Amazone/Ilustração de V. de Rego Monteiro

Essa literatura que misturava “ciência”, política, ideologia e exotismo, porém, não foi influenciada apenas pelas leituras de Rice Haggard e seu As minas do rei Salomão, mas refletia toda uma história de discussões sérias feitas por doutores do IHGB (Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro) e do Museu Nacional e outras instituições sérias. Como o melancólico Doutor Benignus, há tempos os doutos de carne e osso do país padeciam do mesmo mal e sonhavam, como ele, em encontrar civilizações perdidas que provassem a grandeza inata da jovem nação. Desde 1838, quando foi criado, com total apoio do Estado imperial, o IHGB, cuja linha mestra preconizava “buscar vestígios do passado, relíquias esquecidas no solo pátrio”, expedições foram organizadas para revelar o passado glorioso que poderia ser recuperado pela nascente arqueologia nacional. Afinal, o Império brasileiro não podia ficar atrás das repúblicas latinas vizinhas e precisava apresentar ruínas de civilizações que estivessem à altura de astecas, incas e maias.

“Os anos 1840 foram o auge da tentativa da monarquia brasileira de recuperar restos monumentais, relacionando a história nacional a civilizações formidáveis, a exemplo da Atlântida ou dos fenícios e vikings. Não sem razão foi no ano da coroação de dom Pedro II que se realizaram as principais expedições de busca da ‘cidade perdida’ no interior da Bahia”, explica o historiador Johnni Langer, da Universidade Federal do Maranhão, autor do doutorado Ruínas e mito: a arqueologia no Brasil Império. A arqueologia já nascia como “ciência do Estado”, convocada a ajudar na criação de um “mito de origem” para a nova nação. “O mito das cidades perdidas virou um valor paradigmático, um modelo de referência do passado nacional: a civilização avançada perdida que deixou marcas por todo o território, sendo então rastreada pela arqueologia”, nota o pesquisador. “O papel da arqueologia e dos museus seguia as narrativas que reuniam os Estados nacionais a grandes civilizações, material palpável para a elaboração de símbolos nacionais e vinculações ancestrais, naturalizando o sentimento de pertencer a uma nação”, analisa o historiador Lucio Menezes Ferreira, da Universidade Federal de Pelotas, que acaba de terminar um pós-doutorado sobre o tema no Núcleo de Estudos Estratégicos da Unicamp (2008).


© Reproduções do livro Legendes Croyances et Talismans des Indiens de l’Amazone/Ilustração de V. de Rego Monteiro

“Vestígios de civilizações mediterrâneas camuflados sob as matas tropicais, garranchos semíticos em paredes de cavernas, invadiram aos poucos a imaginação literária, quando trabalhá-los ‘em ciência’ trazia o risco de expor estudiosos a chacotas”, explica Ferreira. Antes disso, porém, a imaginação era a força motriz da arqueologia. Em 1839, numa reunião do instituto, os eruditos foram alertados para a presença, na pedra da Gávea, “de uma inscrição em caracteres fenícios e que revelam grande antiguidade”, o que levava à conclusão de que “o Brasil tinha sido visitado por nações conhecedoras da navegação antes dos portugueses”. Uma expedição foi enviada e retornou algo desapontada, pois o achado poderia ser apenas “feito pela natureza”. Isso não impediu, no relatório de conclusão, que se afirmasse tratar de uma descoberta “de importância comparável às grandes construções da arqueologia, como os grandes monumentos do Egito e as cidades mesopotâmicas que poderiam fazer uma revolução na nossa história e abrir uma estrada luminosa do passado ao futuro”. Clamava-se por um “Champollion brasileiro” que mudasse os conhecimentos sobre a história nacional, sem fatos ou monumentos notáveis. “Era preciso poder colocar o Brasil do futuro ao lado das grandes nações e impérios, orgulhosos de suas ruínas antigas. A partir de 1840, a aceitação da existência da ‘geração perdida’, uma civilização nacional avançada desaparecida, mostra a união de mito e história, ideal de ‘como deveria ter sido’ o Brasil dos tempos antigos, mesmo sem evidências concretas”, avalia Langer.

Afinal, ninguém menos do que o célebre Von Martius, em Como se deve escrever a história do Brasil (1845), opúsculo premiado pelo IHGB cujas ideias deveriam nortear a instituição, afirmou que “não há de se achar inverossímil encontrar antigos monumentos nas florestas do Brasil, tanto mais que até agora elas não são conhecidas nem acessíveis senão em pequena proporção”. Para o naturalista alemão a localização dos preciosos vestígios seria na Floresta Amazônica, espaço misterioso onde a vegetação poderia ocultá-los, o que exigia a observação direta por meio de expedições científicas, como a busca pela “cidade perdida da Bahia”, iniciada em 1840, a pedido do instituto, pelo cônego Benigno Carvalho. Um ano antes, um pesquisador encontrara um manuscrito anônimo, “Relação historica de uma occulta, e grande povoação antiquissima sem moradores”, suposta narração feita por bandeirantes sobre como haviam se deparado com um vilarejo deserto que, entre outras maravilhas, possuía “uma collumna de pedra preta de grandeza extraordinaria, e sobre ella huma Estatua de homem ordinario, com humana mao na ilharga esquerda, e o braço direito estendido, mostrando com o dedo index ao Polo do Norte; em cada canto da dita Praça está uma Agulha, a imitação das que uzavão os Romanos”. Hoje conhecido como o Manuscrito 512 (o mesmo que Fawcett usaria como “guia” de sua expedição), essa visão de uma civilização “clássica” em plena Bahia atiçou a imaginação não apenas de estudiosos brasileiros, mas de várias instituições internacionais. Nada foi encontrado, mas isso não impediu que o IHGB insistisse em pesquisar, no sertão brasileiro, menires, inscrições com runas que atestariam a passagem de nórdicos nos trópicos, outras cidades perdidas e mesmo relatos da descoberta de um “fragmento de estátua de mármore contemporâneo do mais brilhante período da arte grega”, em 1887, na Amazônia. A informação era falsa, como também eram as inscrições talhadas numa pedra enviada a Ladislau Neto, do Museu Nacional, que as traduziu e afirmou se tratarem de um relato da vinda de fenícios da cidade de Sidônia para o Brasil.

Macunaíma, o anti-herói de Mario de Andrade, em sua busca quase arqueológica pela pedra muiraquitã, das amazonas, também se impressionou, em seu percurso, com “letreiros encarnados da gente fenícia” e, cavando em Manaus, “descobriu os restos de Deus Marte, escultura grega achada inda na Monarquia e primeiro-de--abril passado no Alencar Araripe pelo jornal Comércio das Amazonas”. “Essa ironia andradiana ataca diretamente a chamada ‘arqueologia nobiliárquica’ que se fazia então e que, como os parnasianos, tinha os pés no Brasil e os olhos voltados para a Europa”, observa Ferreira. Segundo o pesquisador, para a elite política e intelectual do IHGB era uma busca que pretendia dar um lugar social a ser ocupado pelos indígenas dentro da lógica genealógica do Estado imperial. “Estabelecer antepassados nobres (fenícios, gregos ou europeus) para os indígenas viabilizava representá-los no quadro das nações civilizadas. Numa sociedade que distribuía títulos de nobreza e em que o passado indígena deveria modelar-se num espelho agradável para a ‘raça branca’, as raças fossilizadas também deveriam ser ‘nobres’, ainda que essa ‘nobreza’ estivesse perdida num tempo quase sem memória”, nota o historiador. Era necessário provar que os antepassados indígenas eram de natureza diversa dos “degenerados” índios contemporâneos, “ruínas de povos” como os chamava Martius, insistindo na ideia da “geração grandiosa” que se extinguiu. “Eles, então, teriam sido antes criadores, membros de uma antiga civilização que seria reconstruída pela nobreza do império, numa arqueologia que se confunde com a heráldica e que seja uma arqueologia nobiliárquica a reconstruir a genealogia da nação.” Se não havia ruínas nas florestas, a culpa era do ambiente hostil que as destruía. O índio, ainda assim, era “um grego nu”. O espelho primitivo, com novas cores, reforçava os “brilhos da civilização”.

“Ele podia ser um bárbaro na sua condição atual, mas talvez ainda recuperável para a história da nação, desde que o reverso da medalha contivesse símbolos de uma cultura elaborada”, observa o pesquisador. Mas, segundo Ferreira, a busca de vestígios de civilização não era apenas uma fantasia mitológica, a ressurreição de mitos antigos no imaginário científico. “Descobrir monumentos nas florestas brasileiras também respondia a interesses específicos do projeto político imperial: interiorizar a civilização e civilizar as populações indígenas. As ‘viagens arqueológicas’ não buscavam apenas ruínas, mas também cartografar o espaço, descobrir riquezas minerais, esmiuçar tudo aquilo que era visto como a antítese da civilização.” As pesquisas arqueológicas, desde o Império, então procuravam instituir um “colonialismo interno”. “Narravam um passado nativo e mostravam que, de algum modo, ele sobrevivia no presente. Assim, o território estaria ainda coalhado por povos cuja ‘inferioridade cultural’ clamava por missões civilizadoras, projetos de pacificação e, mais tarde, a revitalização dos aldeamentos em consonância com a ciência mundial. Arqueologia e colonialismo queriam promover, assim, a expansão geográfica e geopolítica do Estado nacional”, explica Ferreira. Afinal, os indígenas seriam ingredientes da futura mão de obra do Brasil. “Deveriam ser civilizados nos assentamentos, povoar os sertões e aguardar a chegada de imigrantes ‘brancos’ com os quais se miscigenariam recompondo as fibras da população nacional.” Ao classificarem os povos indígenas de degenerados, o IHGB (por meio de figuras como Von Martius e Varnhagen), muito admirado pelo imperador, legitimou esse “colonialismo interno”, como fariam, mais tarde, os “romances de mundo perdido” da nossa ficção científica, amplamente divulgada pela imprensa e com largo acesso ao público leigo, para quem o índio fora criador de uma civilização que o inóspito Amazonas degenerou. Outros, leigos ou doutos, preferiam vê-los como frutos de expansão da civilização andina pelo Brasil que a ecologia nacional, o “determinismo ambiental”, teria igualmente degenerado.

Quando a triste realidade coloca em xeque o modelo da “arqueologia do fantástico”, os pesquisadores voltam-se para a “arqueologia do primitivo”, como preconizada pelos estudos de Peter Lund e seus achados na Lagoa Santa. “A partir de 1865, pode-se até pensar em ‘civilizações europeias’ chegando à América, desde que se escave sítios arqueológicos para verificar se os artefatos possuem ou não signos legíveis de civilização. Não basta, como fazia a ‘arqueologia nobiliárquica’, o achado fortuito. Agora a ordem era escavar e recuperar os restos de ‘raças primitivas’ e as ‘relíquias’ de civilização para estabelecer a origem dos sítios arqueológicos e dos indígenas”, afirma o historiador. Darwin havia chegado ao Brasil, como se podia ver no enunciado de Lund, para quem a natureza sempre procede do “imperfeito para o perfeito”. O IHGB perdia terreno, embora, até o século XX, havia quem continuasse a perseguir “cidades perdidas” além do pobre Fawcett. “O Brasil não seria só o mais antigo continente, mas o berço de civilizações mesoamericanas, tendo em suas matas, sobre raízes pré-históricas, uma pequena ilha de civilização, a ilha de Marajó”. Ponto para o Doutor Benignus.

“A arqueologia do primitivo não só buscou registros de primitividade e civilização nos sambaquis, mas deu lastro à teoria da antiguidade do espaço ‘Brasil’. Como fizera antes a nobiliárquica, a do primitivo lançou hipóteses sobre o povoamento nacional. O continente ‘mais antigo do planeta’, origem de civilizações americanas, germinado por uma raça primitiva que se expandiu dos planaltos mineiros para as cordilheiras andinas: tudo garantia a nova demarcação geopolítica, agora com bases sólidas arqueológicas.” A ciência continuava a ser cortejada pela política e pela ideologia ou a aceitá-la de bom grado. Daí, nota Ferreira, a persistência da teoria da degeneração indígena que teria continuado nos trabalhos de Betty Meggers, responsável, a partir de 1964, ao lado de Clifford Evans, pelo treino de toda uma geração de arqueólogos brasileiros por meio do Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas (Pronapa), financiado pelo Smithsonian Instituition. Isso, aliás, teria levado historiadores a associarem o projeto (e as teorias) de Meggers (que foi acusada de trabalhar para a CIA) a uma suposta articulação entre a ditadura militar e Washington. “Não é preciso documentos oficiais para demonstrar os fundamentos colonialistas das representações de Meggers. Eles residem nos axiomas do ‘determinismo ambiental’, cristalizados e maturados por ela ao longo de suas pesquisas na década de 1950. Segundo esses, a Floresta Amazônica, com seu ambiente impiedoso, degenerou as populações indígenas, estorvando a evolução”, nota Ferreira. Segundo ele, as conclusões que advêm disso são preocupantes, pois, para Meg­gers, as ‘altas civilizações’ se erguem nos solos de áreas que ela chamou de ‘nucleares’. Quanto mais perto dessas, maior a evolução do grupo. Longe dos núcleos haveria a degeneração dos ambientes degradantes. “É uma alegoria para o presente, pois o foco de luz civilizadora, hoje o núcleo, transfere-se para a América do Norte, enquanto a Amazônia seria um sorvedouro de civilizações, embora, diz Meggers, tenha embalado sonhos de Eldorados. Ela, aliás, veio nos esclarecer sobre as nossas ilusões oníricas. Justificam-se, assim, as desigualdades regionais do continente americano.”

Sem cidades perdidas ou a primazia de ser o mais velho da turma, o Brasil também faria parte do chamado pristine myth (como definido no texto clássico de William M. Denevan sobre o cenário da América em 1492) ou “mito da pureza original” da terra pré-colombiana. “Os nativos não teriam a racionalidade necessária para trabalhar suas terras e, assim, o conquistador europeu aparece como a fonte de razão e inovação iluminista no vácuo que eram as colônias antes de sua chegada. Por esse raciocínio, eles é que teriam ‘moldado’ a paisagem do Novo Mundo”, explica o geógrafo Andrew Sluyter, da Universidade da Pensilvânia, autor de Colonialism and landscape. “A implicação disso é que faltaria às paisagens pré-coloniais uma população densa em função de uma suposta inabilidade do uso da terra. Essa ideia continuou a ser usada pelo pós-colonialismo recente para promover a categorização do mundo entre um Ocidente racionalmente progressivo versus um ‘não-Ocidente’ irracionalmente tradicional, prática ainda hoje mantida com a difusão perversa de conhecimento e tecnologias de um para o outro.” O colonizador teria o mérito de ter transformado materialmente, e para melhor, a paisagem “prístina” do mundo pré-colonial na paisagem produtiva do pós-1492. Isso, porém, vem sendo contestado pela descoberta contínua de “terra preta” na Amazônia (algo já apontado por Anna Roosevelt no Marajó), a terra fértil que se acredita ter sido produzida pela ação humana. “Ao menos 10% da Amazônia está coberta por ‘terra preta’. Assim, não é verdade que as chuvas tirariam os nutrientes do solo e impediriam o avanço das culturas. Esse tipo de terra não é afetada pelas chuvas e até reage a elas de forma positiva. Além disso, tudo indica que a ‘terra preta’ foi criada deliberadamente por povos amazônicos para modificar o solo e melhorá-lo para o cultivo”, afirma o geógrafo William Woods, da Southern Illinois University.

Segundo ele, os habitantes originais plantaram culturas que transformaram terras pouco férteis em terreno adequado ao cultivo de muitas espécies, garantindo alimento farto para sustentar populações maiores. “Os índios literalmente criaram o solo a seus pés e parte da floresta é antropogênica, acredita Woods, o que comprometeria tanto o pristine myth quanto as teses de Meggers. Isso, porém, explicaria a reação da americana, em cujas críticas a esse novo modelo afirma estar temerosa sobre o futuro da Amazônia se virar senso comum a possibilidade de exploração comercial do solo da floresta. Voltamos ao dilema do início: inferno ou Eldorado? Roosevelt ou Meggers? Com uma novidade: o que é melhor para o futuro da Amazônia? “A teoria baseada em tipologias socioevolucionistas é inadequada para reconstruir a paisagem da Amazônia pré-colonial. Mas o modelo de sociedades complexas proposto por Roosevelt deve ser visto como apenas uma tentativa preliminar de compreender os dados disponíveis sobre a organização social dessas sociedades. “Não é, com certeza, uma interpretação definitiva”, avalia Denise Gomes. Infeliz o país que precisa de “civilizações perdidas”. Afinal, como explica o criado do Doutor Benignus ao final da novela, confessando ter sido o autor do papiro, o que importava era seu patrão ter enfrentado tudo em busca da verdade, e, mesmo não a encontrando, descobriu outras utopias. “Não é preciso ter medo de falhar”, escreveu Fawcett em sua última carta. Pouco antes de desaparecer na floresta e – ele adoraria – virar mito também.

Revista FAPESP

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