domingo, 13 de setembro de 2009

Movida a dívidas


Movida a dívidas
A movimentada economia colonial estava concentrada nas mãos de poucos. Resultado: oferta de crédito e uma legião de endividados
Joacir Navarro Borges

Você pega um empréstimo para comprar uma casa, com mensalidades a perder de vista. Usa a casa como garantia para um novo empréstimo e compra um carro, também parcelado por longo prazo. Depois repassa a dívida do carro para dar entrada em outro mais novo, e aí usa este para conseguir mais um dinheiro e reformar a casa, que vende sem terminar de pagar, e compra outra. Com a ajuda de um empréstimo, é claro.

Esta ciranda insana de crédito fácil (subprime) fez a alegria de emprestadores e especuladores nos Estados Unidos, mas acabou levando o país – e o mundo a reboque – à maior crise econômica das últimas décadas.

Tudo culpa do “abuso de vender fiado nestes países, que tudo consiste em dívidas, em créditos e em conta, que não tem fim; e as dívidas se perdem muitas e o dinheiro quase nunca se apura”. Palavras de um economista preocupado com a crise atual? Nada disso. O costume vem de longe. A crítica foi feita há mais de 240 anos pelo governador da capitania de São Paulo, Luís António de Sousa Botelho Mourão, em carta ao conde de Oeiras, futuro marquês de Pombal, secretário de Estado do rei português D. José.

Neste e em vários outros documentos, as autoridades apontavam para um dado fundamental da América portuguesa no século XVIII: redes de crédito e de endividamento se espalhavam por toda a Colônia.

Como as riquezas estavam concentradas nas mãos de poucos, havia escassez de moeda circulante. Em uma economia estagnada, este seria um problema menor. Mas a partir de 1700, uma nova realidade se impunha: a escalada da produção de ouro nas Minas Gerais gerou grandes deslocamentos populacionais e aqueceu o mercado interno. Surgiu então um diversificado sistema de empréstimos, envolvendo tanto os grandes comerciantes das maiores praças mercantis, como o Rio de Janeiro, quanto modestos mercadores nas pequenas localidades e vilas.

Os tropeiros eram personagens centrais naquele cenário. Transitando pelos sertões, constituíram uma longa cadeia de negócios que movimentava todo tipo de mercadoria – dos animais de corte e de carga até tecidos e alimentos, chegando ao tão cobiçado ouro em pó. Os bens de consumo, as tropas e as dívidas andavam juntos pelos caminhos do Brasil.

Um dos principais percursos atravessava o centro-sul da Colônia, e tinha na vila de Curitiba uma parada importante. A criação de gado naqueles campos era feita desde meados do século XVII. No início da década de 1730, quando foi aberto o caminho do Viamão, Curitiba tornou-se ponto estratégico no fornecimento de bois, vacas, mulas e cavalos para São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Muitos moradores da localidade se tornaram tropeiros ou abriram negócios para atender às necessidades dos tropeiros que passavam pela região, vindos do sul em direção à feira de Sorocaba. Rapidamente a vila entrou nas redes de crédito e endividamento que movimentavam a Colônia.

Em 1755, o vereador Manoel Alves Fontes pediu dispensa do cargo. Precisava viajar até o Rio de Janeiro para “alcançar uma boiada de 400 bois”. Não ir, ele explicava, representaria “toda ruína de seus bens, por ter comprado fiada a dita boiada”. No ano seguinte, o tenente João Batista Dinis seguiu caminho parecido: abriu mão do cargo de Juiz dos Órfãos de Curitiba para levar uma boiada à capital – onde estava devendo “para cima de três mil cruzados”. No Rio Grande (atual Rio Grande do Sul), a Junta da Fazenda registraria em 1805 que “nunca se fazem vendas de bens alguns com dinheiro à vista e só fiados com espera de longos anos de sorte que se vá pagando com o produto dos gados da mesma fazenda”.

Ter crédito na praça era ter estima e qualidade social. Aqueles que gozavam de maior poder e autoridade eram também os que tinham maior acesso ao crédito, concentrando em suas mãos os maiores valores tomados emprestados. Os mais pobres, por sua vez, representavam a maior parte dos devedores, mas suas dívidas eram em geral pequenas, às vezes tão diminutas que nem justificavam as custas de uma ação judicial.

Nem todos eram bons pagadores. Ações por dívidas não pagas se multiplicaram no juizado curitibano. Entre 1731 e 1752, elas representaram 85% de todos os processos civis julgados ali. Em geral os credores exigiam que o tomador do empréstimo tivesse algum bem para dar como garantia. Após a sentença do juiz, o devedor tinha um prazo para pagar a dívida ou teria seus bens penhorados. No entanto, isso nem sempre ocorria e prender o réu transformava-se na única forma de garantir o pagamento da dívida. Em 1750, Manoel Martins Landin requereu que Antonio de Amaral Coutinho lhe pagasse 12 mil réis e também pediu que o juiz mandasse prender o réu, pois “era homem solteiro, sem domicílio, nem terra, nem bens de raízes algum que poderia, alcançando sentença não ter em que fazer execução”. O réu replicou que a prisão não era necessária, pois ele tinha 14 mil réis “na mão de Fellis Ferreira Neto”. Neste caso, uma dívida garantiu a outra, num verdadeiro toma lá, dá cá.

Um dos mais notórios credores de Curitiba foi o padre Manoel Domingues Leitão, vigário da localidade entre 1731 e 1782. Era um personagem primordial para os moradores da vila, ora proporcionando conforto espiritual, ora material. Sua carreira como financista começou graças a uma disputa na Justiça. Durante mais de uma década, o padre cobrou das autoridades o pagamento de suas pensões anuais (côngruas). Em 1745, finalmente venceu o processo e recebeu o acumulado de 1 conto e 329 mil réis, quantia bastante alta para a época. Com dinheiro em caixa, o padre Leitão passou a emprestar para moradores e tropeiros.

O problema é que os juros do padre não eram lá muito franciscanos. Em 1750, o vigário passou a ter suas atividades investigadas pela Ouvidoria de Paranaguá. As testemunhas foram unânimes em apontá-lo como usurário, pois emprestava “aos tropeiros que vem com tropas do Rio Grande a esta vila todo o dinheiro com o lucro de dez por cento”. O vigário foi absolvido no ano seguinte, mas o caso ainda faria eco em 1752, quando o ouvidor lhe fez nova acusação e a Câmara de Curitiba dirigiu um requerimento à Vara Eclesiástica no qual chamava o padre Leitão de “lobo infernal” e pedia que fosse substituído por um “pastor afável que apascente este rebanho”. Tudo isso não parece ter quebrantado o padre, pois ele continuou à frente da matriz curitibana até o fim de sua longa vida, em 1782.

Assim como o padre usurário, outros grandes credores adquiriram importância na vida social, política e econômica da vila de Curitiba no século XVIII. As atividades de crédito já revelavam forte concentração de riqueza. Apenas sete, dos 275 autores de processos cobrando dívidas, responderam por 30% do total dos empréstimos.

Um deles era o capitão Miguel Rodrigues Ribas. Ele ocupou diversos cargos na Câmara de Curitiba, foi juiz e era um homem de negócios muito bem-sucedido. Possuía fazendas e investia no comércio de tropas – sabe-se, por exemplo, que em 1736 pretendia levar 200 cavalos para São Paulo. Também tinha lavras de exploração de ouro, sendo responsável por quase metade do metal mandado de Curitiba para a casa de fundição de Paranaguá. Em 1730, foi nomeado tesoureiro do cofre dos órfãos com o argumento de que, além de “homem de negócio, boa consciência”, era “sobretudo abonado”. Neste cofre eram guardados os bens dos órfãos da localidade — que também eram emprestados no mercado de crédito.

Como quem goza de confiança na praça recebe os melhores quinhões, foi Ribas o escolhido pela Câmara para gerenciar os 100 mil réis destinados à reforma da Igreja Matriz de Curitiba, em 1736. Dinheiro não lhe faltava para emprestar, e disposição não lhe faltava para cobrar: foi autor de pelo menos 30 processos reclamando dívidas não pagas. Apenas 17 deles declaravam o valor devido – e totalizavam mais de 1 conto de réis.

As múltiplas frentes de atuação do capitão, como homem público e de negócios, são exemplares para se entender a importância das operações de crédito para a elite na época. Os grandes homens de negócio costumavam ser também os grandes fornecedores de crédito, o que lhes conferia poder local para ter acesso também aos melhores cargos no governo.

Aos endividados restava se virar para arcar com o acúmulo de “fiados” que um dia vinha bater-lhes à porta. Quem sabe conseguindo um novo empréstimo?

Joacir Navarro Borges é autor da tese “Das justiças e dos litígios – a ação judiciária da Câmara de Curitiba no século XVIII (1731-1752)” (UFPR, 2009).

Saiba Mais - Bibliografia:

BLAJ, Ilana. A trama das tensões: o processo de mercantilização de São Paulo colonial (1681-1721). São Paulo: Humanitas, 2002.

FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo. O arcaísmo como projeto: mercado atlântico, sociedade agrária e elite mercantil em uma economia colonial tardia (Rio de Janeiro 1790 – 1840). Rio de Janeiro: Sette Letras, 1998.

PEREIRA, Magnus Roberto de Mello; SANTOS, Antonio César de Almeida. O poder local e a cidade – A Câmara Municipal de Curitiba – séc. XVII a XX. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 2000.

SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de. Na encruzilhada do Império – hierarquias sociais e conjunturas econômicas no Rio de Janeiro (1650-1750). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003.

WESTPHALEN, Cecília Maria. O Barão dos Campos Gerais e o comércio de tropas. Curitiba: CD Editora, 1995.

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

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