Vade retro, satanás!
A difusão da prática do exorcismo na América portuguesa foi favorecida pelos rituais indígenas e africanos e pela precariedade da medicina colonial
Márcia Moisés Ribeiro
Nem sempre o diabo teve patas de bode, chifres, rabo e cheiro de enxofre. Antes abstrato e teológico, foi durante o Renascimento que ele ganhou forma nas paredes e capitéis das igrejas. O medo do diabo foi então se alastrando pelo Ocidente de uma forma jamais vista, e a partir do século XVI uma verdadeira obsessão satânica tomou conta do imaginário europeu, com um impressionante conjunto de imagens do inferno e seus horrores invadindo a Europa. Ao mesmo tempo, a cultura escrita difundia o medo do demônio tanto nas publicações populares quanto nas obras eruditas. Assim, mascates, ambulantes e afamados mágicos negociavam folhetos e brochuras ensinando como fugir das armadilhas diabólicas, enquanto teólogos e doutores da Igreja se dedicavam aos inúmeros tratados de demonologia escritos a partir dessa época.
Essa vasta literatura dedicada aos poderes diabólicos ganha impulso com os surtos de possessão demoníaca coletiva que se tornaram famosos pelo continente, principalmente na França e na Inglaterra do século XVII. Tais obras mostravam o diabo como capaz de alterar o curso dos céus e realizar tudo o mais que pudesse perturbar o natural andamento do cotidiano. Por meio dos feiticeiros – seus grandes aliados –, podia matar o gado e lançar-lhes doenças, tornar estéreis campos que antes eram férteis e ainda destruir as colheitas. Dado o imenso poder que lhe era atribuído, muitos o chamavam de “príncipe deste mundo”. Além da intervenção no curso da natureza, a ação diabólica atingia o corpo e a alma dos homens, fazendo dos sãos pessoas doentes, e dos lúcidos, espíritos imundos e perturbados.
A Igreja católica sempre ofereceu armas celestiais contra o diabo, porém foi durante a onda de satanismo do Renascimento que os meios de combate, especialmente os exorcismos, ganharam destaque. Sua origem perde-se na noite dos tempos, e diversos povos da antiguidade já se valiam desses ritos para expulsar espíritos considerados malignos. Dentre as armas desenvolvidas pela Igreja católica contra o demônio estavam as orações, o culto aos santos, as imagens miraculosas, as relíquias, a água benta e sobretudo os exorcismos, considerados o meio mais eficaz de combatê-lo.
Portugal e suas colônias também conheceram a difusão dos ritos de expulsão demoníaca, embora em escala menor que entre ingleses e franceses. Os exorcismos eram regulamentados por tratados específicos e, apesar de nenhum desses livros ser de origem lusitana, as principais obras que circulavam na Europa sobre o assunto foram traduzidas para o português. Afinal, era grande o número de indivíduos que se diziam possuídos pelo diabo e, conseqüentemente, também o de exorcistas que atuaram no império português a partir do século XVII. A função desses livros era impor regras às funções dos exorcistas, evitando assim que seu desempenho fosse confundido com rituais supersticiosos. Entretanto, as normas destinadas a regulamentá-los estiveram longe de serem obedecidas.
De acordo com os manuais de exorcismo, um dos sinais mais evidentes da possessão diabólica era o conhecimento de línguas estrangeiras sem nunca tê-las aprendido, principalmente o latim. Outros sintomas seriam a faculdade de saber de fatos que se passavam em lugares distantes, a adivinhação e a capacidade de praticar ações sobrenaturais – levitar, mover objetos sem tocá-los etc. Havia ainda outros indícios. Difundia-se a crença de que os endiabrados tinham verdadeira repugnância por objetos e imagens sagradas, que se sentiam muito incomodados durante as orações e leitura do Evangelho e que a figura do sacerdote lhes causava verdadeiro pavor.
As denúncias e processos da Inquisição movidos contra curandeiros e supostos feiticeiros mostram que, na maior parte das vezes, a procura por rituais mágicos decorria de problemas de saúde, físicos ou mentais. No universo das curas sobrenaturais, havia dois caminhos possíveis, sendo um oferecido pela Igreja e outro pelos afamados feiticeiros. No mundo colonial, marcado pela baixa condição sociocultural de seus habitantes, pela precariedade da medicina e ainda pela influência das religiões africanas e ameríndias – que também faziam uso de cerimônias de despacho dos espíritos malignos –, não é de se estranhar que as pessoas procurassem o feiticeiro antes de procurarem um exorcista. Dessa forma, só restava à Igreja intensificar a propaganda difundindo a eficácia de seus ritos.
Doenças desconhecidas, difíceis de aplacar com remédios naturais – e, portanto, suspeitas de serem causadas por feitiços –, eram normalmente as causadoras da busca por exorcismos. E, por mais estranho que pareça, a crença de que o diabo podia ser o autor das desordens corporais atingia não apenas indivíduos comuns ou homens da Igreja, mas renomados médicos, formados nas mais expressivas universidades européias. Além das tradicionais sangrias e indicações de medicamentos feitos a partir de produtos dos três reinos da natureza – mineral, vegetal e animal –, eles também defendiam os exorcismos como meio eficaz para aplacar as doenças. Muitas vezes, incapazes de compreender as leis que regiam o funcionamento do corpo e de apresentar soluções favoráveis para sua cura, os médicos acabavam se valendo das teorias da demonologia como uma espécie de “ciência auxiliar” que não só os ajudava a diagnosticar as doenças, como a justificar os limites da medicina.
A obsessão pelo satanismo é muito visível em determinados livros de medicina no século XVIII. Por mais contraditório que pareça, o século das Luzes – que defendia a razão como principal meio para trazer “luz” e conhecimento aos homens – foi marcado pela presença da magia, da demonologia, da feitiçaria e dos exorcismos. No caso de Portugal, até por volta de 1772 – quando a Universidade de Coimbra passa por uma série de reformulações – o aprendizado da medicina se fazia mediante a leitura das versões latinas dos gregos Hipócrates (c.460 a.C.-377 a.C.) e Galeno (c.131-c.200), e de seus comentadores árabes, como Avicena (980-1037) e Averróis (1126-98). Formulada pelos gregos e posteriormente ampliada por Galeno, a teoria da existência de quatro humores no organismo (sangue, fleuma, bile e bile negra, ou melancolia) vigorou na medicina de Portugal e do Brasil pelo século XVIII adentro. Para a conservação da saúde, os humores deveriam estar presentes no organismo em quantidades proporcionais e equilibradas. De acordo com esse sistema, a bile negra, ou humor melancólico, normalmente associada à noite e às trevas, era considerada o humor preferido do diabo. Se cabia aos médicos cuidar das disfunções humorais, por que não tratariam dos problemas ligados ao humor melancólico partilhando crenças comuns aos teólogos e abordando a demonologia da mesma forma que dissertavam sobre qualquer outro assunto referente à medicina?
Apesar de encontrar adeptos em diferentes setores da sociedade, os exorcismos só podiam ser realizados por indivíduos autorizados pela Igreja. Assim, além de possuir a ordem de exorcista, era imprescindível obter licença da diocese da qual o padre exorcista fizesse parte. Portando o crucifixo, estola e sobrepeliz – tal como determinado por Roma –, o exorcista começava o ritual. Inicialmente havia um interrogatório no qual o suposto endemoniado dava informações detalhadas ao religioso sobre o que se passava com ele, o que o afligia, onde doía e, enfim, o que o levara a suspeitar da presença do Maligno. Ajoelhados, os supostos endiabrados deveriam seguir todas as ordens do padre.
Os manuais de exorcismo defendiam que, durante o ritual, o religioso tinha de manter um ar sério e sisudo para melhor enfrentar o diabo, e a voz deveria soar bem alta, refletindo a superioridade da Igreja sobre os espíritos do mal. Gritos, açoites, bofetadas e cuspidelas no rosto do suposto endemoniado também faziam parte do cerimonial. De acordo com esses mesmos livros, os possessos urravam e estrebuchavam no chão, dizendo blasfêmias e palavras sem sentido. Vomitavam coisas estranhas, como penas, alfinetes e bichos peludos, enquanto o sacerdote dizia fuga satana! (fora, Satanás!) em altos brados. Quando o diabo não era eliminado com facilidade, eram necessárias várias intervenções do sacerdote.
As igrejas eram eleitas como locais mais propícios para a realização dos esconjuros. Mas, no caso de o doente estar impossibilitado de deslocar-se até o Templo Sagrado, permitia-se que fossem feitos na própria casa do enfermo ou mesmo do sacerdote – o que acabava favorecendo variadas transgressões.
Durante o século XVIII, muitos exorcistas foram denunciados ao Santo Ofício por transgredir a aplicação dos exorcismos. Os delitos cometidos iam de práticas consideradas supersticiosas até o envolvimento sexual entre os religiosos e as endemoniadas. Aproveitando-se da posição de “intermediários” entre Deus e os homens, alguns exorcistas cobravam pelos seus serviços, pediam alimentos e chegavam até mesmo a roubar objetos de valor, como jóias, dos “possessos” a quem atendiam.
A leitura dos processos da Inquisição de Lisboa confirma que as mulheres eram a maior parte da clientela. Naturalmente frágeis e propensas ao predomínio do humor melancólico – segundo as teorias médicas da época –, eram consideradas presas preferidas do diabo e capazes de gerar situações embaraçosas. Ardiloso e tentador, o demônio podia pôr tudo a perder, dominando o exorcista e induzindo-o ao pecado da carne. Apoiados, portanto, na convicção de que o “príncipe das trevas” desviava até mesmo os religiosos do bom caminho, os autores de manuais advertiam os leitores para o fato de o esconjuro de mulheres requerer imensos cuidados. Entretanto, na prática, tais advertências pouco valiam, e durante toda a época colonial os “padres diabos” continuaram cometendo toda sorte de abusos sexuais contra mulheres.
Nas primeiras décadas do século XVIII, atuava em Portugal certo frei Luís das Chagas, que tinha um modo muito peculiar de exorcizar as mulheres: “mandava deitá-las de costa e punha-se a cavalo nelas sobre o estômago (...) Metia as mãos por baixo da roupa (...) e mandava o dito padre se lhe metessem entre as pernas e se abraçassem com ele e desta forma lia os exorcismos (...) dizendo que ele fazia muitas coisas que não se achavam nos livros mas que a experiência lhe ensinava e que Deus Nosso Senhor lhas inspirava”. No Brasil, frei Luís de Nazaré, carmelita que vivia em Salvador por volta de 1730, sempre que era chamado para exorcizar mulheres, dizia que para recobrar a saúde era essencial ter relações carnais com ele.
Por tudo isso, um conjunto de instruções destinadas a regulamentar o ofício dos exorcistas, datado da década de 1770, dizia que “quando o exorcismo se fizer a alguma mulher, deverão estar presentes dois homens de idade madura e vida bem regulada e também algumas mulheres de boa vida e costumes e quanto pode ser suas parentas e não consentirá que assistam mais outros homens, só se for um eclesiástico”.
Buscando impedir tantos abusos, a Igreja toma uma série de providências, punindo com rigor aqueles que praticassem os esconjuros de forma indevida. Com pouquíssimas exceções, todas as acusações da Inquisição contra exorcistas infratores do mundo luso-brasileiro são do século XVIII. Ameaçada por uma ordem cultural mais cética que se impunha sobre o cenário europeu e ainda por setores racionalistas do próprio clero, a Inquisição portuguesa intensificou a vigilância aos exorcistas infratores.
Foi esse espírito racionalista que, nas últimas décadas do século XVIII, levou José Monteiro de Noronha – vigário-geral do Rio Negro e professor de teologia moral na catedral de Belém, no Grão-Pará – a escrever um conjunto de instruções destinadas a esclarecer sobre a falsidade de grande parte das operações sobrenaturais e manifestações diabólicas. Considerava que os culpados pela ignorância das populações eram os próprios clérigos, que costumavam acreditar em falsas manifestações de possessão diabólica. Envolto pela filosofia iluminista, e colocando-se como um autêntico defensor das ciências, atribuía a causa de tantos erros e abusos à “ignorância da física e da medicina”. Tal observação é extremamente significativa, pois mostra que na distante capitania da América alguns seguiam as mesmas idéias dos grandes vultos do pensamento ilustrado europeu. Entretanto, isso não significa que a polêmica envolvendo o tema do diabolismo e da magia, entre aqueles que defendiam o uso da razão para compreensão do mundo natural – os iluministas – e aqueles que defendiam uma visão de mundo “encantada” ou supersticiosa, tivera desfecho semelhante na América e em Portugal – onde as Luzes clarearam o horizonte em velocidade bem maior.
Na América portuguesa, a ausência da universidade – local por excelência de disseminação da cultura científica – dificultava o desenvolvimento dos novos modelos culturais e filosóficos propostos pelo Iluminismo. Paralelamente, as três etnias que formaram o Brasil somavam-se para garantir a solidez do pensamento mágico no universo colonial e sua resistência aos caminhos da razão.
Márcia Moisés Ribeiro é pesquisadora do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB/USP) e autora de A ciência dos trópicos – a arte médica no Brasil do século XVIII (Hucitec, 1997) e também de Exorcistas e demônios – demonologia e exorcismos no mundo luso-brasileiro (Campus, 2003).
Revista de Historia da Biblioteca Nacional
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ResponderExcluirNossa!!! Que interessante Eduardo, sair ainda a pouco da sala de aula, e estou ainda na escola, estava trabalhando esse tema em sala e sento aqui e entro no seu blog e olha só o tema que vc postou a pouco rsrsrs será sintonia??? rsrsrs
ResponderExcluirComo sempre, vc tem ótimos artigos pra postar.
abraços!!!
Profª Cida Gonçalves
Olá Eduardo!
ResponderExcluirÓtima época para falar de exorcismo.
Podiam exorcizar o senado federal e todos os políticos!!!
Bem, sempre achei um absurdo, quase uma ignorância esse ato. Mais ainda , vemos a Igreja lutando em ventos contrários com a Ciência.
As patologias existem e suas curas ou não são de ordem especificamente da Medicina.
O Satanismo que leva ao exorcismo, faz parte do imaginário. Se não o fizer, espero que alguém me exorcize,
Beijos
mirse