quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Apóstolos do Brasil


Apóstolos do Brasil

CECÍLIA PRADA

A coincidência em 1997 de duas efemérides - 300 anos da morte do padre Antônio Vieira e 400 anos da do padre José de Anchieta - propicia um olhar mais demorado sobre o papel que a Companhia de Jesus teve na colonização do Brasil e incita-nos a rememorar a vida e a obra dessas duas figuras importantes da literatura e da história pátria.

As circunstâncias do cotidiano da colonização - uma árdua luta contra a natureza selvagem e os costumes dos índios, para que se instaurasse no Novo Mundo o reino cristão da civilização ibérica - traçam para ambos esses homens um pedestal comum, fornecido pelo mesmo treinamento ignaciano que enquadrava a Igreja Católica num militarismo rígido, necessário ao grande empreendimento da Contra-Reforma. "Soldados de Cristo", os jesuítas desde os primórdios do século 16 trouxeram literalmente a cruz e a espada para as colônias da América, não hesitando em brandi-las contra os "selvagens" e os "hereges" protestantes que ameaçavam a consolidação dos interesses portugueses e espanhóis e a integridade das consciências com o livre-exame e a nova cultura da Renascença.

A pergunta que muitas vezes ocorre a todos os estudiosos do período colonial é esta: o que teria acontecido com o Brasil, se os holandeses e os franceses não tivessem sido rechaçados?

Os que lamentam simplesmente esse fato, suspirando por uma América Latina à semelhança da do norte, dotada de um capitalismo seguro e de desenvolvimento econômico e cultural superior, esquecem que já desde o início os países de colonização ibérica - principalmente o Brasil - foram marcados por contradições específicas, choque de culturas várias, uma gama maior de influências. E que nenhum grande grupo cultural uniforme para aqui se transplantou, à semelhança dos pilgrims norte-americanos. A sociedade colonial brasileira não foi simplesmente uma cultura de transplante. Mas sim de elaboração, de integração, de luta renhida, de dominação grosseira, estabelecida por uma verdadeira ralé de aventureiros e deportados - a colônia foi, desde os primórdios, terra de ninguém, porque de todos, e de degredo.

Nesse contexto, os padres da Companhia de Jesus - e principalmente Anchieta e Vieira - representaram um elemento de união e foram costurando o tecido da nacionalidade com a sua visão do mundo, o dogmatismo ferrenho de um catolicismo renitentemente medieval, mas que contribuiu para a manutenção de um imenso território, sujeito a um único rei, com a mesma língua - integrando os elementos autóctones, como o tupi-guarani, e concretamente ampliando, com sua obra missionária, os limites territoriais.

Padre José

O elemento que ressalta, na iconografia de Anchieta, é uma extrema fragilidade física aliada a um espírito forte. Pequeno e magro, doente, corcunda, arrancado a custo da tuberculose que contraíra exagerando o ascetismo e as devoções, José de Anchieta parece nos encarar até hoje, do fundo dos tempos, com o olhar determinado do solitário e do fanático. Figura velada por imensa humildade, obediência cega aos ditames da religião, da Companhia, místico, bondoso, um "santo" - mas, estudada mais profundamente, marcada pela contradição entre o pensar e o agir, homem do seu tempo, da sua ideologia.

Nenhum retrato melhor dele do que o feito em 1582 por Diogo Flores Valdez, comandante de um navio espanhol atracado no Rio, e a quem Anchieta suplicara que soltasse um prisioneiro. Valdez ordenou: "Solte-se logo e faça-se como o padre Anchieta manda. Porque Deus nunca queira que eu deixe de fazer o que ele me mandar, porque a primeira vez que o vi, nunca coisa mais abjeta e desprezível se me apresentou, porém depois, olhando bem para ele, nunca em presença de alguma majestade me senti mais apoucado do que diante dele..."

Nascido em 1534 na ilha de Tenerife, território espanhol, ao ingressar como noviço da Companhia de Jesus em Coimbra - onde fora estudar - assumiu a nacionalidade portuguesa. Seu único ideal na vida era o martírio e seu grande patrono foi São Francisco Xavier, mártir na China. A vinda para uma terra selvagem, povoada por índios antropófagos, era o desafio que o fascinava - dar a vida pela "conversão do Brasil". A coragem que mostrou sempre, diante da ferocidade dos índios e dos perigos de toda sorte, não era nada para aquele jovem que suplicava diariamente a Deus que o deixasse morrer pela fé.

Para seu grande desgosto, Deus não o atendeu. Ao sentir-se próximo da morte, aos 63 anos, já recolhido à aldeia indígena de Reritiba, ainda planejava acompanhar os outros padres em "alguma entrada pelo sertão... pois se não mereço por outra via ser mártir, ao menos me ache a morte desamparado, em alguma destas montanhas, onde possa dar a minha alma em favor dos meus irmãos..."

Para tanta abnegação, para tanto amor real, inegável, pelos índios que ajudou a aldear e manter em estado "civilizado", e que o consideravam um pai, contrapõem-se entretanto, na biografia de Anchieta, numerosos exemplos de atitudes e idéias aderentes ao máximo à política luso-hispânica de dominação, levada a efeito pela Companhia de Jesus. Não hesita mesmo, nas cartas aos superiores, em pedir que el-rei mande homens e armas para acabar com os índios, posto que "são gente tão indômita e bestial que somente será resolvido o problema do índio quando se acabar com ele"...

Nas suas cartas estão registradas cenas do cotidiano da aldeia paulista, onde se pode ver que o índio bom era somente aquele que obedecia, muitas vezes a chicotadas, aos padres, e a eles servia, levando a sujeição ao extremo de adotar vida casta, com matrimônio cristão. No fanatismo de salvarem as suas almas, os bons padres consideravam obra benemérita separar os meninos índios das famílias e orgulhavam-se de que muitos deles "nem mostravam mais desejo de falar com a mãe". Aos rebeldes, aos fugitivos, uma verdadeira caçada, a pena do chicote e da tortura.

Mas inegavelmente é à personalidade de Anchieta, forte, inquebrantável, que devemos a fundação de São Paulo. Já em 1563, dizia o padre Diogo Laynez, geral da Companhia, que "desde o dia da fundação até 1560 e por mais três anos ainda, o colégio (núcleo da povoação) pode-se dizer que não foi senão Anchieta". À tarefa do ensino juntou o papel de líder da comunidade, realizando os mais variados misteres, curando os doentes, ensinando carpintaria, marcenaria, empreitando obras, organizando a resistência armada contra ataques de índios selvagens.

Desempenhando também papel relevante na fundação do Rio de Janeiro e de numerosos núcleos populacionais - como a atual cidade de Anchieta, no Espírito Santo -, fundando e visitando colégios em todo o país, Anchieta é figura de maior relevo nos primórdios de nossa civilização.

Antônio Vieira

Como José de Anchieta, um século mais tarde outro noviço da Companhia, Antônio Vieira, faria voto de consagrar sua vida à evangelização dos silvícolas brasileiros. Mas, à diferença daquele, por ordem dos superiores daria rumo diverso à sua carreira eclesiástica, mergulhando fundo na filosofia e tornando-se elemento de suma importância na alta diplomacia da corte portuguesa de dom João IV, mas servindo sempre aos interesses da sua congregação e da Igreja. Pôde, no entanto, em sua longa vida conciliar o brilho da vida intelectual com a prática missionária, homem de pensamento, luminar da oratória barroca, mas também homem de ação.

Nascido em 1608 em Lisboa e morto na Bahia em 1697, veio com os pais para o Brasil com oito anos de idade e aqui passou mais de 50 dos 89 anos que viveu. Teve uma vida extremamente aventurosa, marcada por mil perigos - naufrágios, perseguições políticas e de caráter religioso, condenações e encarceramento. Os temas ousados que abordava em seus sermões, defendendo a causa dos índios, indignando-se contra o tratamento dado aos escravos ou defendendo os judeus, marcaram longas lutas, tanto com os colonizadores do Brasil como com a temível Inquisição. O pior período foi o que passou preso em Lisboa (1665-67), por ordem desta (ver artigo do professor Alfredo Bosi, abaixo).

Em 1681 regressa definitivamente ao Brasil e, enquanto a Inquisição o faz queimar em efígie, em Coimbra, recolhe-se à Quinta do Tanque, na Bahia, escrevendo novos livros e editando seus sermões, e ali falece, em 18 de julho de 1697.

À sombra da roupeta

A cultura humanística da Companhia de Jesus, transplantada para a colônia no ensino, e o talento literário de Anchieta e Vieira marcam os primórdios da nossa literatura. Como diz Jamil Almansur Haddad, "a literatura brasileira nasceu associada à pedagogia jesuítica e a sombra da roupeta prosseguiu estendida sobre a nossa literatura e foi essencial na evolução do nosso pensamento".

Um ou dois anos após a chegada ao Brasil, Anchieta já escrevia uma Gramática da língua mais usada no Brasil (o abanheenga, língua tronco do tupi), para facilitar a comunicação entre missionários e índios. Segundo o historiador padre Hélio Viotti, "na opinião dos mestres de hoje, sua gramática é a melhor de todas as que se escreveram nos tempos coloniais e a que mais corresponde às exigências científicas modernas".

Nos autos compostos ora em português ora em tupi, Anchieta seguia a tradição do teatro medieval religioso e procurava instruir na fé os curumins. Dos seus oito autos, o mais importante é Na Festa de São Lourenço, de 1583. Mas é na poesia que revela suas elhores qualidades, principalmente no grande Poema à Virgem, em versos latinos, que começou a escrever nas areias da praia de Iperoí em 1563 - quando era prisioneiro dos índios tamoios, antropófagos (ver texto abaixo).

Da maior importância é também o Anchieta cronista e historiador do seu tempo. Nas cartas que durante 40 anos escreveu aos superiores e em outros escritos sobre a Capitania de São Vicente, ele nos traça um quadro completo dos costumes, dos episódios históricos, e nos dá uma descrição detalhada até da flora e da fauna brasileiras. A Academia Brasileira de Letras publicou em 1933 um volume que abrange todos esses escritos - Cartas, informações, fragmentos históricos e sermões.

Quanto a Vieira, seu estilo brilhante até hoje traça normas do bem escrever e falar. Sua oratória é o triunfo do barroco e ao mesmo tempo o reflexo do cotidiano colonial. O Sermão da Sexagésima, proferido em 1655 na Capela Real de Lisboa, é considerado leitura obrigatória para estudantes de letras. Nele o orador identifica o estilo, o ritmo e a unidade de assunto-texto, definindo que a voz do orador deve ser "um trovão do céu que assombre e faça temer o mundo."

Igualmente célebres são o Sermão a Favor das Armas Portuguesas contra as de Holanda (Bahia, 1634), em que ousa apostrofar o Senhor - "Por que dormes, Senhor?" -, por permitir vitórias de hereges em terras católicas, e o Da Primeira Dominga da Quaresma (Maranhão, 1653), em que tenta persuadir os colonos a libertarem os indígenas, "porque melhor é sustentar-se do suor próprio que do sangue alheio. Ah! fazendas do Maranhão, que se esses mantos e essas capas se torceram, haviam de lançar sangue!"

O seu empenho a favor dos índios não ficou em palavras. Em 1654 viaja para a Corte e exerce pressão sobre o rei dom João IV até que este, um ano mais tarde, proíba a escravização dos nativos. Empenhado também em denunciar os abusos da escravidão negra, no Sermão XIV do Rosário, dirigido aos próprios escravos, equipara os seus sofrimentos aos de Cristo e chama de "doce inferno" a vida nos engenhos de açúcar. Mas, homem do seu tempo e obediente à ideologia vigente, habilmente tempera a denúncia com a exortação ao "sofrimento paciente", visando ao gozo na vida eterna...

É a Alfredo Bosi, crítico literário e professor da Universidade de São Paulo (USP), que devemos a avaliação do talento de Vieira. Em História concisa da literatura brasileira, Bosi assim se refere ao mestre barroco: "Existe um Vieira brasileiro, um Vieira português e um Vieira europeu, e essa riqueza de dimensões deve-se não apenas ao caráter supranacional da Companhia de Jesus, que ele tão bem encarnou, como à sua estatura humana, em que não me parece exagero reconhecer traços de gênio".


Amor sublimado

A inspiração para o mais importante poema de José de Anchieta, extensa obra mística em latim e que constituiu o primeiro documento poético da literatura brasileira - "De beata virgine dei matre Maria" -, nasceu, conforme ele mesmo conta, de um grande esforço de sublimação sexual.

Em 1563, refém em Iperoí (Ubatuba) dos antropófagos tamoios durante quatro meses, Anchieta, primeiro com Manuel da Nóbrega e depois sozinho, enfrentou perigos terríveis e escapou três ou quatro vezes da carnificina - principalmente por ser considerado pelos índios como "feiticeiro". O próprio ritual devocional dos jesuítas, a concentração que conseguiam obter nas preces e na celebração do sacrifício da missa passavam aos índios a idéia de que devia ser grande o poder daqueles homens que falavam diretamente com Deus. Além disso, testemunhas desses tempos narram como o "santo" fora visto elevar-se do chão durante a prece, na choupana do próprio cacique, causando assim grande temor aos índios.

Mas se a própria sede de martírio que trazia ao vir para o Brasil dava-lhe coragem para expor-se de tal maneira, outra tentação, muito pior, a seu ver, ia consumindo suas forças morais: a do pecado carnal. Rodeado constantemente de índias nuas, oferecidas naturalmente aos viajantes por desejo próprio e também pela obrigação tribal de hospitalidade, o missionário considerava esta "a pior provação" - como ele próprio contaria, mais tarde, em cartas aos superiores. Serviram-lhe de escudo para resistir ao poder da mulher duas coisas: o treinamento mental fornecido pelos exercícios espirituais de Loyola, que metodicamente induzem o praticante a visões aterradoras do castigo divino, e a devoção extraordinária à Virgem Maria - a "outra mulher", a Mãe, a Puríssima, a Indesejável.

Passeando pela praia, o missionário de 29 anos substituía assim a visão das índias nuas pela da Puríssima Conceição e ia escrevendo na areia versos requintados, maneiristas, que depois memorizava - e que dois anos mais tarde organizaria e publicaria.

Às vésperas da canonização

Em alguma curva do labirinto burocrático do Vaticano, transitam documentos que podem resultar numa boa notícia para os católicos brasileiros: a canonização de José de Anchieta. Se os argumentos contidos no processo convencerem a Santa Sé, Anchieta, que já foi beatificado, pode se tornar o primeiro santo que viveu no Brasil.

Mas o fato que pode decidir essa questão não diz respeito propriamente a atitudes do missionário durante sua vida. Segundo o padre jesuíta Roque Schneider, vice-postulador da causa de Anchieta, só recentemente surgiu algo que pode se encaixar nas exigências do Vaticano para a canonização: "um milagre forte, autêntico e definitivo" atribuído à fé no beato Anchieta.

A beneficiada pelo milagre teria sido Maria Auxiliadora Valiate, médica capixaba de 39 anos. Ela teria nascido sem um osso do tornozelo direito. Após envolver no local uma relíquia de Anchieta – um pedaço de pano que passou certo tempo em contato com um osso do beato preservado no Pátio do Colégio, em São Paulo – e rezar 45 dias, o osso teria aparecido de repente, de maneira inexplicável.

Como vice-postulador, Schneider recolheu todos os dados relativos ao suposto milagre e os enviou ao jesuíta Paolo Molinari, postulador dessa e de outras causas no Vaticano. O protocolo é extenso: o processo é rigorosamente examinado por uma comissão, com direito a testemunhas, perícias e evidências. Passa também pelas mãos de uma pessoa cuja função é encontrar defeitos na postulação e no candidato: o advogado do diabo.

Um dos argumentos já levantados contra a canonização é o registro de uma passagem da vida de Anchieta. Um condenado a enforcamento teria sobrevivido dramaticamente às tentativas de executá-lo, por incompetência do carrasco. Anchieta então, por misericórdia, teria colaborado em finalizar a terrível tarefa.

O vice-postulador argumenta que a credibilidade desse relato é abalada pelo fato de seu autor ser da ordem dos franciscanos, que àquela época tinham conflitos com os jesuítas. E acha que esse fato, que "está diluído na bruma da história", não pesará na decisão do Vaticano.

Schneider, que é também diretor nacional do Apostolado da Oração, um grupo religioso que reúne 10 milhões de pessoas no Brasil, diz ter recebido de Roma sinais de que a canonização pode ser anunciada no ano 2000, como parte das comemorações dos 500 anos da colonização da América do Sul.

Vieira e o reino deste mundo

(Excerto, gentilmente cedido pelo professor Alfredo Bosi, de artigo que vai integrar livro em homenagem a Décio de Almeida Prado, a ser publicado pela Edusp)

Embora eu já conhecesse a edição exemplar que Hernani Cidade fez da defesa de Vieira perante o Santo Ofício, não pude deixar de me comover quando tive em mãos o processo original que se encontra na Torre do Tombo1. São quase 900 folhas de pergaminho, mal costuradas com fio grosso. A letra do réu é fina e se mantém clara até uma certa altura, depois começa a empastar-se.

Entrevemos o rosto do acusado ardendo em febres de malária que contraíra nas missões do Amazonas. Ouvimos a tosse do tísico já cortada nos últimos meses de cárcere por violentas hemoptises. Muitas das folhas já estão coladas, e o manuscrito parece às vezes uma só mancha informe. Mas o espírito, que sopra onde quer, não se abate nem desfalece em momento algum. Vieira insiste em provar o tempo todo aos seus inquisidores a verdade e a ortodoxia da sua leitura das trovas proféticas do sapateiro Bandarra: versos messiânicos escritos havia mais de um século em uma vila da Beira chamada Trancoso.

O processo durou de 1663 a 1667. Para defender-se Vieira redige duas longas representações. O Tribunal não se convence e o submete a exames pontuais cada vez mais apertados, aos quais o réu responde esgrimindo a sua retórica temerária que se engenha em tornar crível o impossível, provável o apenas possível, e absolutamente certo o apenas provável. Mas no fundo dessa arte ingenuamente sutil pulsava um desejo que é belo e é nobre ainda e sempre: o sonho de um reino de justiça que se realizaria cá na Terra, neste nosso mundo, e não tão-somente no outro.

Pelos autos vê-se o quanto essa utopia do réu suscitou as iras dos seus juízes. O fato é que Vieira atraíra contra si um concurso de motivações ameaçadoras. O anti-semitismo da Inquisição, de velas enfunadas nos Seiscentos, vislumbrou, com a perspicácia feroz dos perseguidores, traços judaizantes naquelas elucubrações proféticas. Era, aliás, notória a posição do nosso jesuíta em favor dos "homens de nação" desde quando interviera junto ao rei pedindo-lhe que fossem bem acolhidos em Portugal os judeus dispersos pela Europa. Deles poderiam vir recursos para financiar a Companhia das Índias Ocidentais projetada pelo mesmo Vieira. Esse é o teor da sua "proposta feita a el-rei dom João IV, em que se lhe representavam o miserável estado do reino e as necessidades que tinha de admitir os judeus mercadores que andavam por diversas partes da Europa".

Havia ainda outros motivos que explicariam a animosidade do Santo Ofício: a antipatia que os dominicanos nutriam pela Companhia de Jesus e, last but not least, a vaidade literária de um de seus pregadores, frei Domingos de Santo Tomás, ferida pelas setas do nosso orador, que traçara a sua caricatura no Sermão da Sexagésima.

Voltemos aos autos. Vieira exalta as trovas do Bandarra, erguendo-as à altura das profecias de Isaías e Daniel e dos versos dos Salmos e dos Cantares. Não contente com essa mostra de credulidade, interpreta a figura do Encoberto como alusão a dom João IV. Sucede que este rei, seu protetor, morrera em 1656. Vieira não hesitara então em escrever à rainha viúva uma carta anunciando a próxima ressurreição de dom João IV, o qual venceria os maometanos e instauraria o Quinto Império, enfim o reino de paz profetizado nas Escrituras.

Vieira operara uma substituição tática, pois o Encoberto era para os primeiros crentes do Bandarra ninguém menos que dom Sebastião, o jovem rei que desaparecera nos areais de Alcácer-Quibir. A este, sim, o povo, desconsolado com o desastre nacional, atribuía poderes messiânicos, esperanças tenazes que, passados três séculos, o nosso Euclides da Cunha ainda ouviria da boca dos sertanejos reunidos em Canudos em torno do Conselheiro.

O leitor culto dos nossos dias talvez pasme ao perceber o candor com que um homem da estatura de Vieira dissertava sobre a ressurreição próxima de um rei morto havia pouco. No entanto, esse homem é o mesmo a quem Cristina da Suécia, discípula de Descartes, escolheria para diretor espiritual nos seus anos romanos. E mais se espantará quando ler, na Defesa, a justificação do réu, que declara ter feito uma diligência (diríamos hoje uma pesquisa), a qual "sem ser tão esquisita como eu quisera, nem estar acabada, já tinha descoberto, nesses 120 últimos anos, 95 mortos ressuscitados; pois assim como ressuscitaram 95, que muito seria que fossem 96?"

O monarca redivivo fundaria o Quinto Império, que duraria mil anos, até que sobreviesse o dia do Juízo. Aqui confluem o traço mais arcaico e o mais atual do milenarismo. Vieira imagina um tempo que nunca existiu a não ser nas dobras de um desejo coletivo de felicidade. Eram saudades do futuro as que ditavam as suas esperanças.

Os inquisidores exigiram que ele falasse do reino somente em termos metafóricos. Vieira sustentou quanto pôde o sentido literal: o reino se erguerá na terra dos homens. Ao cabo de dois anos, abalado pela informação de que o papa condenara as suas proposições, retratou-se. Mesmo assim, foi proibido de pregar em Portugal. Saiu da pátria, foi viver em Roma, onde Clemente X lhe concedeu honrarias e um salvo-conduto, o breve que o livraria de novas arremetidas da Inquisição lusitana. No fim da vida, já octogenário, no refúgio baiano da Quinta do Tanque, Vieira continuou a escrever, contra tudo e contra todos, a Clavis prophetarum.

1Padre Antônio Vieira, Defesa perante o Tribunal do Santo Ofício. Introdução e notas do professor Hernani Cidade. Tomos I e II. Salvador, Livraria Progresso Ed., 1957.

Revista Problemas Brasileiros

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