segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Brasília - Uma ilha longe do mar




Se Brasília levou quase quatro anos para ser construída, muito mais tempo foi necessário para que se tornasse de fato a nova capital brasileira, substituindo aos poucos as funções que pertenciam ao Ri
Marly Motta

Em “Brasília, sinfonia da alvorada”, Antônio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes assim descrevem as terras escolhidas no interior do Brasil para abrigarem a nova capital do país:
No princípio era o ermo
Eram antigas solidões sem mágoa.
O altiplano, o infinito descampado
No princípio era o agreste:
O céu azul, a terra vermelho-pungente
E o verde triste do cerrado.

A “Sinfonia de Brasília,” como mais tarde passou a ser chamada, fora encomendada por Juscelino Kubitschek em 1958, dois anos antes da fundação da cidade. Dividida em cinco partes, ela seria apresentada durante os festejos da inauguração do novo Distrito Federal. Mas o trabalho dos artistas, dois verdadeiros ícones da Bossa Nova nascida no Rio de Janeiro, só viria a ser apresentado na Praça dos Três Poderes, em Brasília, 26 anos mais tarde.

A transferência da capital para o Planalto Central pode ser analisada a partir de diferentes pontos de vista. Um deles entende a nova capital como elemento propulsor de um projeto de construção nacional. Mais do que o símbolo de uma nova época, Brasília traduzia a idéia de criação dessa nova época. Inseria a sociedade brasileira em um projeto modernizador, tendo na arquitetura modernista de Oscar Niemeyer e Lúcio Costa sua face mais visível.

Sob outro olhar, a interiorização da capital é entendida a partir do discurso da nova organização espacial do território brasileiro, com destaque para a estratégia denominada “marcha para o Oeste”, região onde estaria escrito nosso destino como potência mundial. Já nos anos 1940, comissões de militares se encarregaram de delimitar o local da nova capital. A caminhada para o Oeste fez parte do projeto de ampliação das fronteiras econômicas, com o intuito de alavancar a expansão capitalista nacional. Com São Paulo à frente deste processo, não por acaso a figura do bandeirante se tornou o modelo do nosso self-made man, cidadão que vence a partir do seu próprio esforço, arrojado e progressista.


Independentemente da visão escolhida, todas concordam em um aspecto: o Rio de Janeiro se tornara excessivamente cosmopolita e estava de costas para o resto do país. A burocracia emperrada do Distrito Federal não seria a mais adequada para liderar o processo de desenvolvimento de um mercado nacional com impulso capitalista.

Além do mais, a disposição de levar para o interior a capital teria como motivo o fato de o Rio ter sido o principal cenário da ampla mobilização popular ocorrida no último governo Vargas e da conspiração golpista que quase impediu a posse de Juscelino Kubitschek. A efervescência social e política da centenária capital não ajudaria uma condução tranqüila da administração pública. A cidade era percebida pelos governantes como insegura.

As propostas de transferência da capital para o interior não eram novidade no Brasil. Elas estiveram presentes na primeira Constituinte republicana. Uma delas foi apresentada pelo senador fluminense Quintino Bocayuva, e visava à fundação de uma nova capital, a Cidade de Tiradentes, a se localizar no Planalto Central. Segundo ele, faltava “no meio da imensa vastidão de território de nossa Pátria, com essa população disseminada em sua vasta superfície, o laço de coesão nacional, um elo patriótico, um ideal comum”. A Constituição de fevereiro de 1891, em seu artigo 3, demarcou uma área de 14.400 quilômetros quadrados no Planalto Central para que nela se estabelecesse a futura capital federal. Foi determinado ainda que, após a transferência da capital, a cidade do Rio de Janeiro se transformaria em estado.

No entanto, no início do século XX, a remodelação urbana efetuada no Rio de Janeiro sob o comando do prefeito Pereira Passos e do presidente Rodrigues Alves mostra que, em vez de transferir a capital, a República preferiu reformá-la. Talvez seja possível dizer que o Brasil mudou de capital sem sair dela. O que não significou que a proposta de mudança da capital tivesse sido enterrada.


As Constituições de 1934 e de 1946 trouxeram de volta a indicação da transferência da capital. Mas na Carta de 1937 este assunto desaparece. A reafirmação do Rio de Janeiro como capital pode ser atribuída ao projeto de Getulio Vargas de fazer da cidade o espaço por excelência da afirmação da presença do Estado, e o cenário privilegiado das cerimônias cívicas, nas quais o povo deveria manifestar seu apoio ao governo.
A Constituinte de 1946 voltou a discutir o tema da transferência da capital, inclusive com propostas de mudança de local: em vez do Planalto Central, foi indicada a região do Triângulo Mineiro, idéia defendida pelo então constituinte Juscelino Kubitschek, e derrotada por poucos votos. Posteriormente, foi criada a Comissão de Localização da Nova Capital, dirigida pelos generais Poli Coelho e José Pessoa, entre outros. Em abril de 1955, o lugar foi definido com base no relatório preparado pela firma norte-americana Donald J. Belcher.

Aprovada em 1º outubro de 1957, a Lei 3.273, de iniciativa do deputado Emival Caiado, da União Democrática Nacional (UDN) de Goiás, determinava a data exata para a transferência. No entanto, só a partir de meados de 1958 a mudança da capital se tornou irreversível, pelo rápido andamento das obras e, principalmente, pelo entendimento político promovido pelo presidente Kubitschek com setores da oposição. De olho no apoio ao seu nome como candidato de “união nacional” às eleições de 1960, o senador baiano Juracy Magalhães, que então presidia a UDN, apoiou aquela que era considerada a meta-síntese da administração JK. E, finalmente, em 21 de abril de 1960, dia consagrado a Tiradentes, patrono da nação brasileira, foi inaugurada a nova capital.

Desde novembro de 1956, quando se armaram as primeiras barracas de lona no Planalto Central, um intenso movimento migratório vinha atraindo milhares de pessoas para a região, boa parte delas voltada para a atividade da construção civil. Eram os chamados “candangos”. No entanto, se a construção de Brasília consumiu quase quatro anos, muito mais tempo seria necessário para torná-la de fato a capital do país.

Sedes da autoridade do Estado, dos órgãos do governo e da administração pública, controlando a força militar, as principais rotas de comércio e a distribuição de recursos financeiros, monopolizando a arte, a cultura e o gosto, as “cidades-capitais” sempre desempenharam um papel fundamental no processo de construção dos Estados nacionais.


Por isso, a questão central do debate sobre a mudança da capital era como substituir o Rio de Janeiro em sua função de unificação nacional e em seu papel de vitrine e espelho do país. “As grandezas do Rio são as grandezas do Brasil; as fragilidades do Rio são as fragilidades do Brasil; o calor do Rio, o calor do Brasil; a paisagem do Rio, a paisagem do Brasil”, bradava o deputado paranaense Munhoz da Rocha em discurso na Câmara dos Deputados em agosto de 1959, quando propôs a criação da Cidade Nacional do Rio de Janeiro.

A discussão sobre o futuro da ex-capital mobilizou muitos setores da sociedade brasileira. Afinal, o que seria do Rio, a cidade-capital do país? É certo que interesses de partidos e políticos pesaram no debate que definiu a transformação do antigo Distrito Federal em estado da Guanabara, mas o pano de fundo era a questão da “capitalidade”. Este tema também esteve presente nas preocupações de San Tiago Dantas, vice-presidente da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, encarregado de elaborar os projetos de criação e de organização da Guanabara e do novo Distrito Federal.

Quando expôs os motivos e as justificativas para os dois projetos, San Tiago esclareceu, no entanto, que o debate parlamentar deveria se centrar na organização política e administrativa da nova capital. Entendia que isso era um elemento fundamental para a reconstrução do país em bases modernas. Seu modelo ideal de capital era o oposto do Rio de Janeiro. Por isso, defendeu a mudança do artigo constitucional que tratava da estrutura do Distrito Federal. Projetava uma capital como Washington: despolitizada, sem problemas locais nem ideais próprios, e totalmente dedicada a funções administrativas. De acordo com o projeto San Tiago Dantas, aprovado pelo Congresso, Brasília ficou sem representação legislativa e com o Poder Executivo entregue a um prefeito nomeado pelo presidente da República, mas com a prévia aprovação do Senado Federal.

Transformada em cidade-estado, sem municípios, a Guanabara, então chamada de Belacap, conservou a maior parte das funções de principal centro político do país. Seria o que se pode chamar de “estado-capital”. A “capitalidade” de Brasília, ou seja, sua condição efetiva de capital brasileira, só se concretizaria dez anos depois, por meio de um processo que exigiu um duplo investimento, no sentido de retirar do Rio de Janeiro as atribuições e os atributos de capital e de transferi-los para a nova capital.


A partir de 1968, a política de endurecimento do regime militar, além da intenção de acabar com o tradicional ímpeto oposicionista do Rio de Janeiro, teve como uma de suas expressões o reforço da “capitalidade” de Brasília. Foi a partir desse momento que a capital passou a exibir alguns marcos simbólicos e representativos do poder central. Não foi por acaso que durante o governo do general Médici, entre 1969 e 1974, se fez a transferência dos principais órgãos decisórios do Estado para o novo Distrito Federal. O chamado “Forte Apache”, edifício que abriga o Quartel-General do Exército e onde costumava reunir-se o alto comando dessa força para decidir os rumos do país, pode ser considerado um dos maiores símbolos da função de capital atribuída a Brasília.

São diversas as interpretações sobre o significado da mudança da capital brasileira. De um lado estão aqueles que relacionam o fim dos “anos dourados” do país à transferência da capital do Rio de Janeiro para uma Brasília tachada de “ilha da fantasia oculta e isolada”, o que teria favorecido tanto o fortalecimento da ditadura militar quanto os desmandos do governo Collor. De outro, os que consideram a nova capital o elemento-chave de um projeto de identidade nacional que buscou promover a ocupação do interior do país com os artefatos e as formas da modernidade. Planejada para ser modelo de integração regional e social, Brasília enfrenta o desafio, tal como o Rio anteriormente, de ser uma cidade para os seus habitantes e para todos os brasileiros.

Marly Motta é Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF). pesquisadora do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânia do Brasil da Fundação Geúio Vargas (CPDOC-FGV) e autora do livro Rio, Cidade-Capital (Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar 2004).

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

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