sexta-feira, 17 de julho de 2009

Heroísmo a cavalo

MODELOS DO MEDIEVO - SÉC. X - SÉC. XVI
Heroísmo a cavalo
Como nobres decadentes da Idade Média originaram ideais que resistiram à modernidade e moldaram o Romantismo

POR MARCOS ANTÔNIO LOPES

No tempo das Cruzadas, e bem depois de cessado esse fenômeno histórico de longa duração, a figura do cavaleiro estava ligada ao indivíduo que, pertencendo à nobreza, não herdara bens de família, a não ser os recursos necessários para a aquisição de suas armas, além da dignidade que lhe conferia o direito de sagrar-se cavaleiro. Isso só era possível após um longo aprendizado, que incluía etapas como palafreneiro, pajem e escudeiro de um senhor de expressão no interior da ordem feudal, normalmente um ancião de sua linhagem que, a partir desse rito de passagem, tornava- se seu suserano. Esses fidalgos levavam uma existência apertada no interior da ordem aristocrática feudal. Quando se lançavam à vida aventurosa, faziam-no premidos pelas necessidades de sua condição. As turbulências da juventude feudal têm a sua origem no interior do círculo familiar: “conflito com o pai, conflito sobretudo com o irmão mais velho, herdeiro dos bens paternos. Muitos desses jovens são precisamente filhos mais novos, e essa situação contribui fortemente para o seu vaguear”.1 A condição de secundogênitos em famílias normalmente numerosas mal lhes propiciava os recursos para a aquisição e manutenção de suas armas. Segundo o medievalista francês Edouard Perroy, no século XI uma couraça de cavaleiro custava o equivalente aos rendimentos agrícolas de uma gleba de proporções médias.2 Armar-se cavaleiro e arcar com os custos das peças ofensivas e defensivas de armamento, cavalo apropriado e escudeiro, implicava consideráveis despesas que, no interior da ordem aristocrática, apenas uma minoria privilegiada podia sustentar em sua própria região de origem. Com o tempo, a cavalaria foi tornando-se hereditária, e os grandes cavaleiros passaram a distinguir-se pelos brasões de família.


O cavaleiro de Sayn e os Gnomos, de Emanuel Gottlieb Leutze (1816-1868)

"A ética feudal, a representação ideal do cavaleiro perfeito, portanto, atingiu uma considerável e duradoura influência. (...) Assim, O IDEAL CAVALEIRESCO SOBREVIVEU A TODAS AS CATÁSTROFES QUE FERIRAM O FEUDALISMO NO DECORRER DOS SÉCULOS. Sobreviveu mesmo ao Dom Quixote de Cervantes, que interpretou o problema da maneira mais perfeita pelo seu brilho."

Eric AUERBACH. Mimesis

VIRIS AVENTURAS VIRTUOSAS
Originadas em grande medida por necessidades dessa natureza, as aventuras cavaleirescas não poderiam deixar de ser a história de roubos, de raptos e de outras tantas ações em que a virilidade virtuosa era o principal elemento de definição. Soi Preux era a palavra de ordem dos cavaleiros franceses na Idade Média. E toda rapinagem cavaleiresca podia ficar encoberta já que ser valente era possuir liberdade de ação para garantir o próprio sustento. “Os valores que fundamentam a ideologia cavaleiresca”, escrevia Georges Duby, “a exaltação da proeza, da rapina, da festa dos sentidos e da alegria de viver, evidentemente são construídos a partir de uma recusa resoluta do espírito de penitência e das renúncias pregadas pelos homens da oração.”3 Naturalmente, o catálogo dos valores morais no interior da ordem cavaleiresca possuía o seu grau específico de complexidade. Nesse sentido, as fronteiras que separavam ou uniam as virtudes eram muito tênues e, em certos momentos, valentia e crueldade podiam adquirir sentidos equivalentes.

A justiça da época não via problemas reais em duelos, roubos e assassinatos, considerados pecadilhos sem relevo quando cometidos por cavaleiros. Aliás, o chamado “grito do sangue” — o duelo — era ilícito aos burgueses. No interior da ordem aristocrática, os nobres julgavam-se merecedores de uma morte heróica, a não ser em casos excepcionais considerados hediondos, como a história de um cavaleiro que assassinou a própria mulher, sendo atirado ao rio dentro de um saco costurado. Nesse caso, o crime foi punido com uma morte considerada indigna. Como lembra Perroy, não há pior castigo para um cavaleiro do que ser tratado como vilão. Conforme explica um escritor do Antigo Regime, Montesquieu, a vilania feria os códigos de honra dos cavaleiros medievais e constituí- se em injúria, a ser lavada com sangue. Apenas os vilões poderiam receber golpes na face, pois somente eles combatiam com o rosto descoberto. Um cavaleiro que tivesse recebido uma bofetada no rosto “havia sido tratado como vilão”.



SERVOS DE CRISTO:
a roupagem religiosa e as regras de civilidade legitimavam o estilo de vida de rapina e violência adotado pelos nobres na cavalaria. Acima, São Martin é nomeado cavaleiro, afresco de Simone Martini (1284 – 1344). Ao Lado, Cavaleiro despede-se da amada, de Carl Philipp Fohr (1795-1818)

Aos romances de cavalaria dos finais da Idade Média e dos inícios da Época Moderna coube a tarefa de dissimular as vagabundagens heróicas dos velhos tempos. A literatura criou a ilusão de que as virtudes viris dos cavaleiros andantes eram mesmo a realização de um ideal de justiça. Na teoria, após a investidura, o cavaleiro tornava-se um servo de Cristo e, a partir dos séculos XII e XIII, as guerras que travava tinham as suas normas estabelecidas pela Igreja. A cavalaria era um estilo de vida marcado por regras de civilidade definidas pelas autoridades eclesiásticas: “Desse modo, uma discriminação de interesse capital introduzia-se no velho ideal da guerra pela guerra, ou pelo ganho. Com sua espada, o adubado defenderá a Santa Igreja, particularmente contra os pagãos. Ele perseguirá os malfeitores”.4 A partir do século XI a Igreja assumiu o controle do cerimonial da investidura, e a sagração do cavaleiro ganhou uma nova complexidade. Ao adubamento — do francês medieval adoubement, aqui aplicado no sentido de “equipado”, “munido” dos instrumentos necessários — do cavaleiro antecedia a vigília das armas, na qual ele ouvia a missa para, só depois de uma noite de orações, receber as armas das mãos de um clérigo. “Quanto ao tapa”, lembra o medievalista francês Jean Flori, “ele tem por única função trazer ao cavaleiro a lembrança daquele que o investiu”. Após a investidura, tornava-se um cristão defensor de sua fé. O seu compromisso, assumido com todos os efeitos de uma missão cristã, era o de proteger a Igreja, as viúvas, os órfãos, os peregrinos, os pobres e os oprimidos de todas as extrações. Nobres sem chão, ou melhor, sem a posse de terras, ao sagraremse cavaleiros, saíam em busca de vida aventurosa.


As ordens de cavalaria podem ter surgido a partir da continuidade de tradições germânicas pré-cristãs. A Ordem Teutônica foi criada na cidade palestina de São João do Acre durante as cruzadas, no fim do séc. XII. Acima, Cavaleiros Teutônicos na Polônia (1875), de Wojciech Gerson
BONS TEMPOS DE FÉ
De acordo com a interpretação de alguns medievalistas, os “bons e gloriosos” tempos da literatura cavaleiresca parecem coincidir com os séculos XII e XIII. Essa foi a época de maior esplendor da cavalaria medieval. O prestígio dessa instituição militar nas sociedades de época deu origem a uma rica literatura ilustrativa de seus valores morais. Como instituição essencialmente militar, e sem desconsiderar as suas motivações religiosas, a cavalaria existiu em toda a Europa. Mas foi a França a sua pátria de origem. De fato, a literatura derivada desse fenômeno constituiu-se, durante longo tempo, em um produto francês de exportação. Entretanto, a cavalaria foi igualmente forte na Inglaterra, em Portugal, na Itália e na Alemanha. Na pátria de Dom Quixote ela também existiu, acompanhada de rica literatura, sob a influência direta da tradição francesa. Dentre algumas das ordens cavaleirescas mais importantes destacaram- se a dos Templários, a dos Hospitalários, a de Aviz, a de Calatrava e a dos Cavaleiros Teutônicos. Historiadores da Idade Média acreditam que as matrizes históricas mais remotas das ordens cavaleirescas estejam associadas às instituições militares romanas. Contudo, a tese mais aceita é a de que os seus principais fundamentos são de origem teutônica.

Durante as Cruzadas, a Igreja criou várias ordens de cavalaria, com o propósito de proteção das fronteiras naturais da Cristandade. Com o fim das Cruzadas, as ordens cavaleirescas européias perderam muito do seu campo de ação. Tornando-se parcialmente ociosas, seus combates restringiram-se à participação na luta contra os infiéis, na guerra de Reconquista da Espanha. Foi preciso buscar novas funções sociais para guerreiros desocupados. Em parte, os torneios criados no espaço vazio deixado pelas Cruzadas, reduziram a pressão negativa exercida pelos cavaleiros entre os demais segmentos da sociedade feudal. Contudo, até os finais do século XII, os torneios eram uma espécie de “réplica codificada” das guerras de verdade, o que levou a Igreja a manifestar-se contra a realização dessas atividades. Mas, houve aí um processo civilizador. Como explica um escritor do Antigo Regime, Montesquieu: “A idéia de paladinos protetores da virtude e da beleza das mulheres levou à noção de galanteria. Esse espírito perpetuou-se pela prática dos torneios, que, unindo ao mesmo tempo os direitos do valor e do amor, deram também à galanteria uma grande importância.” A Igreja se engajou na civilização dos costumes de homens cuja força física era inversamente proporcional ao conhecimento e à cultura.

OS ROMANCES DE CAVALARIA VISTOS POR MONTESQUIEU

“Como nos duelos os campeões estivessem armados de todas as peças, e como, com armas pesadas, ofensivas e defensivas, as de certa têmpera e de certa força representassem vantagens infinitas, a crença em armas encantadas de alguns combatentes deve ter transtornado o juízo de muita gente. Disso nasceu o maravilhoso sistema da cavalaria. Todos os espíritos abriram-se para essas idéias. Viram-se, nos romances, paladinos, necromantes, fadas, cavalos alados ou dotados de inteligência, homens invisíveis ou invulneráveis, mágicos que se interessavam pelo nascimento e pela educação de grandes personagens, e ainda palácios encantados e desencantados; em nosso mundo, um mundo novo; e o curso da natureza deixado somente para os homens comuns. Paladinos sempre armados em uma parte do mundo cheia de castelos, de fortalezas e de malfeitores, consideravam uma honra punir a injustiça e defender os fracos. Disso nasceu ainda, nos romances, a galanteria, fundada na idéia do amor ligada à de força e de proteção. (...) Nossos romances de cavalaria enalteceram esse desejo de agradar e deram a uma parte da Europa esse espírito de galanteria, do qual se pode dizer ter sido pouco conhecido pelos antigos”.

MONTESQUIEU. Do Espírito das Leis. São Paulo:
Abril Cultural, 1979. p. 434s.



Como afirma Johan Huizinga, “o pensamento medieval não permitia formas ideais de nobreza independentes da religião. Por essa razão, a piedade e a virtude têm de ser a essência da vida do cavaleiro. A cavalaria, porém, nunca virá a realizar perfeitamente esta função ética. A sua origem terrena impede-a.”5 Tanto isso é um dado de realidade que a história da cavalaria, se é composta por idealismo e nobres princípios, inclui também muita força bruta e complexas maquinações políticas. Os confrontos entre o rei francês Filipe, o Belo, e a ordem dos Templários, demonstram a dureza desses conflitos, em que entrava em jogo algo mais do que profissões de fé. Em meio a uma crise aguda das finanças, o monarca quis apossar- se do patrimônio da Ordem. As diferenças entre o monarca e os Templários culminaram com a condenação de Jacques de Molay e demais eminências da ordem à fogueira, no início do ano de 1314.


Combate de cavaleiros no campo (1834) de Eugene Delacroix


Felipe, o Belo (1268 – 1314), rei da França, tentou centralizar o poder da monarquia com um aparato burocrático. Por conta de uma aguda crise financeira no Estado, o monarca perseguiu a Ordem dos Templários, que concentrava um grande poder financeiro e político
ODISSÉIA DO SACRIFÍCIO
O romance de cavalaria foi o primeiro gênero literário de alcance continental escrito nas línguas vernáculas emergentes. Mas foi além da Europa. No tempo das grandes navegações, romances cavaleirescos desembarcaram nas Américas. No século XVI, livros de cavalaria chegavam às Índias de Castela pelas mãos dos conquistadores espanhóis, conforme afirma Sérgio Buarque de Holanda. Segundo ele, “É fora de dúvida que os romances de cavalaria constituíram a leitura dileta e a inspiração de muitos conquistadores espanhóis”. 6 E essa inspiração foi fonte alimentadora de nossa literatura romântica. Como o próprio Sérgio Buarque analisa, em outro livro, ao explicar o espírito empreendedor típico do colonizador português — pautado pela aventura e a intemperança —, a conversão de símbolos literários medievais europeus para uma adaptação nos trópicos marcou a vida intelectual no Brasil imperial. Em Raízes do Brasil o historiador aponta o esforço da produção literária em ajustar os costumes heróicos dos guerreiros da Idade Média à bravura natural dos aborígines: “(...) escritores do século passado, como Gonçalves Dias e Alencar, iriam reservar ao índio virtudes convencionais de antigos fidalgos e cavaleiros, ao passo que o negro devia contentarse, no melhor dos casos, com a posição de vítima submissa ou rebelde.”7

Nos fins da Idade Média, o romance de cavalaria foi a prosa de ficção de maior sucesso de público, num tempo que viu nascer e frutificar gêneros literários variados. O historiador Edouard Perroy dá uma boa medida da riqueza da criação literária no período final da Idade Média francesa: “Espelhos de uma sociedade, o romance da cavalaria, o conto alegórico, a narrativa histórica ou o lirismo cortês se endereçam a uma aristocracia que permanece orgulhosa de seu passado”.8 Sem dúvida, o gênero agradava aos homens e às mulheres pelo conteúdo fantástico das façanhas de seus protagonistas, em meio a sociedades que cultivavam o herói guerreiro como figura máxima das virtudes cristãs e que, acima de tudo, era opositor e vencedor infalível de infiéis, de bandidos e de monstros.

O ROMANTISMO E OS ROMANCES DE CAVALARIA

No século XIX, os romances de cavalaria reviveriam no fascínio de algumas nações européias por seu passado. E a cavalaria medieval voltou a fazer época. Na França, no auge do Romantismo — primeira metade do século XIX —, houve uma, por assim dizer, ressurreição do gênero romance de cavalaria. No tempo de Michelet, reeditaram-se abundantemente esses livros. Inspirados nessa literatura, alguns romances históricos do século XIX se esforçaram por recriar ações espetaculares de personagens da cavalaria medieval. Foi com o escritor escocês Walter Scott que o romance histórico nasceu. Ivanhoé, de 1820, foi o primeiro romance histórico do romantismo. O romance histórico foi a forma de expressar, literariamente, esses sentimentos, numa época marcada pela ascensão dos nacionalismos. O romantismo carregou o gênero de valores nacionalistas e ele se tornou atraente, tanto para os círculos nobiliárquicos em refluxo, como se constituiu também em matéria de interesse da burguesia ascendente.

O sucesso de Ivanhoé foi tanto que valeu a seu autor um título nobiliárquico. O livro é pura exaltação da Idade Média, do heroísmo saxão, dos castelos, e das aventuras cavaleirescas do século XII: “O amor à luta é o alimento que nos anima; o pó da mêlée é como o ar para nossos pulmões! Não vivemos nem desejamos viver senão para ser vitoriosos e cobrir-nos de glória... Tais são as leis da cavalaria, a que juramos obedecer e a que sacrificamos tudo o que nos é mais caro”, desabafa o cavaleiro saxão Wilfred de Ivanhoé. A obra de Walter Scott é expressão da nostalgia do tempo do autor por suas origens, tempo esse que tendeu a valorizar a Idade Média como um mundo portador de virtudes heróicas expressas por paixões fortes e espontâneas.




O romance de cavalaria agradava tanto homens quanto mulheres e emprestava valores para a aristocracia muito após o fim da Idade Média
O paladino da história cavaleiresca é quase sempre uma espécie de Ulisses cristianizado, o justiceiro que vai salvar a sua amada e o seu povo das ações de usurpadores. Naturalmente, a ação militar exercia fascínio entre homens de costumes rústicos, e o conteúdo romântico da narrativa atingia em cheio ao coração das donzelas sonhadoras. Como demonstrou Huizinga, havia algo mais que força e ferocidade nessa literatura: “O cavaleiro e sua dama, ou, por outras palavras, o herói que serve por amor — é este o motivo primário e invariável de onde a fantasia erótica partirá sempre. É a sensualidade transformada em ânsia de sacrifício, no desejo revelado pelo macho de mostrar a sua coragem, de correr perigos, de ser forte, de sofrer e sangrar diante da amada.”9

TEMA E VARIAÇÕES
Em uma perspectiva abrangente do gênero, pode-se afirmar que os romances de cavalaria foram variações de um só enredo. Eles sempre realçavam as vitórias gloriosas do herói sobre os opressores dos desvalidos. Decorrido certo tempo da narrativa, ouve-se apenas o pranto dos inocentes oprimidos pelos sequazes de algum poderoso de péssima índole, até que o paladino toma ciência das injustiças cometidas. Daí em diante, é a escalada da mais pura energia virtuosa, um verdadeiro festival de punições dos agravos, uma torrente de força que restaura a ordem natural das coisas. Essa base de heroísmo é acrescida de uma complicada trama romanesca cheia de interditos e desencontros amorosos. Isso porque, na composição do romance cavaleiresco, não pode faltar uma intensa paixão, daquelas que removem montanhas.


elemento erótico feminino dava ao herói toda a motivação e força para o sacrifício e o virtuosismo. Sem a dama, a saga do cavaleiro não tem sentido

A presença de uma dama de excepcional beleza é um dos elementos vitais da estrutura do romance, e ainda mais na última fase dessa literatura, na qual se acentua a galanteria. À beleza superlativa da mulher é preciso acrescentar as virtudes do sexo frágil: fidelidade e pureza em primeiro plano. A fi- gura feminina era indispensável ao cavaleiro, porque só se realizavam verdadeiras façanhas se existisse o combustível da paixão por uma donzela. A única recompensa em jogo era a “resposta” que o cavaleiro receberia da dama de seus pensamentos. Mas, junto às experiências fantásticas, foi o erotismo o elemento que, na composição do romance, acrescentou os diferenciais que livraram o gênero da toada monocórdia das façanhas de armas dos cavaleiros. Por sua amada, os cavaleiros faziam promessas como, por exemplo, andar com um dos olhos vendados enquanto não conseguissem dar cabo de uma proeza; por ela deixa-se crescer a barba, à espera da realização de um feito de armas, etc.

As recorrências do fantástico e do maravilhoso — monstros, espíritos, gigantes — completam o tripé dos motivos dessa literatura, que não sabia distinguir o que era realidade efetiva e o que pertencia à criação ficcional: o real e o figurativo fundiam- se num mesmo conjunto de alegorias. Para Jacques Le Goff , “os romances do século XII são, de fato, “simbólicos”, no sentido de que os seus autores nos falam do “sem” (sentido) escondido dos seus poemas”10. A base de apoio do romance cortês é constituída por heroísmo, amor e aventura. Como afirmado acima, o gênero era um sucesso de público em toda a Europa, e mais ainda quando passou a ser escrito em prosa. Segundo Otto Maria Carpeaux, “a prosa, em vez do verso, facilita muito a tradução, torna possível a surpreendente divulgação internacional dos Romans courtois por todas as nações, em todas as literaturas, da Espanha à Islândia, da Inglaterra à Bulgária. (...) Romans courtois em verso e Romans courtois em prosa, juntos constituem a literatura internacional da época”11.

AMADIS DE GAULA, O ROMANCE DOS ROMANCES

Como é sabido, Amadis de Gaula foi o livro de cabeceira de Dom Quixote. É pouco o que se sabe acerca da autoria da obra, a mais célebre da terceira fase da cavalaria medieval. Amadis de Gaula é avaliada como a obra que alcançou a maior perfeição no gênero. A Vasco de Lobeira, escritor galego que viveu no século XIII, é atribuída a paternidade do romance. No entanto, a primeira edição de que se tem notícia é espanhola, dos inícios do século XV. A edição definitiva do Amadis foi fixada por Garci Rodríguez de Montalvo, em 1508.

É certo que existiu uma versão original do Amadis de Gaula no século XIII ou XIV. Autores desse período atestam ter lido a obra em sua estrutura primitiva, ou seja, da forma como a havia concebido Vasco de Lobeira. Mas ela alcançou o século XV apenas em fragmentos. Montalvo deu a sua própria contribuição ao que restou da versão original, acrescendo-a de mais duas partes de sua própria lavra. O resultado das filtragens, interpolações e expansões de Montalvo foi um sucesso retumbante. A excelência das virtudes do Cavaleiro do Leão, a síntese maior da fidelidade no amor, ajudam a explicar a calorosa recepção de tantas gerações de leitores espanhóis.

Amadis é um tipo de herói no qual se fundem os mais peregrinos valores da cavalaria andante, como a força, a fidelidade, a coragem, a fé, etc. A sua personalidade é forte em todos os fundamentos morais. Não há um calcanhar de Aquiles a ressaltar-lhe um mínimo defeito ou qualquer sombra de imperfeição, como no caso do bravo Lancelote, que, por causa de seu amor sacrílego a Guinevère, tornara-se incapacitado para triunfar na demanda do Santo Graal. Assim, não se concebe em nenhum outro modelo, a elevação de princípios desse cavaleiro, símbolo da pureza, reflexo das virtudes de Galahad. Sua bravura é tão evidente, sua força é tão superior, sua paixão é tão casta, a ponto de torná-lo sem rival entre os maiores paladinos de toda a história da cavalaria.

O amor idealizado do príncipe bastardo não revela os traços bem pronunciados daquela sensualidade típica dos romances de cavalaria tradicionais da Idade Média. Talvez, a atmosfera carregada de religiosidade da Contra-Reforma — contexto de circulação da obra — tenha induzido os leitores a enxergar nessa castidade do personagem Amadis um elemento de admiração. De fato, o maior sucesso da obra coincide com o século XVI, o tempo das novas “cruzadas” de Carlos V contra os protestantes, mas também a época das fogueiras de Filipe II aos desgarrados da fé. Esse, por assim dizer, puritanismo do personagem Amadis, parece ter sido um traço muito adequado aos severos tempos do rei Filipe II, época que viu nascer e tomar corpo uma poderosa onda de misticismo. No plano dos sentimentos descritos no Amadis de Gaula tem-se uma prova do grau de paixão concentrada do personagem por sua donzela: seu amor pela princesa Oriana é tão intenso que, em certa ocasião, ele desmaiou apenas ao ouvir alguém pronunciar o seu nome.

Na Espanha, o entusiasmo pelo livro gerou um sem número de imitações oportunistas como, por exemplo, o Belianis da Grécia, o Olivante de Laura, e a trilogia anônima dos Palmerim, obras muito citadas por Cervantes. Rapidamente, o livro ganhou terreno internacional e, em 1512, surgiu uma tradução italiana. Na França, Amadis de Gaula fez enorme sucesso em meados do século XVI, em tradução de 1540, de autoria do nobre picardo Nicolas de Herberay, senhor des Essarts. A exemplo de Cervantes, Montaigne também revelou a sua repulsa ao gênero: “Quanto aos Amadis e outros romances do gênero, não me interessaram sequer quando os li em criança”. O sucesso da obra na pátria de Montaigne atravessou toda a segunda metade do século XVI e, nos finais do reinado de Henrique IV — inícios do século XVII — o livro ainda compunha a biblioteca ideal da aristocracia francesa. No tempo de Henrique IV, era comum referir-se ao Amadis de Gaula como “a bíblia do rei”.


Os romances de cavalaria preenchiam o imaginário dos nobres durante seus longos períodos de ócio, o que forneceu terreno fértil à criação de gêneros menores como tratados de demonologia

PÚBLICO E O HERÓI MEDIEVAL
Mas qual era o público dessa literatura? O historiador holandês Johan Huizinga esclarece que eram escassos os círculos de leitores dos romances de cavalaria, uma vez que “O ideal da elegante vida heróica só podia ser cultivado dentro dos limites de uma casta fechada”12. Na avaliação de Jacques Le Goff , “o romance, obra escrita e destinada a ser lida, exclui deliberadamente o público misto que escutava as chansons de geste. Só as duas ordens maiores, chevalerie e clergie, são comensais do romance”13. Tratou-se, portanto, de um gênero destinado à fruição das elites, de uma literatura a ser desfrutada nos castelos e que, segundo a ironia de Voltaire, destinava-se a preencher o vazio da existência e a alimentar a imaginação de aristocratas ociosos em suas longas tardes de inverno. Foi a “imaginação criativa” nascida e impulsionada por essa literatura dos castelos o que propiciou, segundo o filósofo iluminista, a aparição dos tratados de demonologia e todo um cortejo abundante de fantasmagorias literárias, para a vergonha do gênero humano.

Tendo possuído uma longa existência histórica, o motivo central dessa literatura genuinamente cristã — já que, do ponto de vista de sua estrutura formal, não possuiu antecedentes clássicos como a tragédia, por exemplo — são as façanhas de algum indivíduo cuja têmpera excepcional o credencia a protagonizar ações inconcebíveis a um homem comum. Serão essas virtudes hipertrofiadas do herói da Idade Média o elemento central para o descrédito desse gênero de romance a partir dos inícios do século XVIII, com a aparição de um público leitor interessado em tramas mais próximas das dimensões existenciais da vida.


Antes de concluir estas notas exploratórias, é preciso afirmar que o romance de cavalaria foi um gênero sincrético e cada livro era uma obra aberta que podia reunir, de modo orgânico, alguns traços do ideal aventureiro da antiga epopéia clássica, o sentimentalismo trovadoresco das canções de gesta, certos traços mundanos da literatura picaresca, bem como diversas dimensões de outras formas literárias. O romance cavaleiresco fundia ainda elementos sagrados e profanos: guerras, milagres, virtudes cristãs, amor e aventuras eram os principais ingredientes do gênero. Mas, para além dos motivos explorados pela imaginação, os romances de cavalaria possuíram outros sentidos e outras aplicações. Lucien Febvre explica a importância cultural e a função social dessa literatura: “Os romances de cavalaria não tratam única e exclusivamente do amor. Não tratam única e exclusivamente do casamento. Tratam de problemas tão graves na ordem política e nacional (...). Tratam da honra, e do ponto de honra. Elaboram e espalham uma moral da honra que é individualista em sua essência, e egotista” 14.


Após perderem a relevância militar, no fim da Idade Média, os cavaleiros tornaram-se defasados também como figura ideal. Dom Quixote assinalou o começo do fim de um ideal que, mesmo séculos depois, ainda não morreu por completo
VIDA LONGA, QUEDA INFINITA
Os romances de cavalaria tiveram vida longa e atravessaram, como tradição literária vigorosa, quatro séculos de história. A partir dos séculos XV e XVI, a emergência das monarquias européias foi uma influência negativa para a vitalidade dessa literatura, simplesmente porque essas novas formas políticas tornaram anacrônicas algumas das funções sociais da cavalaria, principalmente o seu valor militar. Como afirma Ian Watt, “As cruzadas haviam terminado; e as novas técnicas militares, as novas armas e as novas formas organizacionais estavam transformando o cavaleiro coberto de ferro em uma relíquia do passado”15. Como também demonstrou Norbert Elias, a cavalaria não correspondia mais às necessidades da guerra. Com a nova relevância assumida pela infantaria nos campos de batalha, os outrora “desprezados soldados a pé”, chega ao seu termo o “monopólio de armas” da cavalaria medieval16.

A esses romances coube celebrar os triunfos de uma época que, dramaticamente, encerrou-se com Dom Quixote. Há quem pense que a idealização da vida dos cavaleiros na época do feudalismo já era, naquele tempo, um claro reflexo do decadentismo político dos barões feudais. Aos romances teria restado a tarefa de lustrar o prestígio perdido.

Já em altura bem avançada da história, a nostalgia dos tempos idos ainda contagiava a aristocracia francesa do século XIX. Há muito encerrada a época das grandes aventuras dos cavaleiros, o romantismo ofereceu uma oportunidade para acalentarem-se as glórias dos nobres tempos de outrora. Sob esse aspecto, o testemunho literário de Stendhal, atento observador dos costumes de sua época, é uma fonte preciosa. Em O vermelho e o negro observa-se Julien Sorel — o pobre aldeão boa-pinta, promovido a secretário do influente Marquês de La Mole — zombar de aristocratas passadistas que se jactavam de possuir antepassados que acompanharam São Luís nas Cruzadas

REFERÊNCIAS
1 LE GOFF, J. “Esboço de análise de um romance cortês”. In: ——. O maravilhoso e o quotidiano no Ocidente medieval. Lisboa: Edições 70, 1985. p. 152.
2 Cf. PERROY, E. “A nova primavera da Europa: séculos XI-XII”. In: ——. A Idade Média. São Paulo: Difel, 1974. p. 13s.
3 DUBY, G. “História social e ideologias das sociedades”. In: Jacques LE GOFF & Pierre
NORA. (Org.). ——.História: novos problemas. In: LE GOFF, J. & NORA, N. (Org.). —— .História: novos problemas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1998. p. 142.
4 BLOCH, M. “Le code chevaleresque”. In: ——. La société féodale. Paris: Albin Michel, 1968. p. 443.
5 HUIZINGA, J. “A idéia da cavalaria”. In: ——. O declínio da Idade Média. São Paulo: Verbo/Edusp, 1978. p. 65.
6 HOLANDA, S.B. Visão do paraíso. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 33.
7 HOLANDA, S.B. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 56.
8 PERROY, E. “Les transformations de la société chevaleresque”. In: ——. Histoire de la France. Paris: Gallimard, 1950. p. 148.
9 HUIZINGA, J. “O sonho do heroísmo e do amor”. In: ——. Op. cit., p. 74.
10 LE GOFF, J. “Esboço de análise de um romance cortês”. In: ——. Op. cit., p. 129.
11 CARPEAUX, O.M. História da literatura ocidental. Rio de Janeiro: Edições O Cruzeiro, 1959. p. 298.
12 HUIZINGA, J. “O valor político e militar das idéias da cavalaria”. In: ——. Op. cit., p. 89.
13 LE GOFF, J. “Esboço de análise de um romance cortês”. In: ——. Op. cit., p. 148.
14 FEBVRE, L. Michelet e a Renascença. São Paulo: Scritta, 1995. p. 421.
15 WATT, I. Mitos do individualismo moderno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. p. 68.
16 Cf. ELIAS, N. O processo civlizador: formação do Estado moderno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993. Vol. 2. p. 21.

Revista Leituras da Historia

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