domingo, 23 de agosto de 2009

Canal do Panamá , por um mundo menor

Durante 300 anos, os homens sonharam com um caminho mais curto entre o Pacífico e o Atlântico. Inaugurado em 1914, o Canal do Panamá dividiu um continente e uniu dois oceanos
por Tiago Nogueira de Noronha
Unir o oceano Atlântico ao Pacífico é uma idéia que surgiu no século 16, com a colonização da América espanhola. A descoberta das jazidas de ouro e prata na costa do Pacífico, sobretudo no Peru e no México, aguçou o interesse dos europeus de encontrar uma forma eficaz de transportar toda essa fortuna. Ouro é bom, mas pesa. Até então, o acesso à costa do Pacífico só era possível com a circunavegação da América pelo sul, passando pelo estreito de Magalhães. Além da longa distância, os ventos e as fortes correntes marinhas tornavam a viagem um inferno. E os naufrágios, freqüentes.

Tão preciosa carga merecia uma rota mais segura e rápida. Dona de praticamente o continente todo, a Coroa espanhola traçou no mapa a menor distância para dividi-lo em dois: nascia a Rota Imperial, que cortava o istmo do Panamá, bem no meio do continente. Na época, a travessia podia ser feita de duas maneiras. Utilizando somente via terrestre, da cidade de Panamá (costa oeste) a Portobelo (costa leste), seguia-se em lombo de mulas numa viagem que demorava cerca de 12 dias. Pela via terrestre-fluvial, alternando mulas e jangadas pelo rio Chagres, os espanhóis levavam até 30 dias.

A riqueza que cruzava esses quase 90 quilômetros atraiu a atenção de aventureiros, ladrões e traficantes de todas as partes que, às vezes associados a escravos fugidos (os cimarrones), conhecedores da geografia local, atacavam e incendiavam portos e vilas e assaltavam caravanas. Por 200 anos, mesmo após o declínio da mineração, o lugar foi o mais perigoso do continente.

Em 1821, o Panamá declarou-se independente da Espanha e aderiu à Grã-Colômbia (Nova Granada, Venezuela e Equador), libertada dois anos antes por Simon Bolívar. Mas foi a descoberta de ouro na Califórnia, na costa oeste dos Estados Unidos, que alterou de vez a história do lugar. O ouro estimulou a criação de uma nova passagem interoceânica e, a partir de 1842, companhias americanas de navios a vapor já operavam ligando as costas ocidental e oriental dos Estados Unidos ao Panamá. Entre 1850 e 1855, um consórcio privado americano construiu a primeira estrada de ferro interoceânica das Américas, a Ferrovia do Panamá. Em duas décadas, quase 400 mil passageiros viajaram do Panamá à Califórnia.

No final do século 19, uma nova disputa política levou turbulência à região. Estados Unidos e Inglaterra brigavam por áreas de influência na América Latina. Ficar à margem dessa refrega acabou favorecendo os franceses, que, em 1878, receberam do governo colombiano permissão para abrir e operar por 99 anos um canal navegável no istmo do Panamá. A concessão foi adquirida pelo conde Ferdinand de Lesseps, engenheiro responsável pela construção do Canal de Suez, em 1869, no Egito. Ele levou ao Panamá uma enorme infra-estrutura e os mais sofisticados recursos tecnológicos da época. Mas, para quem detinha a experiência de abrir um canal no nível do mar, como ocorrera em Suez, a geografia panamenha foi um inimigo implacável. Entre 1881 e 1888, vendavais e até um terremoto provocaram deslizamentos de terra, alagamentos nas áreas de escavação e destruição de maquinário e de parte da ferrovia.

Epidemias de febre amarela e malária foram responsáveis por altos índices de mortalidade entre os trabalhadores. A corrupção e a má administração da companhia também contribuíram para o que foi chamado pela imprensa da época de “decepção francesa”.

De nada adiantaram as duas prorrogações concedidas pela Colômbia em 1890 e 1893. Lesseps morreu em 1894 e seu filho, Charles, foi preso acusado de corrupção.

Uma nova empresa, organizada no mesmo ano pelo engenheiro Gustave Eiffel (o mesmo da torre), apresentou um projeto revolucionário, que previa um canal em eclusas. Mas o empreendimento já nasceu endividado, sem fôlego para continuar. Em 1899, a segunda tentativa francesa chegou ao fim, deixando no Panamá estudos geológicos e topográficos, mapas, projetos, edifícios, além de 40% das escavações realizadas.

Era a vez de os americanos tentarem. Os Estados Unidos adquiriram a concessão do canal em troca de apoio político e militar à independência do Panamá. No início, a resistência colombiana em assinar um pacto com os americanos irritou não apenas os Estados Unidos, mas a elite panamenha, interessada no desenvolvimento da economia local. Em 5 de novembro de 1903, os panamenhos declararam independência da Colômbia, sob a tutela dos americanos, que instituíram um bloqueio naval nas duas costas do país. Os líderes separatistas rumaram para Washington, de onde voltaram com um tratado que concedia aos Estados Unidos o direito perpétuo de construir e operar o Canal do Panamá e a soberania sobre o território por onde ele passaria.

As obras foram reiniciadas e, em 1904, avançaram lentamente, seguindo o projeto de uma passagem no nível do mar. John Frank Stevens, engenheiro-chefe do canal, apresentou ao então presidente americano, Theodore Roosevelt, um estudo indicando que seria mais econômico um canal por eclusas, o que diminuiria o prazo de construção de 18 para nove anos.

Roosevelt aprovou o plano e ordenou uma verdadeira operação de guerra. Entre os esforços americanos, uma gigantesca campanha sanitária abateu os mosquitos que transmitiam a febre amarela e a malária. Um exército de dedetizadores foi convocado para erradicar as larvas do inseto, pavimentar ruas e trocar poços por aquedutos. O último registro de um caso de febre amarela na região ocorreu em 1905.

Os Estados Unidos enviaram para a região do canal (território legalmente americano) cerca de 60 mil trabalhadores, entre 1904 e 1914. Desse total, aproximadamente 45 mil eram estrangeiros e 15 mil americanos. Dois terços dos estrangeiros eram negros, sendo as Antilhas origem de 68,5% desse grupo. Já os europeus representaram 26,3% da mão- de-obra do canal. O restante provinha da própria América Central ou não teve nacionalidade registrada. Calcula-se que, de 1904 a 1914, morreram nas obras por doenças e acidentes 5 609 trabalhadores, 80% deles antilhanos e cerca de 350 americanos. Somando-se a etapa francesa, o número de mortos ultrapassou a cifra de 25 mil homens.

Em 1911, as eclusas de Pedro Miguel (do lado do Pacífico) estavam terminadas. Dois anos depois, foram concluídas as eclusas de Miraflores (Pacífico) e de Gatún (Atlântico). No dia 15 de agosto de 1914, após quase um ano de testes, o pequeno barco Ancón realizou a primeira travessia oficial do canal. Estava aberta à navegação mundial uma das mais impressionantes obras de engenharia do século 20.

O canal funciona atualmente como uma concessão do governo panamenho (leia quadro na página ao lado). O valor arrecadado com os pedágios, excluídos os custos de manutenção e salários, são repassados ao Panamá. Aliado às atividades do porto e da Zona Franca de Colón, o canal representa a principal fonte de renda do país, ou 17,8% do PIB.

As antigas bases militares da Zona do Canal passaram a abrigar condomínios residenciais de luxo, centros universitários e de pesquisa, embaixadas e representações diplomáticas. O governo panamenho procura desenvolver o turismo no canal, criando infra-estrutura e oferecendo benefícios fiscais a potenciais investidores.

Mas, hoje, o principal desafio enfrentado pelo Canal do Panamá é a possibilidade de se tornar incompatível com a tecnologia de construção de navios. Na década de 1960, foi criado o padrão de navios Panamax, que seguia as medidas das eclusas do Canal. No entanto, a partir dos anos 1980, a tecnologia dos armadores e de navegação permitiu a fabricação de navios maiores e com capacidade de carga e autonomia ampliadas.

Atualmente, cerca de 7% da frota do comércio marítimo mundial não pode cruzar o canal por ser mais larga que suas eclusas. Esse percentual é formado por 97% dos petroleiros, 85% dos navios que transportam minérios, 70% dos que transportam carvão e 35% dos que transportam grãos. São supercargueiros com capacidade para mais de 60 mil toneladas, uma carga impensável no início do século passado, quando as eclusas foram projetadas, mas cada vez mais comum nos dias de hoje.

Duas respostas a esse problema estão em estudo no Panamá. A primeira prevê a construção de um terceiro jogo de eclusas, com capacidade para navios com até 200 mil toneladas de carga, e que aproveitaria a rota navegável interna do canal. Esse projeto custaria 8,5 bilhões de dólares e levaria dez anos para ser implantado. A outra saída seria a construção de um canal paralelo ao atual, capaz de acomodar navios com até 250 mil toneladas de carga. Esse projeto está estimado em 14,2 bilhões de dólares e 15 anos de execução. Os dois projetos apresentam os mesmos problemas: o alto custo e como fazer para não interromper as atividades do canal.

Água morro acima
Um caminho entre o Atlântico e o Pacífico
Eclusas Gatún

A entrada atlântica do canal se localiza na baía de Limón. Após passar pelas enormes rompeolas (“quebra-mar”, em espanhol), barreiras que impedem o avanço da maré alta e facilitam a navegação, os navios percorrem 10,5 quilômetros até a primeira comporta. Uma seqüência de três eclusas eleva os navios até a superfície do lago Gatún, 26 metros acima do nível do mar

Lago Gatún

Até 1935, Gatún foi o maior lago artificial do mundo. Possui 418 quilômetros quadrados e foi alagado em 1910 com a construção da barragem, que controla o curso das águas do rio Chagres

Eclusa Pedro Miguel

Está situada longe da costa por razões militares: pretendia-se evitar que o canal fosse inutilizado em caso de um ataque às bases americanas. Ao passar por Pedro Miguel, os navios descem a 10 metros de altitude e navegam pelo lago Miraflores até o próximo jogo de eclusas

Eclusas Miraflores

Ao contrário da entrada atlântica, o lado pacífico não possui rompeolas. Por isso, as eclusas Miraflores têm comportas maiores para sustentar o impacto e a alteração da maré do Pacífico, que pode variar em até 4 metros

Como é feita a travessia

Antes de o navio iniciar a travessia, o prático (piloto habilitado a navegar no canal, por conhecer a rota e os locais de passagem), sobe a bordo e assume o comando da embarcação. O navio é conectado ao rebocador que realiza as operações de manobra nas águas do canal. A travessia das eclusas é feita com a ajuda das mulas. Essas poderosas locomotivas se movem por trilhos paralelos às eclusas e se conectam aos navios por cabos, cuja regulagem mantém a estabilidade da embarcação e evita choques nas paredes laterais das câmaras. O número de mulas utilizado por travessia varia de quatro a oito, dependendo do tamanho do navio

Como funcionam as eclusas

Um sistema de eclusas é formado por câmaras, comportas e tubulações que levam a água de uma câmara à outra. No Canal do Panamá, todas as câmaras possuem as mesmas medidas (33,5 metros de largura e 306 metros de comprimento) e estão construídas em pares, lado a lado, para permitir que a navegação seja feita em dois sentidos. Cada câmara leva entre 8 e 15 minutos para encher de água. A água se move sem o auxílio de bombas, pela força da gravidade, através de uma tubulação central e duas laterais (com 5,5 metros de diâmetro cada). Para encher uma eclusa, fecham-se as válvulas das tubulações do extremo inferior da câmara, enquanto as que se encontram na ponta superior são abertas. O esvaziamento segue o processo inverso. A água utilizada nas eclusas é doce, proveniente dos lagos Gatún e Maidden, que é dispensada no mar sem reaproveitamento. Cada comporta possui um compartimento oco em seu interior, que provoca flutuação e conseqüente diminuição da força necessária para sua abertura ou fechamento

• A obra custou 639 milhões de dólares, sendo 55% desse total gasto pelos Estados Unidos e 45% pela França

• Cerca de 80 mil pessoas estiveram envolvidas na realização das obras, sendo 75% na etapa americana e 25% na etapa francesa

• Mais de 25 mil homens morreram nos 35 anos de construção do canal, o que corresponde a quase duas mortes por dia

• Todo o cimento utilizado na construção da estrutura foi trazido em navios de Nova York

• A rota seguida pelo canal cruza a Cordilheira Continental, que tinha originalmente 100 metros de altura em seu ponto mais alto

• O canal possui aproximadamente 80 quilômetros de extensão e umnavio leva, em média, dez horas para cruzá-lo e mais 20 horas entre manobras de aproximação e outros serviços

• Um navio de grande porte viajando de Nova York a São Francisco economiza 14 580 quilômetros utilizando o Canal do Panamá em vezde circundar a América do Sul

• Como é cobrado por peso, o maior pedágio pago para atravessar o canal foi de 141 mil dólares, pelo cruzeiro turístico Crown Princess. Já o menor foi de 36 centavos de dólar, pago por Richard Halliburton, que atravessou o trecho a nado em 1928

• Para construir o canal foram removidas cerca de 300 milhões de metros cúbicos terra, quantidade suficiente para construir uma nova Muralha da China, só que 1 600 quilômetros mais extensa

• Cruzam o Canal do Panamá, em média, 42 navios por dia, quase 15 mil navios por ano. Por ali passa, atualmente, cerca de 4% do comércio mundial


Guerra pelo Canal
A presença americana nem sempre foi amigável
Nove de janeiro de 1964. Cinco horasda tarde. Entre a Zona do Canal, ocupada por militares americanos, e o território panamenho, cerca de 200 estudantes se aglomeram. Eles esperam por uma cena histórica: o hasteamento da bandeira do Panamá na Zona do Canal. Até então as estrelas e listras americanas tremularam sem serem incomodadas, uma espinha na garganta dos panamenhos que o presidente americano Lyndon Johnson resolvera retirar, ordenando a colocação a bandeira do Panamá nos edifícios públicos. Cinco e meia. Seis pessoas são autorizadas a atravessar os portões para realizar o hasteamento. Tudo ia bem até que eles chegam a um colégio freqüentado por filhos de militares americanos. Os seis panamenhos são recebidos sob vaias e xingamentos, mas não se intimidam e tentam hastear sua bandeira mesmo assim. O conflito é inevitável. Às seis e meia da tarde, os estudantes, aparentando marcas de espancamento, são expulsos pela guarda americana. A população se revolta e inicia um tumulto com os policiais. O Exército americano é acionado.

Dez de janeiro de 1964. Quinze civis panamenhos estão mortos e 188 feridos. O Panamá rompe relações diplomáticas com os Estados Unidos. O episódio marcou a mudança de atitude do Panamá em relação ao controle do canal. No entanto, só em 1977 os presidentes dos Estados Unidos, Jimmy Carter, e o panamenho, Omar Torrijos, assinaram o tratado de transferência dos bens instalados na Zona do Canal – inclusive o próprio canal – ao Panamá. No último dia de 1999, após 85 anos de controle, os Estados Unidos entregaram ao Panamá o direito de explorar o mais importante recurso econômico do país.


Saiba mais
Livros

El Canal de Panama, Juan Antonio Tack (org.), Universitário, 1999 - Inédito no Brasil, a obra traz histórico completo sobre o tema, apresentado por historiadores panamenhos

The Path Between the Seas, David McCullough, Simon and Schuster, 1977 - Em linguagem menos acadêmica, fala das motivações americanas para a construção do canal.

Site

www.pancanal.com - Site oficial da autoridade do Canal Panamá.

Revista Aventuras na Historia

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