quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Greve: A ferro e carvão


Greve: A ferro e carvão
A última grande greve da Inglaterra opôs a mão de ferro do governo Thatcher ao poderoso sindicato dos mineiros de carvão. E mudou para sempre a relação entre patrões e empregados
por Celso Miranda
A derrota fragorosa da greve das minas de carvão em 1985, na Inglaterra, representou uma virada histórica. Até aquele momento o poderoso sindicato dos mineiros impunha medo aos empresários e ao governo e tinha grande influência sobre os políticos e os partidos (um dos motivos era o papel histórico dos mineiros na conquista de uma legislação trabalhista que acabasse com as péssimas condições de trabalho no século 19). No entanto, agora eles tinham um, digo, uma opositora à altura: a primeira-ministra Margaret Thatcher, a Dama de Ferro do liberalismo. Ao fim de um ano de disputas, ela havia vencido os mineiros. E a esquerda estava arrasada. “Os historiadores e sociólogos terão, certamente, melhores explicações, mas o fim da greve dos mineiros na Inglaterra, para nós, pobres mortais, foi um sinal”, diz o jornalista britânico Seumas Milne, colunista político do jornal The Guardian e autor do livro The Enemy Within (“O Inimigo Interno”, ainda sem versão em português). “Sinal de um tempo em que a União Soviética ruía econômica e politicamente e que em mais alguns anos desapareceria. Sinal da vitória do capitalismo e da economia liberal. Sinal de uma nova ordem mundial gestada pela própria Thatcher, com o auxílio do então presidente americano Ronald Reagan e, no campo das idéias, do papa João Paulo II.”
As batalhas pelo coração e pelas mentes dos britânicos se desenrolaram nas ruas e nos bastidores da mídia e da política, com elementos de novela de espionagem. Ambos os lados saíram sujos e machucados, mas do lado esquerdo os ferimentos foram mortais. “A esquerda – e com ela o trabalhismo e o sindicalismo – dali para frente seria bem diferente. Mudanças que lhe dariam faces menos bravas e discursos mais brandos, como o do trabalhista Tony Blair, no próprio Reino Unido”, afirma Milne. “Isso repercutiria até no Brasil, que, em dezembro de 2001, elegeu um ex-metalúrgico, Luís Inácio Lula da Silva, agora mais calmo, com a barba aparada, como seu presidente.”
Não era só a política que estava em jogo naqueles dias. A economia britânica também estava em xeque. A greve começou apenas alguns meses depois da reeleição da primeira-ministra. Primeira mulher a ser eleita, em 1979, para chefiar um governo parlamentar na Europa, Thatcher vinha de um mandato conturbado, marcado por privatizações e pelo desemprego, mas readquirira popularidade após a vitória na Guerra das Malvinas contra a Argentina, em 1982. Antes mesmo de ela subir ao poder, Arthur Scargill, presidente do National Union of Mineworkers, o Sindicato Nacional dos Mineiros, dizia que não aceitaria um novo governo “Tory” (apelido do Partido Conservador Britânico).
E ele falava sério. E grosso. “Hoje pode parecer impossível aos mais jovens, mas os sindicatos eram fortes agentes políticos na Inglaterra dos anos 70”, diz o cientista político e jornalista David Williams, editor de política da BBC, de Londres. “O sindicato dos mineiros e seu líder já haviam conseguido desestabilizar o governo conservador Ted Heath, que acabou renunciando em 1974.” Primeiro é bom lembrar que a influência dos mineiros na política britânica é quase histórica. A extração de carvão na Inglaterra é vista quase que como a pedra fundamental da revolução industrial que tomou conta primeiro da Inglaterra, em meados do século 18, e depois do mundo todo. Mas, além da história, a importância econômica da atividade também era grande. Talvez ainda maior. Nos anos 80, cerca de 80% da energia elétrica da Inglaterra ainda era obtida por meio da queima do carvão mineral, do qual também dependiam indústrias pesadas, como a do aço. Além disso, o carvão era usado para o aquecimento interno das casas, coisa fundamental na Grã-Bretanha, principalmente no frio norte da ilha. Não é por acaso que naquela região, ao redor de cidades como York e Nottingham, se concentre grande parte do operariado das minas. Vinte anos depois, o aumento do uso de gás natural, vindo do mar do Norte, e da energia nuclear diminuiu bastante essa dependência.
Thatcher ansiava pelo conflito. A Dama de Ferro via o sindicato dos mineiros como uma das “trincheiras” da extrema esquerda inglesa, a quem ela acusava de preparar “a longa marcha rumo a uma utopia marxista”, conforme escreveu em seu livro de memórias The Downing Street Years (“Os Anos em Downing Street”, inédito no Brasil – Downing Street é o endereço da residência dos primeiros-ministros em Londres). O colunista Milne defende a tese de que mercado, concorrência e custos nunca foram as preocupações do governo com relação à indústria mineradora. A primeira-ministra pretenderia sobretudo enfraquecer o poder do sindicato. “Política e ideologia à parte, os sindicatos eram um empecilho para a estratégia de privatizações e redução da participação do Estado britânico na economia”, afirma Harry Cocks, doutor em história social da Universidade Birkbeck, de Londres.
Para Cocks, as políticas da primeira-ministra eram uma reação aos anos 70, quando os sindicatos tinham muito poder e eram capazes de proteger empregos e aumentar salários. “Thatcher considerava que a ação sindical, além de gerar inflação, desfavorecia a competitividade da indústria – pecados capitais na cartilha liberal que se escrevia ali”, afirma. A intenção de fechar e privatizar empresas estatais ameaçava diretamente as minas, pois muitas delas eram antigas e deficitárias. Com o alto desemprego, o setor era um barril de pólvora. O estopim veio em 5 de março de 1984: o governo anunciou o fechamento da mina de Cortonwood, em Yorkshire. No dia seguinte, Ian MacGregor, responsável nacional pelas políticas do carvão, deu o resto da má notícia: esse era só o início de um processo que acabaria com 20 minas e 20 mil empregos.
Era o que o sindicato temia, mas esperava. Vindo do setor privado norte-americano, MacGregor era famoso pela agressividade na política administrativa de downsizing. Na língua dos homens de negócio, o termo geralmente vem acompanhado de “competitividade”, “eficiência” e “otimização”, mas quer dizer mesmo “demissão em massa”. Os mineiros então declararam greve. Era o que o governo temia, mas esperava.
Até o fim com os mineiros
Greve anunciada, o sindicato apresentou suas exigências: exigia que nenhuma mina fosse fechada se tivesse recursos a ser explorados. Isso soa razoável, mas na prática significava que nenhuma poderia ser fechada. Na semana inicial de paralisação, das 174 minas existentes, apenas 28 trabalharam. Ainda assim, Thatcher avaliou que o custo político seria mínimo, já que as áreas mais afetadas pela greve – norte da Inglaterra, Escócia e País de Gales – já eram dominadas pelo Partido Trabalhista.
Para o cidadão britânico médio, o desenrolar dos episódios foi um embate de cabeçudos. Londres, mais ao sul, quase não sentiu a crise. Mas nas áreas industriais, onde o desemprego era alto em vários setores, era comum encontrar cartazes e adesivos em carros que diziam “Dig Deep for the Miners”, algo como “até o fim com os mineiros”.
O governo não cedeu. “Como a intenção de Thatcher era mesmo fechar as minas, a opção dos mineiros em não trabalhar acabava sendo um argumento a mais para isso”, diz Williams, da BBC. Em abril, um mês depois do início da greve, MacGregor acusou os trabalhadores sindicalizados em geral de serem os principais responsáveis pela falta de competitividade das minas de carvão do Reino Unido, o que, em última análise, transferia para os mineiros a culpa pelo fechamento das minas. Era uma completa inversão nas habituais quedas de braço entre o governo-empregador e empregados. “Até então os trabalhadores eram vistos como o lado mais fraco da corrente, enfrentando o governo na defesa de seus direitos e melhores condições de vida”, diz Harry Cocks. “Depois disso, os sindicatos passaram a ser vistos como entidades corporativistas que só pensam em si mesmas e que não estão nem aí para o bem comum.”
A guerra pelos corações e mentes dos cidadãos teve como campo de batalha principal a imprensa, onde pipocavam acusações contra o sindicato (leia quadro na página 48). No início da greve, em março, cerca de 75% da população era a favor do movimento. Em agosto, esse número não passava de 30%. Essa virada na popularidade da greve também dividiu o movimento. Em julho, os representantes das diferentes zonas industriais da Grã-Bretanha já reagiam de forma diferente diante da intransigência do governo de Thatcher nas negociações. Em Yorkshire, onde ficava a maioria das minas ameaçadas de fechamento e viviam comunidades inteiras dependentes delas, o movimento continuava forte. Mas em regiões como Nottinghamshire, onde as minas eram mais novas e produtivas, surgiu um movimento contra o sindicato nacional e a favor de uma votação pela continuidade da greve. “A recusa do líder Arthur Scargill em seguir a tradição e promover uma votação nacional pela continuidade da greve reverteu dramaticamente a simpatia popular que o movimento havia alcançado”, relembra David Williams, que na época cobriu as manifestações pelo canal ITV. “Isso deu ao governo embasamento para acusar Scargill de inimigo das instituições democráticas.”
Scargill, por sua vez, se apoiava em uma votação de 1981 que aprovara por antecipação uma greve caso o governo tentasse fechar qualquer mina que não estivesse à beira da exaustão. O líder mantinha a paralisação à espera da chegada de um aliado infalível: o inverno. O fim de 1984 se aproximava e com ele as baixas temperaturas no hemisfério norte, época de aumento do consumo do carvão. Para os grevistas, isso causaria uma pressão insuportável nos preços do produto. Novembro chegou, e parecia que o clima conspirava contra os mineiros. Em 15 anos não houvera um inverno tão quente na Inglaterra.
Apesar disso, Thatcher estava decidida a não depender dos termômetros. Para deter o preço do carvão, aumentou as importações, sobretudo da Polônia (em alguns momentos, o produto ficou mais barato do que no início da greve). Os Estados Unidos também deram uma mãozinha, enviando doses extras de carvão e petróleo. O presidente Ronald Reagan acompanhava de perto o desenrolar dos acontecimentos, como mostra a correspondência pessoal do líder americano endereçada à primeira-ministra britânica: “Querida Margaret, nas últimas semanas tenho pensado muito em você, com grande solidariedade, enquanto acompanho as atividades dos sindicatos dos mineiros. (…) Estou confiante de que você e seu governo sairão bem dessa. Minhas afetuosas considerações, Ron”.
No fim do ano, o moral dos operários estava derrubado e a iminência da derrota já era percebida. Grande parte dos mineiros das regiões mais afetadas pela greve foi demitida ou já havia desistido – há um ano sem trabalhar, alguns passaram a viver de doações. “Nas famílias que tiveram mais sorte, as mulheres arranjaram empregos, organizaram cozinhas coletivas e coletas – e descobriram que eram capazes de fazer coisas que tinham permanecido nas mãos dos homens por muito tempo”, diz o historiador Hamish Fraser, da Universidade de Strathclyde, em Glasgow, na Escócia. Ao fim do inverno, o movimento estava esgotado. Um ano depois do início, em março de 1985, a greve foi oficialmente encerrada.
Sem ceder um centímetro, Thatcher venceu o sindicato e todo o trabalhismo na Grã-Bretanha. “O poder que obteve com a vitória acachapante foi suficiente para aprovar, ainda em 1985, a chamada legislação anti-sindicatos, que inspirou outras tantas mundo afora e que existe ainda hoje”, afirma Harry Cocks. “É por isso que houve pouquíssimas greves relevantes desde 1985.”

Inimigo interno
Durante a greve, o serviçosecreto britânico plantou acusaçõescontra sindicalistas na imprensa. Um inquérito provou que eram falsas
Quase dez anos depois da greve dos mineiros, Seumas Milne, editor de política do prestigiado jornal britânico The Guardian, publicou The Enemy Within (“O Inimigo Interno”, inédito no Brasil, relançado recentemente por ocasião dos 20 anos da greve). Baseado nos documentos e conclusões dos processos abertos contra alguns líderes da greve, particularmente Arthur Scargill, Milne escreveu uma obra polêmica. “Mais do que as questões políticas e econômicas envolvidas, a disputa entre o governo e os sindicalistas em 1985 foi um concurso de popularidade, e nisso a mídia teve um papel decisivo. Nem sempre a briga foi justa. Pelo contrário”, diz Milne. O lado obscuro dessa batalha revela uma história de espionagem orquestrada por Stella Rimington, chefe do MI5, o serviço secreto britânico. Segundo Milne, o serviço de inteligência chamava o sindicato dos mineiros e seus representantes de “inimigos internos” e os espionava ilegalmente havia anos – coletando fotos e documentos, escutando e gravando conversas. Quando a greve se tornou mais radical, o governo lançou mão de informações nem sempre comprovadas e até de mentiras para enfraquecer o movimento dos mineiros. Exemplo disso foi o chamado Relatório Cook, que ligava Scargill e seu sindicato a um esquema de propinas vindas de supostos terroristas e falsários da Líbia de Muamar Khadafi (uma espécie de Bin Laden dos anos 80). O dossiê rendeu uma série de reportagens publicadas no jornal londrino Daily Mirror e levadas ao ar em um programa de TV. O impacto sobre a opinião pública foi enorme. O jornal, tido como simpático à esquerda, não revelou onde tinha conseguido as informações, e os jornalistas responsáveis levaram o Prêmio “Repórter do Ano” da imprensa britânica. No entanto, durante investigações em 1991, ficou comprovado que o jornal tinha compactuado, ou, na melhor das hipóteses, sido iludido pelo MI5, que havia fornecido as tais provas de corrupção. Outro ponto da guerra suja travada nos bastidores da greve foi a presença de agentes duplos. Infiltrados no sindicato, eles provocaram discórdias e fomentaram o radicalismo de algumas ações durante a greve. “O serviço secreto chegou a ter 18 agentes inflitrados, pelo menos dois deles em posições de destaque na direção nacional da greve”, diz Milne. “Em julho de 1984, quando grevistas e policiais se enfrentaram em uma verdadeira batalha campal que envolveu quase 10 mil pessoas em Yorkshire, agentes policiais estavam entre os grevistas.” A atuação das forças de segurança do governo não se limitou à espionagem. Elas são acusadas de terem produzido documentos e fotografias forjados, usar milhares de libras sem origem legal para custear as ações policiais e, ainda pior, intimidar testemunhas. No fim de 1984, grande parte da imprensa britânica publicou reportagens sobre o suposto envolvimento do sindicato com o crime organizado. A principal testemunha de acusação, Mohammad Altaf Abasi, era um homem sabidamente envolvido em negócios escusos em diversos países, da Ásia à Europa, mas isso não foi dito na época. Os documentos que ele apresentou como pertencentes a Scargill foram dados como genuínos, mas, em 1991, comprovou-se que eram falsos. Sem nenhuma prova, o caso foi arquivado. Stella Rimington, cuja demissão havia sido recomendada por uma comissão de inquérito posterior, aposentou-se pouco depois e assumiu cargo executivo em uma grande corporação.
Saiba mais
Livros
The Enemy Within, de Seumas Milne, Verso Books, 2004
Com um meticuloso trabalho de reportagem, o colunista do jornal The Guardian investiga o ataque da mídia à greve e aos sindicatos.
The Downing Street Years, de Margaret Thatcher, Harper Collins Publishers, 1993
Autobiografia da Dama de Ferro sobre os anos em que esteve à frente da política britânica.
Filme
Billy Elliot, de Stephen Daldry, 2000
Em 1984, um garoto de 11 anos descobre a paixão pelo balé, enquanto seu pai e o irmão mais velho se envolvem no recrudescer da greve.
Site
news.bbc.co.uk/1/hi/in_depth/uk/2004/miners_strike/default.stm
Especial da BBC com retrospectiva e análises da greve e de seus 20 anos.

Revista Aventuras na Historia

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