segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Mulheres de vida nada fácil


Índias, brancas e negras não só realizavam trabalhos domésticos como, muitas vezes, eram responsáveis pelo sustento familiar

Mary Del Priori

Ao desembarcar na então chamada Terra de Santa Cruz, os recém-chegados portugueses impressionaram-se com a beleza de nossas índias: pardas, bem dispostas, com cabelos compridos, andavam nuas, "sem vergonha alguma". As tupinambás se pintavam de tinta de jenipapo, "com muitos lavores a seu gosto [...] e põem grandes ramais de contas de toda a sorte nos pescoços e nos braços", segundo informa, em 1587, Gabriel Soares de Souza, um dos primeiros cronistas a descrever a gente do Novo Mundo. Seu cotidiano era marcado por cuidados com o corpo, com os filhos e a sobrevivência.

Sua infância era passada à sombra da mãe, com quem dividiam as tarefas diárias. Entre 15 e 25 anos recebiam um convite de casamento quando seus pais não as ofereciam a um pirata francês ou a um colono português, em troca de gêneros. Depois de casadas, acompanhavam seus maridos, carregando nas costas todos os utensílios necessários ao preparo de provisões durante as longas jornadas na mata. Quando grávidas, trabalhavam até a hora de dar à luz e depois do parto prosseguiam nas suas tarefas domésticas. Fiavam algodão, confeccionavam redes, amassavam barro para fazer vasilhames e panelas, fabricavam farinhas e vinhos, cuidavam da roça e preparavam a refeição diária.

Depois dos 40 anos, consideradas "velhas" pelos cronistas que as descreviam como "enrugadas como um pergaminho", encarregavam-se de preparar o cauim e todas as bebidas fermentadas. Se vigorosas, cabia-lhes assar o corpo dos inimigos durante o banquete antropofágico, cuja gordura escorrida era cuidadosamente acondicionada para fazer posteriormente um mingau. Essas irmãs do passado foram as responsáveis por uma série de práticas apropriadas por nossos antepassados europeus, práticas que auxiliaram em muito a sua adaptação às novas terras como as do banho de rio, dos cuidados com a higiene corporal, como o uso da folha de bananeira, da utilização da farinha de mandioca na alimentação, do sono e do sexo na rede.

A esse grupo de mulheres somou-se o das recém-chegadas portuguesas. A julgar pela documentação de época, muitas delas tinham origem humilde, viviam de suas costuras, de seu comércio, de sua horta e lavouras, faziam pão, fiavam sedas, lavavam e tingiam panos, se prostituíam. Outras tantas eram proprietárias de escravos ou casadas com funcionários da Coroa portuguesa. Desde o início da colonização, todas lutavam, de uma maneira ou de outra, pela sua manutenção e a dos seus. Um dos primeiros observadores da vida ativa e independente, com que certas mulheres conduziam seus próprios negócios, foi o francês Pyrard de Laval, em passagem pela Bahia, em 1611. Ele assim anotou em seu diário:

"Travei conhecimento e fiz amizade com outra jovem portuguesa, uma nativa do Porto, chamada Maria Mena, que dirigia uma das melhores tabernas da cidade, e não me faltava comida nem bebida, pois de tudo ela me dava quando precisava, com o conhecimento do marido, suprindo-me também de dinheiro para pagar-lhe mais tarde. Chamava-me de "meu camarada" [...] Aqui as mulheres são muito mais afáveis e migáveis para com estrangeiros do que os homens, que são de hábito excessivamente ciumentos."

Nos primórdios da colonização, havia muitas mulheres ativas, como a taberneira Maria Mena. Elas se multiplicavam, circulando sem medo de ganhar sua subsistência e acompanhando seus companheiros na lida pela sobrevivência. Entre o fim do século 17 e início do 18, contudo, a migração interna abalou fortemente a estrutura familiar de muitas mulheres na região Sudeste. O ouro, então descoberto nas Minas Gerais e em Goiás, além da guerra contra os espanhóis, obrigou muitos companheiros e maridos a partir. Vivendo com seus filhos, legítimos ou ilegítimos, acomodando sob o mesmo teto velhos genitores, escravos e, às vezes, um ou outro agregado, as mulheres não apenas sobreviviam, mas proporcionavam condições de vida afetiva e familiar para seu grupo. Para além do trabalho, sua vida quotidiana era ritmada pelas atividades em torno da igreja: festas, confissões, procissões, além das práticas domésticas, tais como rezar o terço diante do oratório e ensinar aos pequeninos as primeiras orações.

Uma parte do seu tempo era dedicada à fabricação caseira de objetos de uso diário como panos, sabão, conservas e peças de barro para a cozinha. O quintal merecia especial atenção, pois concentrava frutos e remédios na sua forma fitoterápica. Muitas mulheres conheciam os segredos das plantas para curar mazelas e doenças, tornando-se prestigiadas curandeiras em suas comunidades. Censos populacionais realizados na segunda metade do século 18 desvendam o universo dessas "deixadas para trás", viúvas, solteiras ou mulheres "do mundo". A maior parte delas dedicava-se a tarefas voltadas para o comércio local ou regional. Fabricavam caprichosamente doces, vendidos nas ruas por suas escravas, agenciavam encomendas, mercadejavam produtos secos e molhados. Algumas, mais poderosas, negociavam gado e escravos que iam buscar nas cidades litorâneas, montadas em lombo de burro e escoltadas por subalternos. Esse mesmo desembaraço encontraremos entre as mulheres do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Bahia.

E as escravas? Apesar de reduzidas à condição de coisa, privadas de todos os direitos civis, sujeitas ao domínio de seu senhor ou senhora, as africanas e suas descendentes trouxeram uma contribuição inelutável para a cultura brasileira. Para conhecê-las mais de perto, vale a pena sublinhar que o tipo de exploração econômica, baseada na grande plantação agrícola, trouxe ao Brasil um número muito maior de homens do que de mulheres africanas. Há autores que apontam a proporção de dois homens para cada mulher aqui desembarcada. O trabalho feminino era considerado menos produtivo e a vida útil da mulher, menor.

Na faina agrícola, labutavam com a foice e a enxada e, desde pequenas, semeavam, catavam ervas daninhas, enfeixavam as canas. Nos engenhos, eram encarregadas de moer as canas e cozer o melado, agrupadas, como vemos nas gravuras de época, em torno de infernais panelões de cobre. Manufaturavam o açúcar, descaroçavam algodão e descascavam mandioca, base de sua alimentação. Ocupavam-se das tarefas domésticas na Casa Grande, onde cozinhavam, lavavam, coziam e arrumavam, assim como na senzala, onde se responsabilizavam pela manutenção de maridos, companheiros ou filhos. Também na senzala, algumas delas, graças aos inúmeros conhecimentos transmitidos oralmente - o chamado "saber fazer" -, tornavam-se parteiras, benzedeiras e temidas feiticeiras.

Nos centros urbanos, as escravas se destacaram no pequeno comércio de varejo. Novidade para elas? Não. Nas sociedades tradicionais africanas, as mulheres eram encarregadas das tarefas de alimentação e distribuição de gêneros de primeira necessidade. Somou-se a essa tradição a transposição para nossa terra da legislação que amparava a participação feminina no comércio de rua.

Obedientes aos seus senhores, a quem tinham que prestar contas de um "jornal" (percentual do ganho diário) sobre o dia de trabalho, as "negras de tabuleiro" - pois os produtos neles eram oferecidos - infestavam praças e vias urbanas, constituindo-se numa grande preocupação para as autoridades que viam na sua presença pública um perigo ou uma ameaça. Com razão. Em regiões de maior resistência ao regime escravista, como Minas Gerais, Rio de Janeiro e Bahia, negras vendeiras levavam recados de quilombolas, ajudavam a traficar ouro roubado e preveniam fugitivos e bandoleiros sobre os movimentos das tropas. Constituíam- se num eficaz fio condutor de notícias sobre a ação repressiva das autoridades.

Reunidas em quitandas, vendas e "casas de alcouce" - como eram denominadas pelas autoridades eclesiásticas -, muitas delas se prostituíam, maneira rendosa de botar na bolsa mais algumas patacas. Nesses espaços, também se vendia bebida, se jogava, se conspirava. Mas também se afirmava a tradição africana através da música e da dança, da conivência de gestos e palavras. O comércio ambulante foi um mecanismo de acumulação para muitas destas mulheres que acabaram economizando o bastante para comprar sua liberdade.

No século 18, o número de mulatas e de negras livres e alforriadas era bastante expressivo na região das minas. Testamentos mineiros deste período, por exemplo, revelam inclusive que muitas delas enriqueceram, legando aos seus descendentes "chãos de terra", propriedades imobiliárias, escravos e jóias de ouro e coral. Tais mulheres viviam, em sua grande maioria, no que um historiador denominou de "famílias fracionadas". Concubinatos, ligações consensuais, amasiamentos estáveis lhes permitiam criar filhos, cuidar da parentela, organizar-se como família. Laços étnicos na escolha de cônjuges eram freqüentemente respeitados. Pertencer a uma irmandade ou confraria de escravos ou negros era condição fundamental para participar da vida social que era simultaneamente religiosa.

Mas essa religiosidade era, ao mesmo tempo, uma religiosidade de matriz africana. Calundus, protocandomblés, "benzeções" driblavam a presença da Igreja Católica e mesmo do tribunal do Santo Ofício da Inquisição. Ritos, como a dança de tunda ou o acotundá, realizados próximos às matas e águas, permitiam-lhes entrar em contato com seus ancestrais e resistir, através de suas crenças, à obrigatória e esmagadora cristianização. O pieguismo barroco, com suas festas e procissões, incentivou uma grande participação das descendentes de africanos que desfilavam, dançando e cantando, muitos deles vestidos "à africana" em louvor aos santos católicos.

Mary Del Priore é professora da USP e da PUC-RJ

JB 500 anos

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