quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Globalização ou neocolonialismo?


Virgínia Fontes

O objetivo deste artigo é discutir a relação (que, aliás, nada tem de natural) entre a nação e a produção de identidades no mundo contemporâneo e que constitui, na atualidade, um imenso desafio intelectual e político. O que se está chamando de "500 anos" remete diretamente à colonização de certas terras por um país europeu e, que, desde então, mantiveram-se umbilicalmente ligadas à expansão do mundo moderno e do capitalismo. Colonizados? Mundializados avant la lettre?

A chamada mundialização vem cristalizando duas posições: a primeira enfatiza o imperialismo e as crescentes disparidades internacionais. A segunda vê a globalização como fenômeno irreversível, no qual cada nação deve inserir-se o mais vantajosamente possível. No primeiro registro, a nação é o espaço da ampliação da política e da ação comum e/ou integradora, capaz de incorporar crescentes grupos sociais ao âmbito da participação. No segundo registro, a nação é uma espécie de sobra "tradicional" que, embora tendencialmente deva reduzir-se frente a um mundo tornado pequeno, permanece a base de uma série de interesses e decisões. Modelo de organização ou "resto tradicional" num mundo em transformação, a questão nacional permanece central.

É preciso, entretanto, ressaltar algumas contradições. A expansão internacional do capitalismo, que jamais se limitou a um só país, aprofundou a criação de fronteiras nacionais, produzindo-se uma dupla dinâmica, interna e externa. Outra contradição opõe a capacidade da incorporação política no âmbito nacional à opacidade e permanente exclusão da participação popular em âmbito internacional.

No mundo europeu (com a inclusão norte-americana e, ulteriormente, japonesa), a expansão do capitalismo tende a ser definida como derivada de razões endógenas, nacionais ò cada país participando de forma diferenciada dessa "endogenia" do capitalismo, Inglaterra e França à frente. As análises históricas, portanto, centraram-se nas formas peculiares, nacionais, de desenvolvimento do capitalismo e do Estado, com escassa atenção para os elementos de conexão externa, exceto no que concernia à expansão colonial, reduzidas as colônias a "apêndices". O espaço da história e da identidade, fulcro das escolhas políticas e sociais, para tais países, apresentava-se como unicamente o nacional.

Para o restante do mundo, entretanto, as duas linhas ò interna e externa ò deveriam ser levadas em conta, uma vez tratar-se de países "derivados" do centro europeu, logo e por extensão, com dificuldades específicas para "internalizar" o capitalismo. Estes devem ver-se eternamente como contidos numa dinâmica que os ultrapassa, ainda que sua história somente possa fazer sentido se lida por "dentro". Vale ressaltar o quase apagamento da relação interno/externo como foco constitutivo também dos países centrais (emigração colonizadora, expulsando enormes parcelas da população; imigração de mão-de-obra, mantida à parte da cidadania, por exemplo).

Desse "esquecimento" derivam conclusões neo-coloniais: para alguns, identidade cristalizada e virtuosa; para os demais, a eterna busca de uma identidade, a priori viciosa. Gera-se uma permanente corrida identitária, de forma genérica e acrítica, conduzindo muitas vezes apenas à produção de estereótipos, aplastrando profundas diferenças sociais e cristalizando "marcas" que confortam e consolidam processos de dominação. Nações e Estados não são pessoas, não têm portanto "caráter" no sentido psicológico. São processos, historicamente construídos, constituídos por grupos sociais em conflito. Além disso, tais conflitos não se limitam ao âmbito interno, nacional, estendendo-se às formas da participação e/ou subordinação na divisão internacional do trabalho as quais, por seu turno, são diferenciadas segundo os grupos sociais no interior de cada país...

Inúmeros trabalhos, inclusive no Brasil, acentuaram um ou outro pólo do problema, interno ou externo. Este não é o espaço para comentá-los. Trata-se de sublinhar as duas faces do processo de expansão capitalista: sua dimensão lógica, que pressupõe acumulação e expansão ampliadas e, portanto, internacionalizada; pressupõe também permanente expropriação dos trabalhadores (em diversos níveis, desde a clássica expropriação das condições de subsistência até à expropriação de direitos, fenômeno recente). Na outra face, histórica, sua dinâmica é construída por agentes sociais , por lutas históricas, que estabelecem opções e resistências. Com isso se evidencia, pois, serem sujeitos desse processo, e não apenas dóceis objetos.

Em suma, o capitalismo não é um "poder que flutua, virtual"; é uma relação social múltipla e complexa, histórica, simultaneamente transformadora e produtora de profundas desigualdades, lugar de luta e de conflito social. Se os dois aspectos não se fertilizam mutuamente ò o lógico e o histórico ò arriscamos recair num empiricismo historicista incapaz de identificar as principais tendências contemporâneas, ou em seu oposto, no uso de belas fórmulas teóricas quase escolásticas.

Escolher uma faceta da dinâmica capitalista é perder de vista aquilo que a constitui como tal. A denúncia de seus efeitos desagregadores (a barbárie e a exclusão), ainda que necessária e urgente, não reduz a necessidade da identificação consistente dos agentes sociais dessa nova fase de internacionalização e, portanto, das formas organizativas passíveis de fazer face a ela. A contemplação admirativa dos avanços técnicos e suas possibilidades voltou à moda, perceptível pelo fascínio acrítico exercido pela Internet ou pelas imagens idílicas de uma sociedade do ócio, em tudo e por tudo inexistente. Retoma-se uma visão escatológica e apolítica (cuja crítica a alguns dos "marxismos" fez correr muito papel e tinta), agora marca registrada de alguns "tecnólogos" bem ajustados ao sistema.

É preciso pois, levar em consideração os grupos sociais concretos que correspondem à internacionalização crescente do capital e à sua contrapartida, a imposição de uma concorrência recrudescida entre os próprios trabalhadores, em âmbito nacional e, crescentemente, no âmbito internacional. Mobilidade para uns, elevação da fronteira para os demais- A questão da identidade nacional, pensada não como "caráter", mas como produção cultural e integradora, capaz de socializar a política, é hoje atravessada pela internacionalização da cultura imperial, internalizada e interagindo com as demais formas culturais, nacionais ou regionais. Do cinema ao programa de televisão de massa (cuja fórmula é, em grande parte, copiada e/ou adaptada do exterior); do sanduíche à forma de vestir; do gibi às agências de notícias, estamos fortemente imbricados numa rede de relações sobre as quais temos ainda escassa produção teórica de cunho crítico e, sobretudo, pouco alcance prático.

Pensar historicamente ajuda a evidenciar a inexistência de saídas através de um "retorno a um mundo idílico" precedente, onde as nações seriam "intocadas". Isso não existiu, nem aqui, nem alhures. Esse é, aliás, o fundamento de algumas xenofobias e racismos. Em contrapartida, as formas assumidas pela mundialização contemporânea não são internacionalistas, no sentido da produção de espaços mais abertos de inclusão social, política, econômica ou cultural. Ao contrário, consolidam-se pólos concentradores de poder onde se coagula a participação de alguns, não mais de uma única origem nacional, porém limitada àqueles procedentes de somente algumas nações ou grupos sociais.

Retomar o tema da identidade, de forma consequente, portanto, implica criticar as fórmulas adocicadas e os amálgamas harmonizadores e desqualificadores dos conflitos sociais no âmbito nacional. Por outro lado, exige enfrentar o desafio da construção de uma verdadeira internacionalização, que não se limite a perpetuar recolonizações.

Virgínia Fontes é professora da graduação e pós-graduação em História da UFF e coordenadora do Laboratório Dimensões da História

JB 500 anos

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