domingo, 13 de setembro de 2009

Na rota dos franciscanos


Na rota dos franciscanos
Restauração de convento barroco em Alagoas vai preservar a memória da primeira ordem que chegou ao Brasil
Claudia Bojunga

Acampamento de soldados, orfanato e até abrigo de refugiados da seca do sertão: não dá para imaginar que um lugar usado com finalidades tão diferentes desde o final do século XIX seja um convento. Mais especificamente, o conjunto conventual franciscano de Santa Maria Madalena. Localizada em Alagoas, na pequena cidade de Marechal Deodoro, a construção, de mais de 350 anos, vai voltar a ser usada para a celebração de missas quando sua restauração for concluída.
O monumento, formado pela Igreja de São Francisco, a Capela da Ordem Terceira (leigos) e o convento (onde hoje funciona o Museu de Arte Sacra), é parte de um vasto conjunto de construções que representam o legado franciscano no país. “Eles moldaram a paisagem atual da região açucareira, que hoje chamamos de Nordeste,” explica a historiadora da arte Maria Eduarda Marques.

Isolado durante muito tempo, sem acesso por estradas federais até os anos 1970, quando foram abertas rodovias na região, o complexo de Santa Maria Madalena não ficou imune à deterioração provocada pelo tempo. Mas esse exemplar da chamada Escola Franciscana do Nordeste – do segundo momento do Barroco – não podia se perder, levando junto a tradição da ordem dos primeiros missionários que chegaram em terras brasileiras. O principal registro da passagem dos franciscanos pelo Brasil são os conventos e as construções da ordem. Isso tem explicação na filosofia desses frades. Diferentemente dos jesuítas, os franciscanos não apreciavam a palavra escrita, valorizando os trabalhos manuais em oposição à erudição.

“A retórica era desprezada pelos franciscanos, que eram mais ligados à prática de estar no mundo, com uma sabedoria voltada para a vida,” informa Maria Eduarda.

A recuperação do convento, que propicia a preservação de pelo menos uma parte dessa memória, é um trabalho gigantesco: além da recuperação de entalhes em madeira, inclui obras de engenharia, como reforma do piso, instalações hidráulicas e elétricas. A obra começou em 2007 e deverá ser concluída em 2010.

Mas um projeto de restauração não é como uma simples reforma. A cada avanço, os pesquisadores também se deparam com descobertas e dilemas. Ao retirar um retábulo de madeira dentro da igreja, por exemplo, foi encontrada uma pintura mural. O achado gerou imediatamente uma dúvida: o que deveria ser mantido – o retábulo, datado de 1730, ou a pintura, que é mais antiga? Uma junta de especialistas concluiu que, apesar de ser anterior, a pintura mural tinha menos qualidade artística. “Provavelmente, alguém da comunidade elaborou um desenho bem simples porque não havia dinheiro para fazer um retábulo. São anjinhos alados, cachos de uvas e nuvens, sem grandes contornos artísticos”, diz Ana Cláudia Magalhães, arquiteta e historiadora responsável pelo acompanhamento da obra, conduzida pela Sociedade Nossa Senhora do Bom Conselho.

A pintura perdeu a batalha por visibilidade, mas não foi ignorada pelos restauradores: será retocada antes de voltar a ficar escondida atrás do retábulo. Este, sim, é um importante exemplo da primeira fase do barroco nacional, folheado a ouro e ornado com belas imagens, entre elas, figuras mitológicas, como fênix e atlantes.

Também provocaram surpresa os túmulos achados no claustro, por causa da seguinte inscrição na pedra: “Estas sepulturas pertencem aos irmãos de São Benedito”. A pesquisadora ficou intrigada com o que viu: “Não entendo como no local onde normalmente só se enterram os frades estão enterrados leigos. Além disso, a irmandade dos beneditinos admitia negros, e os franciscanos eram uma ordem composta só de brancos”, observa Ana Cláudia. Um mistério ainda não solucionado.

Na nave da igreja, mais túmulos: “Embaixo de um piso de lajota cerâmica do início do século XX, encontramos um assoalho de ladrilho todo quadriculado, do século XVIII. Há alguns números gravados, indicando quem foi enterrado ali”, explica a pesquisadora. O piso também é composto de pedra arenita amarela e rugosa, possivelmente tirada dos arrecifes da Praia do Francês, principal balneário de Marechal Deodoro, cidade que fica a 25 quilômetros de Maceió.
Hoje ponto turístico, a praia era um lugar ermo no século XVII. O vilarejo fundado em 1611 se desenvolveu em volta de uma lagoa que serviu para batizá-lo: Santa Maria Madalena da Lagoa do Sul. “Os colonizadores interiorizaram a povoação para defendê-la melhor. Por isso a praia era distante da sede urbana”, explica a arquiteta e urbanista Josemary Ferrare. O nome atual, Marechal Deodoro, só viria em 1939, uma homenagem ao ilustre filho da terra que se tornou presidente da República.

O convento foi construído às margens da lagoa. Posição estratégica para os padres franciscanos coletarem água e poderem usar o principal acesso da vila. A contemplação e o contato com a natureza, características da filosofia franciscana, também devem ter sido levados em conta. Do alto das torres sineiras e de suas amplas janelas, tem-se uma generosa vista do horizonte.

Os janelões e as arcadas também são características marcantes das construções da ordem: “Os franciscanos nos deixaram uma tradição arquitetônica própria. Fizeram uma adaptação da arquitetura europeia aos trópicos, buscando materiais locais, como cal. Também utilizavam muita azulejaria, que trazia frescor aos ambientes internos”, comenta Maria Eduarda.

A missão da equipe, formada por cerca de 100 pessoas – entre especialistas em restauração, pedreiros, marceneiros, pintores e muitos outros profissionais –, é ao mesmo tempo monumental e delicada. O desafio é unir tarefas braçais, como a retirada de pisos inteiros ou pedaços grandes de reboco, com a minúcia das prospecções. Essa técnica identifica as diferentes camadas de tinta a partir de um corte retangular na parede, onde se fazem raspagens cuidadosas com um bisturi. Tarefa fundamental para que não sejam perdidas pinturas importantes. Para garantir todo esse aparato, o projeto conta com R$ 2,3 milhões do BNDES e R$ 350 mil da Oi/Telemar.

Toda a restauração é como uma grande prospecção, em que camadas sobrepostas de várias épocas são desbastadas para que se recomponha sua configuração original, trazendo à tona a história dos franciscanos no país. Os frades da ordem chegaram ao nosso território na nau de Pedro Álvares Cabral, em 22 de abril de 1500. Liderados por frei Henrique de Coimbra, formavam um grupo de oito padres. Mas somente em 1585 a ordem se fixou definitivamente em Olinda, logo se espalhando pelo Brasil.

No vilarejo de Santa Maria Madalena os franciscanos só chegariam em 1635, junto com uma comitiva que fugia dos holandeses invasores da capitania de Pernambuco. Dois anos antes, os mesmos holandeses haviam aterrorizado aquelas redondezas, que teve seus canaviais incendiados e a sua Igreja Matriz destruída. O grupo ergueu uma precária choupana de palha e ramagem, onde 25 anos depois seria construído o convento. As primeiras obras ficaram prontas em 1732, mas seu frontispício só seria finalizado em 1793.

Os frades franciscanos moraram no conjunto arquitetônico até o início do século XX. Mas a decadência do convento começou antes disso. Em 1855, uma determinação do imperador D. Pedro II proibiu a entrada de noviços em qualquer ordem eclesiástica, o que atingiu seriamente a estrutura de todas elas, inclusive a dos franciscanos. Além disso, a vila de Santa Maria Madalena da Lagoa do Sul passava por um processo de estagnação econômica e social desde 1839, quando perdera o status de capital da província para Maceió. Cinquenta anos depois, restavam no convento apenas três religiosos e quatro escravos. A partir de então, o lugar passou a ser apropriado para diversos fins. A cada mudança de uso, mais alterada ficava sua estrutura.

Mas as transformações ocorridas ao longo desse período não foram o único problema enfrentado pelos restauradores. A fundação do museu no lugar do convento, em 1984, e o tombamento, em 2006, não foram suficientes para conter sua deterioração. Depois de mais de um século de abandono, as paredes estavam manchadas devido a infiltrações recorrentes, o reboco estava podre e as estruturas em madeira tinham sido devoradas por cupins. Havia excrementos de morcego e insetos por toda parte. A situação era tão precária que, no ano 2000, a igreja foi interditada e encerrou suas atividades, devido ao risco de desabamento do teto. Nunca mais reabriu.

Se, por um lado, o isolamento do convento contribuiu para a sua degradação, por outro, a estagnação econômica da cidade – hoje com apenas 40 mil habitantes – permitiu que seu centro histórico não sofresse grandes alterações. “A cidade conseguiu manter características autênticas da arquitetura colonial, pois não foram realizados alargamentos nas ruas ou muitas demolições, mantendo a mesma forma do século XVII”. Para além do benefício do acaso, o trabalho de restauração traz a certeza de que o convento ficará preservado, em honra dos franciscanos.

Saiba Maids - Bibliografia:

BAZIN, Germain. A arquitetura religiosa barroca no Brasil. Trad. Glória L. Nunes, vol. I e II, Rio de Janeiro: Record, 1956.

BFreyre, G. A. Propósito de frades. Bahia: Publicações da Universidade da Bahia, 1959.

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

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