quarta-feira, 29 de julho de 2009

O bê-á-bá no caos


O bê-á-bá no caos
Relatórios antigos mostram que o ensino primário da rede pública, na época do Império, funcionava muito mal, mas abrigava crianças pobres e pequenos escravos
Maria Luiza Marcilio

Em geral o interior de nossa escola mais se assemelha a uma prisão (...) meia dúzia de bancos, uma mesa no chão, o clássico pote e mais nada; as paredes sujas e esburacadas, manchas de tinta por toda parte, ausência completa dos diversos objetos indispensáveis para o ensino (...)”. Assim José Marcelino Cavalheiro, um conceituado professor de Bragança, no interior paulista, descrevia, no seu relatório de 1878, o estabelecimento onde ensinava as primeiras letras. Ele reclamava da “falta de um edifício apropriado para as escolas onde possa o professor desenvolver todos os preceitos da ciência pedagógica” e recomendava, para compensar aquela situação de “desordem”, o emprego de enérgicos meios disciplinares: “Vê-se o professor na penosa alternativa de ou deixar os alunos entregues à anarquia, acarretando a si as censuras de seus superiores e do povo, ou a fazer uso da férula [vara de açoite], transgredindo assim disposição que deveria ser o primeiro a respeitar”.

Este e outros relatórios de mestres de primeiras letras, bem como os elaborados pelos presidentes de províncias sobre a instrução pública, guardados em sua maior parte no Arquivo Público de São Paulo, nos permitem reconstituir o que era o ensino básico brasileiro no final do Império. Primeira constatação: não havia prédios escolares. As aulas de primeiras letras funcionavam num cômodo da casa do professor, geralmente alugada, e cujo aluguel, em bem poucos casos, era pago pelo governo. O professor, para poder ensinar, acabava por subtrair parte de seus magros proventos para alugar a casa onde morava e onde dava suas aulas. Em seu relatório anual de 1847, o presidente da província do Rio Grande do Norte mostrava a situação de uma das escolas de sua região, que funcionava “num miserável quarto que não tem mais de 12 palmos de fundo, dez de largo e outros tantos de altos, todo cheio de fendas, ameaçado de ruína, úmido, coberto de limo, asqueroso, indigno, era o lugar em que o respectivo professor lecionava o crescido número de seus alunos, a maior parte dos quais iam escrever em suas casas, tendo os poucos que ficavam de escrever de joelhos sobre os desgraçados e poucos bancos em que se sentavam”.

Não era uma situação excepcional. Em todas as províncias da época, como então se chamavam os estados, das mais ricas às mais pobres, são encontradas descrições semelhantes. O presidente de São Paulo, centro da produção cafeeira do país, escrevia: “As escolas públicas da província permanecem, na generalidade, funcionando em local impróprio, muitas vezes sem condições higiênicas e desprovidas de tudo quanto lhes é indispensável”. Outro problema generalizado, já apontado pelo professor José Marcelino, dizia respeito à extrema precariedade, e ausência mesmo, de mobiliário e material escolar. Fica difícil entender como poderia haver aprendizagem naquelas condições. Numa época em que as crianças se iniciavam nas primeiras letras com giz de pedra, em suas lousinhas individuais, para só depois escreverem em papel, que era raro e caro, inicialmente a lápis e depois à tinta, usando penas de ganso ou de pato e, nos melhores casos, penas de aço acopladas em canetas de madeira, esses objetos raramente eram fornecidos pelo governo. No caso dos alunos pobres, quando os pais não os podiam comprar, acabava sendo o professor que mais uma vez subtraía, de seu minguado salário, uma parte para comprar material.


Escreveu o diretor de Instrução Pública da Bahia, em 1881: “Sobre as escolas da província, algumas sei em que por falta de bancos, enquanto uns meninos estão assentados, outros estão em pé. Os alunos das escolas públicas sentar-se-iam no chão raso, se o zelo de alguns pais não os livrasse, dando alguns bancos para seus filhos, e se os mestres não privassem de seu último tamborete. A escola também não possui um só traslado de escrita, nem livros para os meninos pobres”. Na escolinha de Botucatu, no interior de São Paulo, pouco antes da queda do Império, o professor João Pereira e Oliveira Penteado reclamava ao presidente da província: “Nesta aula só tem duas toscas tábuas sobre dois caixões que servem de mesa, e outras duas de bancos. A falta que sofre esta aula desses objetos muito prejudica o ensino primário desta vila”.

Seria cansativo reproduzir aqui relatos similares, datados do começo ao fim do Império. Uma terceira marca caracteriza a educação primária pública de então: a falta de método de ensino, ou melhor, a prevalência do método “individual”. O professor atendia a seus alunos um por um, ensinando-lhes de acordo com o seu nível de aprendizado. Enquanto atendia um, os demais ficavam sem ter o que fazer. Daí a anarquia, a indisciplina. Para manter alguma ordem, o professor só conhecia a arma dos castigos físicos, particularmente a palmatória. Nessas condições, a alfabetização e o ensino primário resumiam-se no seguinte, como descrevia em 1839 um professor da escolinha de Santa Ifigênia, na cidade de São Paulo: “gastará o mestre o tempo que for necessário, de forma que fique o discípulo pronto, sabendo ler perfeitamente, sabendo escrever com boa forma de letra e segundo as regras da ortografia, sabendo não somente as quatro operações de aritmética mas também os problemas ordinários da caixaria e contas mercantis, além dos conhecimentos da doutrina cristã”. Era tudo. O processo de alfabetização poderia durar meses, até anos. E, assim mesmo, poucos foram os alunos declarados “prontos” pelos professores.

Outra marca da escola primária do Império: a falta de assiduidade e a grande evasão de crianças. Os alunos entravam na aula em qualquer época do ano; e saíam também. As faltas eram numerosas. Como a população brasileira do Império era dispersa em fazendas, sítios e roças, e como as escolinhas se concentravam preferencialmente em cidades, vilas e povoados mais densos, ficava difícil para os filhos de lavradores freqüentarem as aulas. Seus pais os deixavam em casas de parentes ou amigos das cidades, geralmente por pouco tempo. Antes de completarem o primário, seus “pais ou tutores os obrigavam a sair da escola, quer para auxiliá-los nos misteres mais rudes do trabalho agrícola, quer para empregá-los em nossa primitiva indústria de transportes por terra e por água, quer para exercitá-los em algum ofício mecânico”, como escreveu o inspetor-geral da Instrução Pública de Alagoas (1875). Era uma situação que se repetia em toda parte.


Compreensivelmente, os professores não apontaram nos seus relatórios outra característica importante do ensino na sua época: a falta de preparo dos mestres de primeiras letras. Boa parte destes sabia pouco mais que seus alunos.

As escolas normais, sempre lembradas nos relatórios dos presidentes de províncias como a solução para o atraso da educação, custaram a aparecer, e as poucas implantadas o foram em condições materiais e humanas muito precárias. Em São Paulo, por exemplo, a primeira delas foi criada em 1846, sem verba, com “um banco, uma pedra de geometria e uma mesa”, um único professor, Manoel José Chaves, bacharel em direito, e recebendo apenas alunos do sexo masculino. O curso seria de dois anos. Tendo um único professor, este resolveu só abrir matrículas em anos alternados. A escola durou 21 anos. Foi fechada quando seu professor se aposentou, em 1867, e só conseguiu formar quarenta professores, isto é, nem dois por ano.

As faltas e as licenças freqüentes do professor foram outra praga do ensino, que por sinal perduram até hoje. As denúncias dos presidentes de província são constantes, como esta do Rio Grande do Sul, datada de 1835: “Além de diminuto número de aulas em exercício, acresce ainda que a maioria dos professores ou por ineptos ou por omissos não cumprem como deveriam as suas obrigações (...)”. O presidente da Bahia, em 1854, também vituperava: “Urge principalmente que as faltas dos professores sejam punidas (...)”.

Nem todas as crianças alfabetizadas durante o Império saíram das escolas públicas de primeiras letras. Muitas aprenderam os rudimentos da escrita e da leitura em sua família, com suas mães, pais, avós ou, as que podiam, com preceptores especialmente contratados para isso. Outras freqüentavam escolas particulares que guardavam as mesmas marcas da escola pública: ensino na casa do professor, individual, precário. Em alguns casos, essas escolas mantinham alguns alunos em regime de internato e acrescentavam alguns elementos extras, para atrair os pais: aulas de piano, de francês e de trabalhos manuais para as meninas.


Estamos acostumados a ler nos livros sobre a história da educação que às escolas de então só tinham acesso os mais ricos. As listas de alunos das aulas de primeiras letras nos mostraram, no entanto, que nelas ingressavam crianças ricas e pobres, brancas, pretas e mulatas, crianças de grandes famílias, mas também filhas de mães solteiras e até expostas (abandonadas) e, em alguns casos, escravas. A presença de crianças cativas nas aulas de primeiras letras é uma completa surpresa. Entre os 23 alunos do professor Carlos José da Silva Telles, da cidade de São Paulo, no ano de 1841, estava matriculado João, de 13 anos, escravo do capitão Ignacio Camargo Francisco, que “entrou sem saber nada, mas já escreve mal, lê sílabas de três e mais letras, assenta números de dezenas”, como anotava o professor. Na lista de alunos do padre Joaquim Gomes Monteira, professor régio de primeiras letras da mesma cidade e no mesmo ano, constam quatro escravos: Joaquim, de 12 anos, Bonifácio, de nove, Salvador, de 11, e Inocêncio, de sete. Não era um fato generalizado, é bem verdade. Além disso, provocava constantes debates, reações contrárias e incertezas. Como a reação do professor José Mário Delfim, de Mogi das Cruzes, que, junto à lista de seus alunos, encaminhou ofício ao presidente da província indagando: “(...) aproveito a ocasião de pedir a V. Exa. me esclareça se sou ou não obrigado a aceitar pessoas cativas (...)”. Com certeza, alguns dos senhores necessitavam que alguns de seus escravos pudessem trabalhar como caixeiros, ou controladores das mercadorias de seus negócios, o que exigiria uma iniciação rudimentar na escrita e na leitura.

O ensino primário só teve condições de apresentar melhoras depois da Abolição da escravatura, que era o grande freio contra o desenvolvimento da instrução no Brasil, e da Proclamação da República. Mudanças profundas se deram então a partir de São Paulo, que passou a ser modelo de instrução para o país. Começava a era dos grupos escolares, das escolas normais e dos jardins-de-infância, bem instalados e em prédios escolares monumentais. Mudaram as condições materiais, mudaram os métodos de ensino.

Maria Luiza Marcílio é professora titular de história contemporânea da universidade de são paulo (USP) e autora de história da escola em são paulo e no brasil (imprensa oficial do estado/instituto braudel, 2005).

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

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