Simplesmente Betinho
O mineiro Herbert de Souza fez da vida uma luta permanente contra a doença, o autoritarismo e as injustiças sociais e se transformou num símbolo nacional de solidariedade e cidadania
Carla Rodrigues
Herbert José de Souza, simplesmente Betinho, encarnou, nos seus quase 62 anos de vida, no corpo franzino e no olhar expressivo, a expectativa de um projeto de Brasil democrático, humanista, solidário. Nasceu em 1935, quarto filho da família Figueiredo Souza, formada a partir do casamento de Henrique Souza e Maria da Conceição Figueiredo. Foi o segundo filho homem e o primeiro que vingaria. Antes dele o casal já tinha duas filhas nas quais o fantasma da doença da hemofilia não poderia ter se manifestado. Os Souza ainda estavam assustados com a perda de um menino que, antes de completar dois anos, morrera num acidente doméstico, porque não se conseguiu estancar o sangramento dos cortes provocados por um jarro quebrado. Até ali, ninguém em Bocaiúva – norte do estado de Minas Gerais, sertão mineiro onde, reza a lenda, viveram os personagens de Guimarães Rosa – tinha ouvido falar em hemofilia.
Dali até a adolescência teria sido uma vida quase normal, não fossem as restrições físicas para as brincadeiras infantis e algumas peculiaridades no trabalho do pai. A família trocou Bocaiúva por Ribeirão das Neves, onde seu Henrique foi chefiar o almoxarifado de uma prisão agrícola. Ali, no quintal da penitenciária, o menino conheceu a vida rural que sustentava as abastadas famílias mineiras. Dona Maria queria morar em Belo Horizonte, capital recém-construída por JK, pólo de atração para uma vida urbana num estado que era, até então, principalmente agrícola. Na cidade estaria, além de melhores oportunidades de trabalho, tratamento para a frágil saúde dos filhos. A essa altura já eram dois meninos hemofílicos: Betinho e Henrique, que mais tarde ficaria conhecido como o famoso cartunista Henfil. Aos dois ainda se juntaria Chico Mário.
Em Belo Horizonte, a família se instalou no que hoje é chamado “quarteirão médico”: de um lado, a Santa Casa de Misericórdia; de outro, a funerária que seria chefiada por seu Henrique. E Betinho, o menino que nasceu sob o espectro da morte iminente, divertia-se brincando entre os caixões, correndo nos intervalos entre um enterro e outro. A morte que rondava a família Souza bateu mais forte à porta quando os médicos diagnosticaram tuberculose em Betinho. O ano era 1950 e ainda não havia cura para a doença, tratada com isolamento e repouso.
Foi isolado num quartinho nos fundos da casa, embora o hospital ficasse a apenas um quarteirão, que Betinho viveu três longos anos de juventude: dos 15 aos 18 anos. Tocou violão, fez esculturas, leu tudo o que lhe caiu nas mãos e foi apaixonado por uma enfermeira, a Dinha, que o visitava diariamente. Lá fora, a vida fervilhava. A irmã mais velha, Zilah, já estava engajada na Ação Católica, que pretendia expandir a presença da Igreja Católica na sociedade. Ser solidário, unir religião, assistência social e militância fazia todo sentido no cotidiano de uma família que já era, na origem, fervorosamente católica (como são as famílias mineiras até hoje).
Quando a cura chegou, meio por acaso – Betinho leu numa revista sobre a descoberta do remédio hidrazida, primeiro tratamento eficaz contra tuberculose –, o doente ansiava por recuperar não apenas a vida, mas o tempo perdido. A experiência da perspectiva da morte, mais concreta com a tuberculose do que com a hemofilia, acentuou um traço de urgência em relação à vida que marcou toda a trajetória do personagem. Foi essa urgência que levou Betinho para a JEC (Juventude Estudantil Católica) e para a JUC (Juventude Universitária Católica), organizações formadas em 1950 pela Ação Católica Brasileira com o objetivo de difundir a doutrina da Igreja no meio escolar e universitário. Em 1960, Betinho ajudou a fundar a Ação Popular, braço laico e marxista da Ação Católica. Composta basicamente por membros da JUC e da JEC, seu objetivo era formar voluntários que pudessem participar de uma transformação radical da sociedade brasileira em sua passagem para o socialismo.
Esse mergulho de cabeça na política levou Betinho a deixar Belo Horizonte, apoiar a Marcha da Legalidade, em 1961, para garantir a posse de João Goulart (o vice de Jânio Quadros), resistir ao golpe militar que derrubou Jango, em 1964, e trocar o Brasil pelo Uruguai em busca de exílio. Betinho viveu um ano no Uruguai em meio às articulações políticas que pretendiam restabelecer a democracia brasileira. Como esse percurso de volta à normalidade seria muito mais longo, e com a primeira mulher, Irles, grávida de seu primeiro filho, Daniel, Betinho voltou ao Brasil na clandestinidade. Assim, o irmão do Henfil, imortalizado na voz de Elis Regina como símbolo da anistia, viveu quase tanto tempo clandestino no país quanto no exílio: foram quase seis anos de clandestinidade e oito de vida no exterior.
Seguindo as orientações da Ação Popular, integrou-se ao trabalho operário, atuando numa fábrica de porcelanas em Mauá, no ABC paulista. Para passar na seleção, foi obrigado a recorrer ao apoio de amigos, todos do Partidão (Partido Comunista Brasileiro), descendentes dos imigrantes italianos que trouxeram o comunismo na bagagem quando desembarcaram no Brasil no começo do século XX. Em São Paulo, numa vida precária para quem carregava uma doença que exigia tratamento constante, entre 1969 e 1970 Betinho quase morreu numa cirurgia que lhe tirou metade do estômago para curar uma úlcera. Depois, fugiu para o Chile quando, na virada entre os anos 1970 e 1971, a Operação Bandeirantes, um dos principais instrumentos de repressão do governo militar, endureceu o jogo em São Paulo. Betinho, sabia-se, não resistiria a um tapa. Proteger-lhe a vida foi, para muitos jovens militantes da Ação Popular, gesto máximo de coragem naqueles tempos difíceis.
De São Paulo para o Chile, o caminho foi longo, mas a hospitalidade chilena valia o risco. A cidade de Santiago tornara-se a base da Ação Popular, que se desmantelava no Brasil. Ali, o movimento estava ancorado sobretudo na atuação do atual prefeito de São Paulo, José Serra, que era não apenas militante de AP, mas vivia legalmente no país desde 1964. Betinho chegou sem passaporte, sem um tostão, sem perspectivas e, àquela altura, as coisas na Ação Popular não estavam lá muito tranqüilas. A adesão de alguns membros ao maoísmo – uma das correntes de pensamento das esquerdas, inspirada em Mao Tsé-Tung, líder da Revolução Chinesa de 1949, e que tinha como lema “comer junto, trabalhar junto, lutar junto” – havia provocado divisões no interior da organização, que enfrentava mais uma das suas inúmeras crises desde a fundação, mais de dez anos antes. Betinho, mentor do primeiro documento-base da Ação, escrito a quatro mãos com Padre Henrique Vaz (teólogo e teórico que deu consistência filosófica aos ideais marxistas-cristãos dos estudantes), estava longe do poder dentro da organização. Estava, sobretudo, traumatizado com o centralismo democrático que o obrigara a ser operário e abrir mão das duas coisas que lhe eram mais caras: liberdade e autonomia.
O período chileno foi curto e intenso. Um casamento desfeito, um casamento novo, agora com a nipo-brasileira Maria Nakano. Com a derrubada do presidente Salvador Allende pelo exército chileno liderado pelo general Augusto Pinochet em setembro de 1973, os dois se abrigaram na Embaixada do Panamá, um apartamento de sala e três quartos no qual viveram mais de trezentas pessoas, todas aguardando condições seguras para deixar o país. Panamá, primeiro destino, Canadá, segundo, este de maior fôlego, onde Betinho e Maria viveram cerca de quatro anos e experimentaram algum tipo de estabilidade. Lá, Betinho trabalhou numa dissertação de mestrado que nunca chegou a concluir, articulando política e estudos sobre a situação econômica da América Latina. Estava aí o embrião do Ibase (Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas), organização não-governamental que ele e os companheiros de exílio Carlos Afonso e Marcos Arruda fundariam no Brasil em 1981, na esperada “volta do irmão do Henfil”.
A figura magricela simbolizou, como ninguém, a campanha pela anistia. Antes de voltar ao Brasil, Betinho e Maria ainda viveram no México, onde o sociólogo deixou para trás uma perspectiva de concluir o mestrado e cursar o doutorado. O Brasil falava mais alto. O ex-aluno da Face (Faculdade de Administração e Ciências Econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais) não fazia mesmo o estilo acadêmico. Tinha ansiedade demais pela ação para viver debruçado sobre os livros. Formado num grupo de alunos brilhantes, que reuniu nomes como Bolivar Lamounier, Fabio Wanderley Reis, Simon Schwartzmann, Paulo Haddad e Vinicius Caldeira Brandt, Betinho certamente não era o melhor da sua turma. Nem por isso menos brilhante. A atração pela política, a necessidade de dar um sentido público e transcendente à vida, a personalidade forte e o estilo carismático o levaram por caminhos pouco ortodoxos aos olhos dos que prezavam o rigor da academia.
Na volta ao Brasil, os laços com Minas Gerais já eram tênues demais. Maria e Betinho decidiram instalar-se no Rio de Janeiro, mais precisamente em Botafogo, bairro onde também funcionava o Ibase. Rua Vicente de Souza, 29. Uma casa colonial, branca de janelas azuis, pé-direito alto, alugada de uma organização católica. Curioso, foi exatamente da Igreja que vieram os impulsos iniciais para a formação do Ibase. Os objetivos eram apoiar os movimentos sociais em suas demandas, gerar informações, democratizar a comunicação. Dessas metas um tanto vagas brotaram iniciativas concretas sobre reforma agrária, meninos de rua, combate ao racismo, democratização da informação e até a criação do primeiro provedor de acesso à Internet, o Alternex, um avanço tecnológico praticamente incompreensível no universo das ONGs no comecinho da década de 1990 – quando seu amigo Carlos Afonso fazia as primeiras experiências que resultariam no projeto de conectividade para a ECO-92, a conferência que reuniu grandes chefes de estado no Rio de Janeiro em torno do tema do meio ambiente e desenvolvimento.
Em 1987, a hemofilia enfim tinha dado uma trégua, os primeiros anos de Brasil e de Ibase tinham sido difíceis, mas a vida parecia estar tomando seu rumo. Betinho e Maria agora tinham Henrique. O adolescente Daniel, filho de Irles, sua primeira mulher, depois de anos de exílio longe do pai, já fazia parte da família. Foi quando, primeiro em Henfil, depois no caçula Chico Mário, foi diagnosticada a Aids. Em pouco mais de um ano, em 1988, a doença matou os dois irmãos de Betinho, que tinham, como ele, resistido à hemofilia com transfusões de sangue que, descobriu-se então, estava contaminado pelo HIV.
Com sua extraordinária capacidade de transformar tudo à volta em causas públicas, Betinho assumiu a doença, fundou a Abia (Associação Inter-disciplinar de Aids), mudou a lei de doação e transfusão de sangue no Brasil, lutou pela distribuição de remédios gratuitos para os pacientes soropositivos e ainda influiria, anos depois, na política de medicamentos e patentes do governo brasileiro. E mais: começou a, novamente, se preparar para a morte. Escapara da hemofilia na infância, da tuberculose na adolescência, da ditadura na vida adulta, mas agora o tempo marchava inexoravelmente contra ele.
O vírus que lhe consumia a saúde parecia oferecer efeito inverso na disposição: a urgência aumentou e foi com pressa, com muita pressa, que Betinho viveu seus últimos dez anos. Primeiro, houve a militância pelo impeachment do presidente Collor, no Movimento pela Ética na Política. Depois, a criação da Ação da Cidadania contra a Miséria e pela Vida, que em 1993 fez com que o país inteiro se mobilizasse para a doação de alimentos, e ainda a fundação do Viva Rio, movimento até hoje engajado no combate à violência e voltado para a justiça social.
A Ação da Cidadania levou Betinho de volta ao início – o sociólogo que discutira as grandes reformas estruturais deu lugar ao homem que pregava solidariedade, como nos tempos de juventude e militância católica em Belo Horizonte. Com a popularidade da campanha contra a fome, virou celebridade nacional. Era parado na rua, santificado pela dedicação aos pobres, sacrifício máximo de quem lutava com a morte todos os dias. Nada disso alterou sua rotina de mineiro simples, que gostava de pescar no Aterro do Flamengo aos sábados, quando estava no Rio, e de “contar mentira” em torno da fogueira, quando passava os finais de semana no refúgio de Itatiaia, construído quase a contragosto. Como vivia com pressa, achava que a casa não ficaria pronta a tempo e que a morte chegaria primeiro. Hoje suas cinzas estão espalhadas no jardim. E seu legado político, imortalizado na história do país.
Carla Rodrigues é jornalista, articulista da revista www.nominimo.com.br e professora do Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio. Foi assessora de Betinho a partir de 1993, na criação da Ação da Cidadania contra a Miséria e pela Vida, até 1996.
Revista de Historia da Biblioteca Nacional
O trabalho da Ação da Cidadania continua.
ResponderExcluirObrigado por manter viva a chama do trabalho do Betinho.
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