domingo, 2 de agosto de 2009

Um balanço de segregação e violência


Virgínia Fontes

O balanço histórico dos últimos 500 anos dessa terra apresenta muitos desafios e contempla muitas dificuldades. Uma das mais recorrentes é, com certeza, a desigualdade social e seu cortejo de segregações, discriminações e violência. Qualquer que seja a posição de nossos comentaristas - conservadores ou radicais - todos expõem um quadro composto por uma enorme concentração de terras, de recursos e de poderes nas mãos de poucos, ao lado de uma imensa massa cuja existência é digna de "fortes", lembrando Euclides da Cunha. Certamente, conservadores e radicais divergem nos prognósticos e motivos, mas a constatação é praticamente unânime.

Vivemos um país contraditório. Qualquer leitura crítica desses 500 anos deve ser capaz de ver os dois lados - o da produção permanente da riqueza e da desigualdade e o das lutas sociais que desafiam essa repetição, em busca de uma vida, uma política, um projeto diferente. Um ou outro lado, isolado, é ilustrativo, mas ambos tendem a subestimar o fulcro central do problema.

Ao longo desses cinco séculos contados a partir da chegada da colonização portuguesa, muitas vezes essas lutas foram silenciadas pelas armas, desde as revoltas dos indígenas, aos quilombos, aos degredados, aos que propugnavam independência, aos republicanos, aos abolicionistas, a sindicalistas, a estudantes, a trabalhadores rurais. Muitas vezes, quando tais lutas chegaram a entrever alguma possibilidade significativa de transformação, ainda que limitada, experimentamos ditaduras, como em 1937 e em 1964.

Na década de 1980, vivemos uma experiência social riquíssima, de ampla participação popular, de crescimento dos espaços de debate, de multiplicação de associações as mais diversas e de proposições, na tentativa de construir, a partir de mais uma Constituição, tanto uma legislação integradora e não-excludente, quanto uma esfera pública que se afastasse, enfim, dos interesses privados que sempre a marcaram. Enfim, uma democracia que promovesse a passos rápidos a redução das desigualdades. Onde estamos, hoje, com relação àquelas esperanças e expectativas?

Vivemos sob um Estado de Direito, ainda que não partilhemos de uma sociedade que disponha de direitos. Contamos com uma democracia institucional, mas as desigualdades se mantêm e se aprofundam; as lutas sociais que envolvem diretamente a população mais desamparada permanecem sendo desqualificadas, seja pela violência direta, pela violência simbólica, ou ainda pelo desdém e o silêncio.

No balanço histórico, evidencia-se a concentração de poder, de riqueza, de propriedade, de saber e de cultura nas mãos de poucos. A isso, corresponde uma penosa expropriação da grande massa da população, ocorrida ao longo desses 500 anos.

Avaliar esses 500 anos não é só olhar detidamente cada elemento desse nosso passado, o que é importante, mas não suficiente. Esse é nosso dever de ofício, enquanto historiadores, enquanto cientistas sociais. Não é só levar para o passado as questões de nosso presente e desbravar, através dos documentos, dos registros, das memórias entrecortadas, o percurso de nossos variados problemas e questões contemporâneas. É também procurar montar um painel vasto e claro que contraponha os dois lados dessa balança contraditória e que parecem estar separados por um fosso intransponível. É, fundamentalmente, admitir e dar voz à revolta legítima, incorporando os espaços de conflitos - os grandes criadores da história, através do embate, da exigência, da reivindicação, da organização de múltiplas maneiras. Muito mais do que uma simples "regra do jogo", espera-se de uma democracia a garantia de que todos possam - e devam - ser jogadores; espera-se a admissão aberta do conflito, através do qual as esferas da vida social, econômica e política tornem-se espaços onde as grandes maiorias expropriadas possam vir a adquirir peso nas decisões.

A lembrança ainda recente da ditadura deve nos alertar exatamente para o que significa a imposição de um modelo único, da censura e de sua interiorização, do controle contínuo sobre a vida de todos e de cada um. Mesmo sem os elementos coercitivos das ditaduras, recriaram-se, no mundo inteiro, na última década, formas de imposição de um pensamento monolítico, avassalador e que considerava que a única saída era o mercado, que a única chave de leitura do mundo era a eficiência traduzida em lucro. Para eles, a história havia acabado. Melhor dizendo, para eles, a história deveria parar ali, pois os contemplava. Se não trouxe em sua esteira ditadores caricatos, à la Chaplin, homogeneizou falas e exerceu abertamente o poderio econômico para silenciar as vozes destoantes, reintrojetando novas formas de censura. Em larga medida lastreado pela distinção de autoridades acadêmicas, reaproximou saber e poder, desqualificando a contradição e as demandas populares.

Ao olhar para os 500 anos do ponto de vista dos desafios do futuro, vale lembrar que a formulação de grandes projetos nacionais, resultantes de longas e penosas batalhas, terminaram empunhados de forma limitada, de cima para baixo, sob fortes elementos coercitivos e um enorme aparato propagandístico. Assim foi o Estado Novo, ditadura que se seguiu a um período de férteis lutas sociais nas décadas de 1920 e 30 e que incorporava, seletiva e controladamente, o operariado ignorando as lutas rurais e assegurando a perpetuação do latifúndio. No interregno democrático de 46-64 houve, de fato, o vislumbre de algo diferente, ainda que sob forte censura (nunca é demais recordar a proibição permanente da existência do partido comunista, apesar de sua atuação "tolerada"). A construção de Brasília, com o afastamento do centro do poder dos locais onde se concentrava a população, a abertura de estradas para mais uma fase de concentração da grande propriedade, agora mesclada com a grande indústria, assinala uma das faces do conflito admitido. Na outra face, as reivindicações em prol de uma incorporação política ampliada, da generalização do estatuto de trabalhador para o mundo rural, da redução das desigualdades sociais evidenciam o inadmissível, resolvido manu militari.

Enfim, para ficar em apenas alguns exemplos, os megaprojetos elaborados ao longo da ditadura militar apoiavam-se francamente na repressão direta a qualquer demanda social, deixando em seu rastro o crescimento econômico e a riqueza de alguns, a explosão da dívida externa e o deslocamento de imensas parcelas da população, desprovidas de tudo e silenciadas.

Enquanto não houver participação ampliada, redução das desigualdades sociais, admissão do conflito como lugar legítimo, incorporação efetiva das demandas populares históricas, grandiloqüentes projetos "unanimistas" apenas darão nova roupagem à reprodução das formas de dominação e de segregação social que marcam nossa história.


Virgínia Fontes é professora de História da UFF, autora, em colaboração com Sonia Mendonça, de História do Brasil Recente (Ática)

JB 500 anos

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