sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Sesmarias e posse de terras:


Sesmarias e posse de terras:
política fundiária para assegurar a colonização brasileira

Mônica Diniz
Até onde temos podido representar aquelas formas de comércio, instituições e idéias de que somos herdeiros? (Sérgio Buarque de Holanda)

Os documentos de sesmarias

Os registros de terras surgiram no Brasil logo após o estabelecimento das capitanias hereditárias, com as doações de sesmarias. Os documentos mais antigos das capitanias datam de 1534.

Esses registros de terras servem para apresentar algumas informações como o local onde as pessoas viviam; revelar informações pessoais e familiares; se a propriedade foi herdada, doada ou ocupada e quais eram seus limites; se havia trabalhadores e como era constituída a mão-de-obra; em que região ficava tal propriedade; etc.

Todas as posses e sesmarias formadas foram legitimadas em registros públicos realizados junto às paróquias locais. A Igreja, nesse período da Colônia, encontrava-se unida oficialmente ao Estado. Dessa forma, os vigários (ou párocos) das igrejas eram quem faziam os registros das terras ou certidões, como a de nascimento, de casamento, etc. Somente com a proclamação da República, em 1889, Estado e Igreja se separaram.

Desenvolveram-se, assim, os chamados registros ou escrituras de propriedade. As sesmarias foram registradas dessa forma e são exemplos de documentos cartoriais. A maioria destas cartas de sesmarias encontra-se em Arquivos Públicos. Os Arquivos Governamentais possuem coleções de cartas de doações de sesmarias e registros de terras.

É importante saber, entretanto, as datas de criação das capitanias ou Estados, para saber onde procurar. Por exemplo, os registros mais antigos de Santa Catarina e Paraná encontram-se em São Paulo, pois eram Estados unidos, que só mais tarde foram desmembrados.

Muitas cartas de doações também podem ser encontradas nos arquivos portugueses. Esses documentos auxiliam para o efeito de comprovação legal de posses e permite o estudo do sistema fundiário. Os chamados avisos régios consistem em uma espécie de recenseamento das propriedades rurais, abrangendo também as vilas.

Tais documentos demonstram como foi feito o processo de aproveitamento e doação das terras que, muitas vezes, ocorria de forma desorganizada e irregular.

Heranças portuguesas

A história territorial do Brasil tem início em Portugal, onde encontramos as origens do nosso regime de terras. A ocupação das terras brasileiras pelos capitães descobridores, em nome da Coroa, trouxe o modelo português de propriedade para o Brasil.

Em suas origens, o regime jurídico das sesmarias liga-se aos das terras comunais da época medieval, chamado de communalia.

Antigo costume da região da Península Ibérica, as terras eram lavradas nas comunidades, divididas de acordo com o número de munícipes e sorteadas entre eles, a fim de serem cultivadas.

Cada uma das partes da área dividida levava o nome de sesmo. O vocábulo sesmaria derivou-se do termo sesma, e significava 1/6 do valor estipulado para o terreno. Sesmo ou sesma também procedia do verbo sesmar (avaliar, estimar, calcular) ou, ainda, poderia significar um território que era repartido em seis lotes, nos quais, durante seis dias da semana, exceto no domingo , trabalhariam seis sesmeiros.

As sesmarias eram terrenos incultos e abandonados, entregues pela Monarquia portuguesa, desde o século XII, às pessoas que se comprometiam a colonizá-los dentro de um prazo previamente estabelecido.

A doação dessas terras encontrava motivo na necessidade que o governo lusitano tinha de povoar os muitos territórios retomados dos muçulmanos no período conhecido como Reconquista. Essa expulsão dos árabes pelos cristãos iniciou-se no século XI e terminou por volta do século XV.

Esse sistema de aquisição de terras só funcionou em regiões e épocas em que prevalecia o estado de guerra e uma baixa densidade populacional que originassem terras ociosas e com possibilidade de serem ocupadas. A partir do momento em que foi fixado o limite territorial e o Estado se fortaleceu e se reorganizou, esse processo de obtenção de terras desaparece. Porém, na Península Ibérica, as doações de sesmarias existiram até final do século XIII.

Uma sesmaria media aproximadamente 6.500m2. Esta medida vigorou em Portugal e foi transplantada para as terras portuguesas ultramar, chegando ao Brasil. Muitas dessas terras estavam sob a jurisdição eclesiástica da Ordem de Cristo e lhes eram tributárias, sujeitas ao pagamento do dízimo para a propagação da fé.

A Ordem de Cristo foi herdeira da Ordem dos Templários, uma organização formada por pessoas que eram monges e guerreiros ao mesmo tempo. De caráter religioso e militar, criada na Idade Média, esse grupo tinha o objetivo de defender os cristãos dos ataques muçulmanos. Como monges, os templários faziam voto de pobreza, obediência e castidade; como guerreiros, defendiam a fé cristã. Essa ordem surgiu no ano de 1113 e foi extinta em 1312, mas como ela vivia de vultuosas doações de terras e dinheiro concedidos pelos reis, acabou prosperando muito; de tal forma que, em Portugal, o rei D. Dinis não permitiu sua extinção. Assim, a Ordem assumiu outro nome – a Ordem de Cristo– e ajudou na consolidação da formação do território português com a expulsão dos mouros e também nas navegações.

Surgimento das sesmarias no Brasil

No contexto das descobertas marítimas, Portugal almejou ampliar suas fontes de riqueza. A obra política e comercial da colonização tinha como ponto de apoio a distribuição de terras, que se configurava como o centro da empresa, calcada sobre a agricultura, capaz de promover a cobiça das riquezas de exportação.

El-Rei concedia, às pessoas a quem doou capitanias, alguns direitos reais, levado pelo desejo de dar vigor ao regime agora organizado. Muitas dessas concessões foram feitas em nome da própria Ordem de Cristo.

A monarquia portuguesa, nessa tarefa de povoar o imenso território, encontrou nas bases de sua tradição um modelo: as sesmarias. Foram as normas jurídicas do Reino que orientaram a distribuição da terra aos colonos. A lei D. Fernando I, de 1375, pregava o retorno das terras não cultivadas para as mãos da Coroa. Essa lei foi incorporada nas Ordenações Filipinas, Manuelinas e Afonsinas.

As capitanias eram imensos tratos de terras que foram distribuídos entre fidalgos da pequena nobreza, homens de negócios, funcionários burocratas e militares. Entre os capitães que receberam donatarias, contam-se feitores, tesoureiros do reino, escudeiros reais e banqueiros.

A capitania seria um estabelecimento militar e econômico voltado para a defesa externa e para o incremento de atividades capazes de estimular o comércio português.

O capitão-mor e o governador representavam os poderes do rei como administradores e delegados, com jurisdição sobre o colono português ou estrangeiro, mas sempre católico. Aliás, esta era uma das exigências para a doação de terras.

O capitão e o general podiam fundar vilas e desenvolver o comércio. O comércio com os “gentios” era permitido apenas aos moradores da capitania, com severas penas aos infratores.

As capitanias, constituídas nas bases político-administrativas do reino, assentavam-se sobre as cartas de doações e foral.

Foi a partir de 1530 que a Coroa portuguesa empenhou-se em garantir a posse do território brasileiro, estruturando um sistema administrativo à situação do Reino na época e implementando uma modalidade econômica rentável dentro dos interesses mercantis.

Era necessário combater dois problemas que se acentuavam, naquele momento, nas terras brasileiras: a presença de franceses no litoral, o que ameaçava a soberania lusa; e a necessidade de uma compensação econômica para suprir as demandas cada vez mais insustentáveis do comércio oriental.

D. João III, o Colonizador, adotou no Brasil o sistema de capitanias. Tratava-se de uma forma de promover a ocupação da terra sem onerar a Coroa, uma vez que todos os gastos ficavam a cargo do donatário.

A primeira pessoa que teve a liberdade de distribuir terras no Brasil, inclusive sesmarias, foi Martim Afonso de Souza. A sesmaria era uma subdivisão da capitania com o objetivo de que essa terra fosse aproveitada. A ocupação da terra era baseada em um suporte mercantil lucrativo para atrair os recursos disponíveis, já que a Coroa não possuía meios de investir na colonização, consumando-se como forma de solucionar as dificuldades e promover a inserção do Brasil no antigo Sistema Colonial.

A proposta buscava incentivar a ocupação das terras e estimular a vinda de colonos. Tê-la, no início da colonização, significava mais um dever do que um direito, já que sua cessão estava condicionada ao aproveitamento e transferência da terra após um certo tempo. As sesmarias estavam regulamentadas segundo algumas ordens do Reino.

É importante lembrar que as sesmarias não eram de domínio total dos donatários ricos, mas apenas lhes tocavam as partes de terras especificadas nas cartas de doações. Os donatários se constituíram em administradores, achando-se investidos de mandatos da Coroa para doar as terras e tendo recebido a capitania com a finalidade colonizadora. Eles não tinham poderes ilimitados, não foram legitimadores nem do público nem do privado e cabia-lhes apenas cumprir as ordens de Portugal.

Na época da colonização, pode-se distinguir o direito de caráter jurídico e o poder real de usufruir. A terra continuava a ser patrimônio do Estado português. Os donatários possuíam o direito de usufruir a propriedade, mas não tinham direitos como donos. Estavam, então, submetidos à monarquia absoluta e fortemente centralizada. Os capitães-donatários detinham apenas 20% da sua capitania e eram obrigados a distribuir os 80% restantes a título de sesmarias, não conservando nenhum direito sobre as mesmas. As sesmarias não comportavam assim nenhum laço de dependência pessoal.

Mesmo tendo sido estabelecida, em princípio, a necessidade de ser cristão para se receber a terra, aqueles que se dispusessem a lavrá-la poderiam recebê-la.

As leis das sesmarias em Portugal eram muito rígidas, chegando a ter 19 artigos. Dentre eles, para termos uma idéia, encontrava-se o direito de coagir o proprietário ou quem a tivesse por qualquer outro título, a cultivar a terra mediante sanção de expropriação ou, ainda, aumentar o contingente de trabalhadores rurais, obrigando ao trabalho agrícola os ociosos, os vadios e os mendigos que pudessem oferecer mão-de-obra, entre outros. Porém, no Brasil, tais leis não chegaram a ser estabelecidas, a única exigência era mesmo o cultivo.

As cartas de Sesmarias eram documentos passados pelas autoridades para doar terras; nelas, os donatários ou governadores de províncias autorizavam ou não as doações.

A presença dos posseiros

Muitas tentativas de regularizar o sistema de sesmarias foram em vão. Exemplo disso é a obrigatoriedade do cultivo, assim como a fixação dos limites, feitas à revelia da lei e o processo de expansão territorial praticado pelos fazendeiros e pela camada de posseiros.

A Coroa enfrentava alguns problemas, por exemplo, o de implantar um sistema jurídico para promover o cultivo e assegurar a colonização. A obrigatoriedade do cultivo acabou levando à formação de novos personagens entre os sesmeiros, entre eles, a figura do posseiro.

Muitos sesmeiros preferiram arrendar suas terras a pequenos lavradores. Isto dificultava o controle de verificação do cumprimento da exigência do cultivo e da demarcação, e ainda, dificultava o controle da Coroa sobre esse sistema de distribuição de terras, o que estimulou o crescimento da figura do posseiro.

Devido a tais fatores, muitos problemas se alastraram ao longo do tempo, pois formou-se uma camada de colonos que lavravam a terra, preenchendo assim um requisito básico da colonização, o cultivo. Mas esses colonos não possuíam determinações régias referentes às sesmarias, ou seja, adquiriram a terra de forma “ilegal”, muitas vezes pagando por ela, o que não era permitido durante o sistema de doações de sesmarias, seja de aluguel ou venda.

A aceitação do posseiro na legislação sobre sesmarias nas terras brasileiras se relacionou ao esforço da Coroa em limitar o poder do sesmeiro.

O reconhecimento da posse demonstrou a ambigüidade da legislação de sesmarias. Muitos sesmeiros ocuparam grandes extensões de terras, apossando-se de terras limítrofes. Devido às irregularidades e à desordem na doação das sesmarias, havia a necessidade de elaborar-se um regimento próprio, obrigando a regularização e demarcação das terras.

O Alvará de 1795 reconhecia o posseiro e tentava reestruturar o sistema de sesmarias, na tentativa de manter para a Coroa a responsabilidade na concessão das terras devolutas.

Suspenso no ano seguinte, o Alvará nos mostra como a realidade da posse e a obrigatoriedade da demarcação e do cultivo faziam parte de uma relação conflituosa entre Coroa, fazendeiros e colonos, enfatizando o poder dos grandes donos de terras.

Em 1822, suspendeu-se a concessão de sesmarias e isso acabou por beneficiar posseiros que cultivavam a terra. O fim das sesmarias consagrou a importância social dos posseiros. Embora terminada juridicamente a concessão, não se acabou com a figura do sesmeiro. Grande fazendeiro, ele não seria derrotado pela política do Império.

A Carta de 1824 garantiu assim o direito de propriedade, sem fazer alarde aos problemas herdados das sesmarias nem às terras devolutas.

Bibliografia

AZEVEDO, Antônio C. do Amaral. Dicionário de normas, termos e conceitos históricos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
FAORO, Raymundo. Os donos do poder. Porto Alegre: Globo, 1976, v. 1.
HOLLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1992.
LIMA, Ruy Cirne. Pequena História territorial do Brasil: sesmarias e terras devolutas. São Paulo: Arquivo do Estado de São Paulo, 1991.
SILVA, Pedro. História e mistério dos Templários. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.

Revista HISTÓRICA - Arquivo Público do Estado de São Paulo

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