quarta-feira, 1 de julho de 2009

Hitler boa-praça


Hitler boa-praça
Em livro polêmico, historiador diz que o ditador nazista era grande benfeitor para seus seguidores
por Arthur Felipe Artero
Sempre foi uma história meio mal contada, mas até hoje a maioria dos historiadores preferiu inocentar o povo alemão em geral dos horrores propiciados pelo Estado nazista antes e, sobretudo, durante a Segunda Guerra Mundial. A culpa, dizem eles, teria sido do imenso aparato de propaganda alimentado por Adolf Hitler, a rudeza dos oficiais da SS (a polícia de elite alemã) e os benefícios concedidos a uma minoria das classes mais altas daquela sociedade, ainda traumatizada pela derrota e pela crise subseqüente à Primeira Grande Guerra. A classe média alemã, eles sugerem, estaria isenta de grandes responsabilidades pelas atrocidades – ou mesmo de ter conhecimento do que se passava.

Na-na-ni-na-nã, diz agora o historiador alemão Götz Aly. Para ele, que dá aulas no Instituto Fritz Bauer da Universidade de Frankfurt, Hitler conseguiu cooptar a população alemã não com seus discursos manipuladores ou com a defesa do ódio racial, mas oferecendo benefícios sem precedentes aos seus súditos mais pobres. Implacável contra os inimigos, mas grande benfeitor para seus seguidores – a versão do “Hitler boa-praça” é o novo quadro que se tenta desenhar do ditador que comandou o Terceiro Reich. A nova tese, bombástica porque compartilha de forma mais “democrática” a culpa pelos horrores perpetrados pelo governo alemão, está reunida num livro publicado no ano passado: Hitlers Volksstaat: Raub, Rassenkrieg und Nationaler Sozialismus (“O Estado Popular de Hitler: Roubo, Guerra Racial e Nacional-Socialismo”). “Todo mundo quer falar comigo por causa desse livro. Estive na França, vou a Nova York na próxima semana. Está uma loucura”, disse o historiador Aly, em entrevista concedida no final de março.

Ele resume assim o objetivo de seu livro: “Quero fazer uma pergunta simples que nunca foi realmente respondida: como pôde ter acontecido? Como os alemães permitiram e cometeram crimes de massa sem precedentes, particularmente o genocídio dos judeus europeus?”. Sua resposta, nada confortável, é que isso aconteceu porque a grande maioria do povo alemão foi beneficiada pela matança e, por essa razão, permaneceu omissa aos crescentes horrores do regime de Hitler. Isso vai de encontro à versão corrente (e a favorita de muitos historiadores) de que, com a derrocada do nazismo, os próprios alemães estavam sendo libertados das mãos de um ditador sanguinário e elitista. “Considero o regime nazista uma ditadura a serviço do povo”, diz Aly. O período de guerra, que mostra claramente as outras características do nazismo, fornece a melhor resposta à questão. “Hitler, os líderes regionais de seu partido, o NSDAP, seus ministros, secretários de Estado e consultores cumpriam o papel de demagogos tradicionais, constantemente se perguntando como melhor garantir e consolidar a satisfação geral e comprando diariamente a aprovação pública ou, ao menos, sua indiferença.”

Uma das coisas que mais chamam a atenção é o fato de que foram necessários 60 anos desde o fim do regime nazista para que um pesquisador elaborasse uma nova versão de como a Alemanha se converteu, em 12 anos, de um país como outro na Europa a uma nação genocida. “Este livro poderia ter sido escrito dez, 20 anos atrás”, diz Aly sobre sua obra. “Todos os documentos estavam lá. Nós só não estávamos abertos a eles.”

Os documentos revelam que, durante seu governo, Hitler jamais aumentou os impostos cobrados dos trabalhadores. “Para reforçar a ilusão de que os benefícios estavam garantidos e provavelmente iriam aumentar, Hitler fez com que a comunidade rural, os trabalhadores braçais e os servidores civis de classe baixa ou média não fossem significativamente afetados pelos impostos da guerra. A situação no Reino Unido e nos Estados Unidos era bem diferente. Isentar a maioria dos contribuintes alemães significava aumentar a carga tributária das parcelas da sociedade que tinham grande receita.”

Mas a Segunda Guerra Mundial foi o conflito mais caro jamais levado a cabo em toda a história. Simplesmente aumentar os impostos sobre os alemães ricos não seria suficiente para conservar o bom estado do Exército alemão. Então, de onde saiu o dinheiro para que o Reich mantivesse sua sede de sangue? A única maneira de manter a máquina de guerra alemã lubrificada e sustentar os benefícios sociais oferecidos sobretudo aos “arianos” mais pobres, segundo Aly, era saquear e explorar de forma predatória os recursos dos “inimigos”. Começou com o confisco de bens dos judeus na Alemanha, depois passou à exploração de seu trabalho em regime de escravidão e prosseguiu com a pilhagem dos países invadidos durante todo o período que a guerra abrangeu.

Vasculhando arquivos secretos nazistas, Aly descobriu que os alimentos e suprimentos roubados pelos alemães da União Soviética entre 1941 e 1943 poderiam sustentar 21 milhões de pessoas. Os prisioneiros de guerra soviéticos, nesse meio tempo, morriam de inanição. Ainda segundo Aly, os soldados alemães eram encorajados a enviar regalos para suas famílias, para conquistar mais apoio ao regime. De janeiro a março de 1943, os soldados alemães alocados na frente de batalha em Leningrado (hoje São Petersburgo) enviaram uma soma de mais de 3 milhões de pacotes recheados de obras de arte, objetos de valor e alimentos.

Hitler também usou estratégias mais baratas e popularescas para manter sua população feliz com o governo. Por exemplo, aumentou o número de feriados de forma significativa no país. Resultado: de uma forma ou outra, cerca de 95% da população alemã se beneficiou financeiramente com o sistema nacional-socialista. Por esse motivo, diz friamente, Aly, ficou um tanto mais fácil para os alemães “não olharem” enquanto os judeus eram sistematicamente assassinados em câmaras de gás e 2 milhões de prisioneiros de guerra soviéticos morriam de fome nas mãos dos alemães.

Essa tese também ajudaria a explicar por que Hitler manteve os esforços de guerra em múltiplas frentes, todas ao mesmo tempo e em condições adversas – o sistema de manutenção das condições de vida do povo alemão acabou por se tornar refém das pilhagens e dos avanços sistemáticos do Exército. “Foi por isso que Hitler não pôde parar e se vangloriar confortavelmente em seu papel vitorioso depois da rendição da França, em 1940”, diz Aly. Parar por ali teria levado o Reich à falência, depois dos esforços para impedir a redução da qualidade de vida dos alemães e a desvalorização da moeda. “Dar e receber era a base na qual eles fundaram uma ditadura endossada pela maioria.”

Divergências

A tese de Aly está provocando furor entre os estudiosos. Um dos que refutaram algumas das conclusões do alemão é o historiador e economista J. Adam Tooze, da Universidade de Cambridge, no Reino Unido. “A caracterização do Holocausto como roubo e assassinato é algo com que nos acostumamos em anos recentes. Os tribunais e os historiadores tendem a entender esse processo como um ato de enriquecimento do setor privado. Uma avaliação falsa, como o trabalho de Aly amplamente demonstra.” Tooze afirma que Aly “calcula de forma muito equivocada” a distribuição dos gastos de guerra do regime nazista pela pilhagem dos países ocupados. “Se Aly pudesse provar que a injeção financeira do exterior realmente tornou possível a redistribuição dos custos de guerra, então sua tese seria muito convincente. Pelo menos três gerações de economistas trabalharam nessa questão. Mas Aly faz as contas a seu próprio modo”, diz Tooze, antes de concluir: “Descrever a sociedade da Alemanha nazista como uma ditadura da complacência é não entender o que realmente importa”.

Aly, por sua vez, sustenta que sua metodologia de cálculo é sólida, embora admita que ainda haja “buracos” a serem preenchidos em sua pesquisa. “Acho que em dez anos, por causa desse livro, nosso entendimento será muito diferente do que era, digamos, um ano atrás”, diz o alemão. “Meu livro contém um grande número de descrições curtas e rascunhos, e estou certo de que essas questões que proponho serão investigadas por meus colegas. Isso definitivamente trará muitas informações novas.” O pesquisador da Universidade de Frankfurt deixa claro que, entre os alemães, não havia uma admiração unânime pelo regime nazista. Ao contrário, muitos eram críticos. Mas suas objeções não foram suficientes para criar um verdadeiro movimento de resistência ao Reich dentro do país.

De toda forma, é assustador pensar que um maníaco como Hitler não só conseguiu ascender ao poder democraticamente, mas também estabelecer uma ditadura capaz de “comprar” o apoio ou, pelo menos, o silêncio do povo alemão, diante de tantas barbaridades e atrocidades.

Se, como argumenta Aly, não havia nada de especial com o anti-semitismo alemão antes da subida de Hitler ao poder que justificasse tudo que aconteceu depois, como imaginar que algo parecido não possa voltar a acontecer no futuro? Em entrevista ao jornal alemão Der Spiegel, Aly não diz exatamente o que gostaríamos de ouvir. Pelo contrário. “Imagine se o problemático governo do chanceler alemão Gerhard Schröder pudesse oferecer empregos e mais benefícios às massas”, ele sugere. “Ninguém perguntaria de onde veio o dinheiro e eles iriam ganhar fácil a eleição”, afirma o historiador alemão.

Como o Führer paparicava a tropa
Uma das estratégias mais usadas por Hitler para manter seus soldados concentrados e motivados para a guerra foi oferecer grandes benefícios para eles e para suas famílias. Segundo o levantamento de Götz Aly, as famílias dos membros das tropas mobilizadas recebiam cerca de 85% da renda dada aos combatentes antes da guerra. Em países aliados, como Reino Unido e Estados Unidos, esse valor não chegava nem a 50%. Em muitos casos, as mulheres e as famílias dos soldados alemães passaram a ter mais dinheiro depois do início da guerra do que tinham em época de paz, e elas também foram beneficiadas pelas copiosas quantidades de “presentes” que os soldados traziam de volta em suas licenças ou que chegavam dos países ocupados pelo correio militar. Enquanto as pilhagens e os campos de trabalhos forçados custeavam parte significativa do gasto de guerra alemão, aos países aliados contra o Eixo (Alemanha-Itália-Japão) só restava buscar os recursos por meio de aumento de impostos sobre suas próprias populações. Isso exigiu extrema habilidade política de líderes como o primeiro-ministro britânico Winston Churchill. Em 1940, após a rendição da vizinha França, o líder do Reino Unido discursou para seus cidadãos, instruindo-os a “se preparar para nossos deveres”, de modo que em mil anos os homens ainda digam: “Este foi o nosso melhor momento”.

Saiba mais
Livro

Final Solution

Gotz Aly, Oxford University Press, 1999.

Historiador discute de que forma a sociedade alemã foi conduzida às atrocidades da guerra.

Revista Aventuras na Historia

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