terça-feira, 14 de julho de 2009

A Bahia de São Salvador de todos os santos e africanos

A Bahia de São Salvador de todos os santos e africanos
Investigações sobre o tráfico, redes de comércio e as sociedades da África Ocidental relevam identidades africanas na Bahia dos séculos XVII e XVIII

POR FLAVIO GOMES E PIETRA DIWAN

Pintura de Johann Moritz Rugendas, publicada em 1835: crinistas, tratadistas e viajantes notaram bem a presença africana na Bahia


A presença africana na Bahia colonial foi bem notada por todos os cronistas, tratadistas e viajantes contemporâneos. Fosse no árduo trabalho dos engenhos do Recôncavo, fosse nas estreitas e sinuosas ruas de Salvador, lá estavam os cativos e libertos africanos. Tamanho era seu peso demográfico, que François Frezier, em 1714, descreveu Salvador - então capital da América Portuguesa - como uma "nova Guiné".
Na segunda metade do século XVI e ao longo do XVII, a região centro-ocidental africana forneceu a maioria dos cativos da Bahia, no que ficou conhecido como o Ciclo de Angola, pois boa parte desses escravos foram exportados pelo porto de Luanda e também de outras regiões, como o Congo e Benguela. Dos mais variados grupos étnicos, uma vez no Brasil, foram reunidos em nações, identidades forjadas em parte pelo tráfi- co e que correspondiam, grosso modo, aos portos de embarque ou mesmo a reinos, etnias, línguas etc. Embora não correspondessem necessariamente aos grupos étnicos de diversas sociedades africanas, tal forma de organização acompanharia o africano por todo o cativeiro e diáspora. Listagens de inventários post mortem apontam para um universo étnico diversificado, e que bem representa o perfil centro-ocidental do século XVII: angolas, congos, benguelas, anjicos, bambas, monjolos, motembos, matambas, cassanjes, quissamas, rebolos, libolos, dongos, ganguelas, massanganos, quimbundos.

Os cativos tiveram um papel fundamental na exploração econômica de áreas em que a população aborígine era escassa

Tal panorama, porém, iria se modificar no século seguinte. A partir da tomada de Angola pelos holandeses, em 1641, os traficantes baianos deslocaram as suas redes de comércio para a região ocidental, conhecida na documentação portuguesa como Costa da Mina, região que ficava a leste do Castelo de São Jorge da Mina (também tomado pelos holandeses, em 1637), entre o rio Volta e Cotonu. A Bahia oferecia, como produto de troca, o fumo, o que ajudou os baianos a ali estabelecerem uma hegemonia comercial. Assim, os principais grupos étnicos chegados na Bahia da África Ocidental eram denominados minas, uma classificação genérica que designava africanos importados dessa região, e os chamados ardas (ou ardras), embarcados pelos portos do reino de Alada. Após a retomada de Angola pelos portugueses, em 1648, tentou-se recuperar o tráfico com Angola. Em 1685, uma epidemia de "bexiga", ou varíola, ocorrida justamente em Angola, ajudou a fortalecer ainda mais o comércio entre a Bahia e a Costa da Mina. O aumento do preço dos cativos de Angola, em uma conjuntura de baixa do valor do açúcar no mercado europeu - em razão da concorrência do açúcar produzido nas Antilhas -, também muito contribuiu para as mudanças comerciais negreiras. Na colônia, a descoberta de ouro nas Minas Gerais, na última década do século XVII, consolidou uma preferência pelos africanos ocidentais minas, posto o conhecimento que teriam da prospecção aurífera. Assim, constituíram fatores que determinaram o estabelecimento de um "fluxo e refluxo" comercial intenso entre a Bahia e a Costa da Mina.
Os pedidos de licença para o comércio de escravos - depositados no Arquivo Público da Bahia - evidenciam originais transformaçôes nas rotas comerciais negreiras até então hegemônicas. Entre 1650 e 1681, todas as 31 viagens registradas para o comércio de escravos foram destinadas para Angola. No pedido de 1678 a 1702, 202 viagens são registradas para a Costa da Mina, enquanto há apenas 12 para Angola, sendo que, em todos esses poucos registros, Angola aparecia como um local de escala para embarcações que seguiam para São Tomé e para a própria Costa da Mina. Esse padrão irá se manter durante todo o Setecentos, como demonstram os alvarás.

OCIDENTALIZAÇÃO DA MÃO-DE-OBRA

Cena de rua em Salvador (BA), feita no ano de 1900. A presença de negros africanos, escravos libertos ou cativos, fazia-se notável. A cidade chegou a ser descrita como uma "Nova Guiné"

No século XVIII, os minas se tornaram a maioria dos escravos africanos em toda a Bahia. Sua presença, entretanto, fazia-se sentir com mais força em Salvador. De 612 escravos africanos relacionados nos inventários da primeira Assim como ocorreu com os africanos centro-ocidentais no século XVII, havia - no tocante aos africanos ocidentais - considerável diversidade étnica, com um universo variado de nações: benins, cachéus, couranas, cabo-verdes e são-tomés. Além disso, surgiam com maior freqüência moçambiques e mocorongos, africanos da África Oriental. Nessas classificações e denominações diversas, podemos encontrar termos que podem remeter para grupos étnicos do interior africano, como guiné calumbê e ozobenim. É também nesse período que aparecem os primeiros registros de africanos denominados nagôs (0,65%), nação africana que seria responsável, em 1835, pela Revolta dos Malês. Enfim, entre os séculos XVII e XVIII, localiza- se na Bahia a transição demográfica de natureza étnica da predominância de africanos centro-ocidentais (especialmente angolas, congos, massanganos e matambas) para aqueles africanos ocidentais (jejes, nagôs, tapas e bornu). Na segunda metade do século XVIII e as primeiras décadas do século XIX, os africanos ocidentais vieram a conformar definitivamente o perfil étnico e cultural da população africana urbana, deixando marcas indeléveis em Salvador até nossos dias.

CARLOS FRANCISCO DA SILVA JÚNIOR é aluno de Mestrado em História da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

Revista Leituras da Historia

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