sábado, 12 de setembro de 2009

Horrorosos, atrasados, incivilizados e degenerados: os feiticeiros e curandeiros negros no periódico paulistano (1900-1930)[*1]

"O 'dr.' Velloso...". A Capital, 09/08/1915 - Acervo APESP.

Curandeiro. ICO - UH 1771 - Acervo APESP

"A feitiçaria em S. Paulo". A Capital, 18/11/1915 - Acervo APESP.


Por Henrique Sugahara Francisco
No alvorecer do século XX, a cidade de São Paulo passava por um processo de crescimento e industrialização, elevando-se, em um curto espaço de tempo, da condição de pacata vila de feição colonial para a de importante centro regional. Principal produto de exportação já por volta de 1850, o café possibilitou a acumulação interna de capital, a diversificação das atividades comerciais e manufatureiras e o prodigioso aumento da população, graças à imigração de trabalhadores livres, desencadeando um intenso movimento que rapidamente transformaria a capital paulista em metrópole industrial. Consolidadas suas funções bancária, comercial e industrial, implementou-se um conjunto de ações, do ponto de vista territorial, que levaria a cidade à referida condição de metrópole: a ferrovia, o telégrafo e o funcionamento da primeira linha de bonde criada pela Light and Power, são claros exemplos que ilustram o momento de urbanização e modernização em curso.

A população da capital paulista também cresceu com os negros recém-libertos, que vinham para a cidade desfrutar de sua liberdade; com os caipiras que, oprimidos pelo avanço das fazendas, vinham realizar pequenos serviços e vendas; e, por fim, com os imigrantes, que chegavam ao país aos milhares, com o desejo de construir uma vida melhor do que a que tinham nos seus países de origem. Este caudal de raças e culturas contribuiu para dar feição cosmopolita à metrópole que estava se gestando.

De fato, devido a este rápido crescimento populacional impulsionado principalmente por contingentes de imigrantes de procedências diversas, a cidade tornou-se pluridimensionada, com múltiplas e descompassadas temporalidades e espacialidades, acentuando antagonismos existentes e fermentando novos. Em meio a essa conturbada mudança que a cidade de São Paulo vivia, na qual se impunham novas condutas e comportamentos que soassem com a palavra “moderno”, os elementos de tradições folclóricas, práticas e crenças pertencentes ao universo religioso popular ainda persistiam. Nessa urbe paulistana, com suas múltiplas espacialidades e temporalidades, para além da racionalidade, cientificidade e modernidade ditados em virtude de seu crescimento, elementos de práticas mágico-religiosas ligados às tradições africanas, ibéricas e indígenas continuavam a persistir. Em outras palavras, existiam

formas de representação de valores simbólicos ligados a outras concepções de mundo e de vida para além da ordem racional, mecânica e dessacralizada imposta por um ideário tecnológico de cunho industrial e capitalista.[*2]

Dessa maneira, sob essa diversidade de elementos, feiticeiros, curandeiros e cartomantes exerciam suas atividades em meio à população paulistana, movendo-se pelos diversos bairros populares, buscando nesses lugares esquivar-se das ações repressivas da polícia, tais como: Brás, Mooca, Luz, Barra Funda, Santana, Cambuci e Pinheiros. Em um mercado formal que não conseguia absorver o enorme contingente populacional que continuamente chegava à capital paulista, os “empregos informais” constituíam-se no principal meio de sobrevivência[*3]. E, entre tais atividades, as práticas de magia enquadravam-se como tal meio para se viver.

Desenvolvendo suas atividades geralmente em suas residências, ou de forma institucionalizada – nos chamados “centros” –, feiticeiros e curandeiros procuravam atender às demandas dos que procuravam a magia para que se resolvesse os mais diversos problemas: para além das curas, solucionava-se também as questões ligadas a assuntos amorosos, dava-se conselhos “preciosos” e “infalíveis” aos indecisos. De mais a mais, existia um sem-número de magias, fórmulas e simpatias para se alcançar o sucesso, ajudar a obter um trabalho, resolver problemas pessoais com vizinhos ou parentes e até mesmo realizar um feitiço contra algum inimigo. Enfim, nota-se que

a crença na magia e na capacidade de produzir malefícios por meios ocultos ou sobrenaturais é bastante generalizada no Brasil desde os tempos coloniais. De acordo com a crença, certas pessoas podem usar consciente ou inconscientemente esses poderes sobre os outros para atrasar a vida, fechar caminhos, roubar amantes, produzir doenças, mortes.[*4]

Desse modo, os anseios e aflições dos que procuravam a magia eram projetadas sobre feiticeiros, curandeiros e cartomantes. Ou seja, esperava-se destes que, em meio ao vazio deixado pelo ambiente hostil da cidade de São Paulo, como detentores do poder de contato com o sobrenatural, pudessem intervir no destino, por vezes não muito promissor, de seus consulentes[*5]: é o poder desses praticantes da magia em atuar diretamente no cotidiano, mudar os rumos da vida de qualquer pessoa, podendo melhorá-la ou, ao contrário, desgraçá-la a qualquer instante. Assim,

Inofensivas donas-de-casa, recendendo a cebola e o alho, transformam-se em pitonisas e curandeiras; ‘negros de carapinha domesticada’ transvestem-se em manipuladores do sagrado e do feitiço, com poder suficiente para desarranjar as vidas de quem os conhece e dos que os perseguem, deixando para trás uma materialidade incômoda, na forma de talismãs anexados como prova processual, carregados de maná, que as autoridades judiciárias não ousam nem ao menos tocar.[*6]

Entretanto, tais práticas não eram vistas com bons olhos pelas elites republicanas. Desde meados do século XIX, os ideais de modernização, civilização e progresso, advindos das sociedades européias, permeiam o imaginário dessas elites: desejava-se uma São Paulo igualmente “europeizada”. Com efeito, valores como racionalismo e cientificidade eram muito prezados pelos que possuíam o afã de ver a capital paulista – junto com o resto do Brasil, obviamente – ingressando no concerto dos países evoluídos. Nesse aspecto, as práticas mágicas de feiticeiros, curandeiros e cartomantes, originárias de tradições iletradas, constituíam-se em símbolos do atraso, ignorância e superstição. Iniciou-se, dessa maneira, um processo que procurava excluir aqueles que praticavam os rituais mágicos de cunho popular, através das autoridades policiais, junto com os fiscais do Serviço Sanitário. Assim,

As crenças e práticas culturais tradicionais dos diversos grupos de atores sociais que estavam se fixando na cidade de São Paulo configuravam-se, cada vez mais, aos olhos das elites dominantes, como símbolos do ‘atraso’, da ‘ignorância’, como sinais da ‘degeneração’ social da população paulistana, enfim, arcaísmos que desqualificavam a sociedade brasileira e a urbe paulistana diante das nações modernas e civilizadas.[*7]

Neste contexto de repressão às práticas mágicas populares, a imprensa também possuía seu papel: orientava o público leitor para que não caísse nas mãos dessa caterva de feiticeiros, curandeiros e cartomantes. E isso era necessário, pois, de modo geral, a população paulistana, assim como de todo o resto do país, segundo boa parte dos jornais, caracterizava-se por sua “ignorância”, supersticiosidade e “espírito fraco”, afinal, conforme noticia A Capital:

Senhoras fracas, moças inexperientes, homens e rapazes doentios são explorados nesses templos de feitiçaria e cartomancia, onde pythonisas gananciosas bem caro vendem seus oraculos.
Uma miséria![*8]

Com efeito, uma boa parte dos jornais denunciava inúmeros casos de práticas de feitiçaria ou curandeirismo, alertando a polícia para que esta as repreenda. Os médicos e sanitaristas publicam obras reprovando as crenças em curas desse gênero, além de circularem relatórios que mapeavam os lugares em que os curandeiros faziam-se presentes em grande número. Aos olhos da cultura letrada, esses comportamentos, além de obstruírem a modernização de São Paulo, também constituir-se-iam em charlatanismo e exploração das “crendices” populares.

Os feiticeiros e curandeiros negros constituíam-se em um dos alvos do jornal, passando por um processo de desqualificação e possuindo, assim, uma imagem negativa frente ao público leitor. Num momento em que a ciência começava a intervir com autoridade em todos os aspectos da sociedade, a questão da raça ocupara o pensamento de médicos higienistas e cientistas, na virada do século XIX para o XX. Influenciado pelo evolucionismo e pela teoria de seleção natural de Charles Darwin, o discurso científico aceitou prontamente a teoria darwinista, aplicando-o à sociedade e

reforçando definitivamente a idéia de que alguns povos têm “sangue” limpo – isto é, apresentam características físicas e mentais adequadas à civilização – e outras não. Caberia a esses a subserviência ou mesmo o desaparecimento.[*9]

Nessa óptica, o negro passou a ser visto como ser inferior ao branco na escala da evolução, componente de uma raça degenerada. Com efeito, devido a essa inferioridade, num contexto em que se procurava modernizar o país, a presença de tradições, práticas e crenças africanas, aos olhos da elite republicana, constituíam-se em “atraso”, “selvageria” e “barbarismo”, representando um grande obstáculo à civilização, denegrindo a imagem do país frente à moderna sociedade européia. Com efeito, imbuída por esse discurso cientificista, a imprensa desqualificava as práticas mágico-religiosas de feiticeiros negros, bem como seus praticantes.

Em primeiro lugar, o horror perante a presença da propalada inferioridade da cultura africana em solo brasileiro, bem como um profundo lamento ao se constatar este fato, é algo presente nas notícias do jornal: no dia 18 de novembro de 1915, A Capital narra um caso ocorrido com Maria Augusta, mulata, cozinheira de profissão. Certa feita, a mesma começara a passar mal, sentindo cólicas intestinais e fortes febres. Para curar a enfermidade, foi chamado o ex-escravo e feiticeiro Alexandre José Balduino, “afamado nas rodas fulastras dos negros paulistanos”[*10]. Antes de começar a narrar o fato, o jornal, ao comparar a situação de curandeiros, feiticeiros e cartomantes de Paris – o “modelo de civilização” que se pretendia seguir – com a dos brasileiros, ridiculariza, de forma irônica, as crenças e rituais religiosos afro-brasileiros, lastimando-se pela sua presença:

Feiticeiros, porém, negros de carapinha cosmeticada, dansando ao redor de um pobre Christo de latão, mergulhado num caneco de espirito de vinho com arruda ou carobinha, é privilegio nosso, que temos nas veias um pouco do sangue dos tocadores do congo, e muito dos costumes dos homens de yatagan recurvado, lá das bandas de Benguela! [grifo nosso][*11]

Em outra passagem, a notícia continua a desqualificar as tradições religiosas afro-brasileiras, procurando reforçar ao leitor a imagem de um ritual todo cercado de mistérios e que apenas traz o mal:

(...) feiticeiros operam, fazem magia negra, mettem alfinetes nos corações duros das mocinhas, e, em meio de um circulo negro, no passo de um samba macabro, desfiam rosarios, e preferem orações kabalisticas, capazes de gerar o terror em muito homem de revólver á cinta.[*12]

Mas passemos para o que aconteceu com Maria Augusta, segundo o jornal. Balduino a examinou, constatando que a mesma fora enfeitiçada, tendo no estômago não um molho de cabelos, mas uma cabeleira inteira. Ao que se narra, o feiticeiro, pelo fato da cura moléstia ser difícil e demorada, preferiu transferir-se para um quarto próximo à casa da enferma, localizada na rua Major Diogo, número 170, a fim de tratá-la melhor nesse local. Em seguida, o jornal baseia-se, para detalhar o procedimento do ritual de cura, no preto Theodoro Soares, “homem mettido a esperto, cheio de metaphoras, pernostico como um soberbo mina da terra de S. Cruz”[*13], que, suspeitando de Balduino, espiou o que se passava no quarto. O aspecto tenebroso do ritual é assim narrado:

Espiou e viu, Balduino com a cabeça envolta num grande lenço branco, a dansar como um bugio ao redor de um Christo amarello, de latão, com os pés mergulhados numa infusão de pinga com caroba e cipó cruz, como si o martyr do Calvario fosse um gigolot aposentado por successivas contaminações syphiliticas, ao mesmo tempo que o seu alcolyto João Antonio Moreira fazia cafunés na cabeça de um pardo Santo Antonio de barro...
As contas de um rosario colossal, contas do tamanho de um limão gallego, produziam um rumor diabólico [grifo nosso], servindo do acompanhamento in pizzicato para o canto sombrio [grifo nosso], dos dois feiticeiros.[*14]

Infelizmente não podemos saber se os adjetivos pejorativos, tais como “diabólico” e “sombrio”, saem da boca de Theodoro Soares, em seu depoimento à redação do jornal, ou se são de responsabilidade do periódico. Mas o que importa aqui é o fato de que, independentemente do autor das palavras citadas, A Capital, ao utilizar tais adjetivos em sua notícia, objetiva apresentar ao leitor o quanto são confusos e sombrios os rituais mágicos advindos dessas tradições iletradas e atrasadas, constituindo-se em um amontoado de ações destituídas de qualquer sentido.

Enfim, o desfecho: ao que parece, Maria Augusta, logo no início do ritual mágico, teria desfalecido, além da tal cabeleira do estômago crescer mais e mais, à medida que Balduino rezava. E, Theodoro, ao presenciar aquela cena, teria ficado de olhos arregalados e “cabellos arrepiados, tanto quanto póde arrepiar um espesso pichaim”[*15], correndo para avisar o delegado Cornelio França, que prendeu os feiticeiros. Em seguida, a enferma, ainda desfalecida, foi removida para a Santa Casa. A Capital encerra reforçando o aspecto horrendo e sinistro do ritual:

Mario Alves [outro ajudante de Balduino], um pedaço de homem de metro e noventa, tambem preso, encarregado de “fazer a cruz”, isto é, ficar, em meio do quarto, de braços abertos, de olhos fitos nos olhos da enferma, acompanhando, a meia voz, as recitações de Balduino, uma especie de rabecão para o conjuncto... sinistro.
Calcule-se que quadro horrível [grifo nosso]: Maria Augusta, magnetizada pelo gigantesco Mario Alves, a ouvir o Balduino a depurar o Christo com caroba, etc., e a ver Moreira a matar piolhos na cabeça de Santo Antonio, tudo isso em quanto a cabelleira crescia no estomago como um sapesal endiabrado.[*16]

Sintetizemos, então, as idéias contidas nesta notícia: um feiticeiro negro se utiliza de seu conjunto de crenças e práticas inferiores, que obstaculizam a caminhada do País rumo à civilização, para curar uma pobre moça ingênua, atrevendo-se, assim, a passar por cima da ciência médica oficial que estava se impondo na sociedade – aliás, o próprio insucesso da tentativa de resolver o problema da enferma mostra tal inferioridade das tradições afro. De mais a mais, utiliza-se de um conjunto confuso e bagunçado de práticas mágicas, sem qualquer ordenamento, tornando o ritual algo tenebroso, horrendo e diabólico, desacatando inclusive a sagrada fé cristã, visto que, no ritual, houve a profanação da imagem de Jesus Cristo. Ritual tão sinistro, por sinal, que fez até um outro negro – Theodoro –, se arrepiar diante daquela cena. Negro esse, aliás, que se acha esperto, tentando negar assim a sua inferioridade, além de possuir, devido ao seu próprio aspecto degenerado enquanto raça, uma aparência física não muito agradável, igualmente inferior ao do homem branco – haja vista o seu “espesso pichaim”.

O aspecto físico horrendo do feiticeiro negro, e também do mulato, além do mais, igualmente é algo que aparece nas notícias, afirmando, assim, sua condição de degenerado. Antonio Joaquim Velloso, ou “dr.” Velloso, curandeiro e feiticeiro, morador da rua Almirante Barroso, número 76, dava “consultas médicas” e receitas à base de raízes de carobá, cipó cruz, perna de rato e alecrim, mediante quantia de 10$000, por exemplo, na primeira notícia que o acusa de exercício ilegal da medicina, é caracterizado como um “mulato escuro, puxando de perto ás carapinhas e ao nariz caracteristico dos bons filhos do Zambeze”[*17], além de ser “preto como urubú, manhoso como raposa”[*18]. Com efeito, podemos notar que o tom da pele e as características físicas do negro africano, afirmando assim sua fealdade, também são utilizados como elementos que procuram comprovar a inferioridade da raça e, consequentemente, das práticas mágicas dos feiticeiros e curandeiros negros.

Junto com a fealdade, e talvez reforçando-a, vem o adjetivo pejorativo de maltrapilhos, sujos e de hábitos incivilizados, conforme se constata na notícia “O ‘Deus Novo’ na pessôa de um preto azeviche”[*19], veiculada n’A Capital. Nesta, conta-se um fato inusitado, ocorrido na cidade de Mogi-Mirim: um feiticeiro negro, vindo de longa viagem, chega a este pequeno município do interior paulista, hospedando-se em um restaurante e causando uma “verdadeira romaria de pessoas de outras localidades”[*20]. O “Preto Santo” – assim o jornal trata o feiticeiro –, dizia possuir 299 anos, ter sido pagem de Dom Pedro I, além de ter encarnado em seu corpo o espírito de São Serafim, fato que lhe permitia curar qualquer tipo de moléstia. Assim, “cegos, mudos, paralyiticos tornam se sãos e fortes ante a sua acção sobrenatura”[*21]. E, para aumentar o seu poder de cura, o mesmo ainda, segundo se noticia, utilizar-se-ia de pó de enxofre moído e um outro pó vermelho. Conforme atesta o jornal, o “santo” não cobrava pelas suas consultas – o que não impede ser estigmatizado como charlatão pelo mesmo –, mas, ao que parece, dois “auxiliares” seus, Alfredo Perú e Pinto Coelho, cumpriam a função de arrecadar dinheiro, bem como organizar a imensa fila que se formava da seguinte maneira: o “santo” ficava em um quarto escuro, aparecendo apenas aos seus consulentes. Mediante o pagamento, estes poderiam entrar e solicitar os serviços de cura.

Ao detalhar a vida do “santo”, o jornal afirma que “o negro é asqueroso, anda descalço, maltrapilho.”[*22], além de constituir-se em um “misero preto, senil e boçal”[*23] e “velho decrépito”[*24]. Dessa maneira, as notícias sobre o tal “santo” procuram atestar sua inferioridade, pois, além de sua fealdade “característica de sua raça”, o mesmo andaria esfarrapado – reforçando ainda mais seu aspecto asqueroso –, o que significa não possuir hábitos mínimos de higiene, algo grave em um período no qual a ciência médica oficial propunha exatamente uma higienização do cotidiano, em todos os âmbitos da vida. De mais a mais, tal inferioridade não é apenas física, mas também mental: sua senilidade e decrepitude o tornam um ser de incapacidade e fragilidade tal, que nem possui o pleno domínio das faculdades mentais.

Por fim, o “comportamento incivilizado” constitui-se em uma característica que o jornal procura atribuir aos feiticeiros e curandeiros negros. Tal falta de comportamento diz respeito principalmente aos seus excessos, nomeadamente o vício do álcool. O próprio “Preto Santo”, segundo afirma A Capital, alimentava-se “de 1$000 de enxofre e uma garrafa de alcool diariamente”[*25]. Um outro feiticeiro, Alfredo Martins, dizia possuir o dom, dado por Cristo, de curar milagrosamente, mediante 5$000 réis, além de benzer qualquer um por 200 réis. O jornal A Capital, ao noticiar sobre Martins, afirma que

Esse preto, que se chama Alfredo Martins, costuma visitar as casas de familias supersticiosas no desempenho do seu criminoso mister.
Hontem, esteve á rua S. João, 249.
Ia bebedo [grifo nosso].[*26]

O excesso do álcool também era condenado pelo discurso médico científico, visto que possui o terrível efeito de fazer o homem perder a racionalidade, podendo levar ao estado de loucura. Em outras palavras,

o homem, sem o “freio moral da razão”, tornava-se um “ente abjecto e torpe”, modo de pensar tanto mais verdadeiro quanto essa moral baseava-se na disciplina, na constância, na sobriedade, na subordinação a todos os valores considerados imprescindíveis nesse momento decisivo pelo qual o país passava.[*27]

Desse modo, o periódico procura estigmatizar os feiticeiros e curandeiros negros também como viciados, propensos à perda da racionalidade, em consonância com o discurso médico. Afinal, em um momento no qual se procurava civilizar o País, o elemento racional tornava-se algo imprescindível para o progresso.

Atrasados, ignorantes, degenerados, feios, sujos, maltrapilhos, incivilizados e beberrões: enfim, são essas, pelo que podemos notar, as características atribuídas aos praticantes de magia negros ou mulatos. Considerados também como charlatões, os mesmos passam por um processo de desqualificação nos jornais um tanto quanto peculiar: sua inferioridade de raça é continuamente ressaltada para que, assim, caiam em descrédito frente ao público leitor que ainda insistia em procurar por feiticeiros e curandeiros negros para resolver seus problemas.

Palavras-chave: Imprensa, Religiosidade popular, práticas mágicas, São Paulo, Modernização.
Bibliografia

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Revista Histórica - Arquivo Público do Estado de São Paulo

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