sexta-feira, 19 de junho de 2009

Sinai - uma paz particular

Ilhada em um mar de conflito, a península oferece prazer, refúgio espiritual e - potencialmente - harmonia.
Por Matthew Teague
Foto de Matt Moyer

As águas azuis do golfo de Aqaba ondulam entre a Arábia Saudita, na margem distante, e os resorts que ladeiam a costa leste da península do Sinai, no Egito. Terra santa e campo de batalha há séculos, essa cunha de deserto tornou-se uma meca para viajantes.


Tudo parecia tranquilo no vilarejo costeiro de Taba. Naquela noite, como em todas as outras, o Sol baixou em silêncio no poente por trás das montanhas do Sinai e a escuridão deslizou pelas encostas, ganhando velocidade quando se aproximou do mar. No resort do Hilton, maiôs deram lugar a vestidos longos e blazers. O vento do deserto soprou frio na noite de outubro, e o pessoal do hotel esvaziou a piscina de água do mar até a manhã seguinte.

O resort no mar Vermelho era uma miniatura do sonho do Sinai - o sonho de um Oriente Médio onde inimigos trocam terra por paz e terrorismo por turismo. Britânicos dirigiam
o hotel, egípcios trabalhavam, europeus e russos - e muitos israelenses - frequentavam o lugar. As bandeiras do Egito e de Israel adejavam lado a lado na entrada. É verdade que, um mês antes, o governo israelense alertara sobre um ataque terrorista iminente, mas avisos desse tipo já eram corriqueiros. Ali os visitantes podiam esquecer que, por cerca de meio século, a posse da península se alternara entre os dois inimigos imemoriais. Nas guerras de 1956, 67 e 73, Egito e Israel tomaram de assalto o Sinai. Em 1979, os dois países assinaram um acordo de paz, e Israel mais uma vez cedeu o controle ao Egito. Trinta anos depois, o pacto ainda vigora.

O Sinai sempre foi uma terra de paradoxos - um lugar de beleza etérea, de discórdia e de sinfonia. Apesar do valor geopolítico da península, o mais numeroso grupo de sua população é o que menos se importa com isso: os beduínos. Durante os vaivéns das batalhas nas últimas décadas, esse povo tribal fundiu-se na paisagem a ponto de parecer quase uma feição da natureza, como as dunas pisadas pelos conquistadores.

Com o avançar da noite, os hóspedes foram migrando dos restaurantes para o cassino, o bar e a discoteca. Todos celebravam feriados relacionados ao Sinai no fim de semana: os egípcios lembravam a ofensiva de seu Exército na Guerra do Yom Kippur, em 1973, e os israelenses comemoravam a jornada bíblica de seus ancestrais pelo deserto. Surgira havia pouco a moda de chamar esse litoral de Riviera do mar Vermelho, por causa do hedonismo luxuoso e da descontração que contrastavam com o resto do Egito.

A fronteira israelense fica a poucos metros. Do outro lado dela, em Elat, o bombeiro Shachar Zaid, que estava de folga, saiu com sua mulher de um cinema, onde haviam assistido a um filme americano sobre bombeiros. Foi quando um som abafado perpassou a cidade: buuummm.

Zaid correu com a esposa em direção à fronteira, de onde vinha o som. No caminho, viu seu chefe, que também estava de folga, vestindo o uniforme em seu carro, e seis outros bombeiros chegando com as três viaturas da cidade. Zaid subiu ao teto de um dos caminhões, e eles aproximaram-se da fronteira sem saber o que se passava. Soldados egípcios, também na ignorância do que estava acontecendo, bloqueavam o posto de controle armados de fuzis automáticos.

Fitando-se através de uma linha invisível, egípcios e israelenses viram-se em um súbito dilema internacional. O modo como decidiram agir naquela noite de 2004 se tornaria emblemático de tudo o que acontecera até então no Sinai e de tudo o que o futuro reservava. Os egípcios tiveram de decidir em defender ou não sua soberania. E os bombeiros israelenses também precisaram tomar uma decisão: fazer uma incursão de oito homens em solo árabe.

Há milênios a península do Sinai serve de ponte. Não só a terrestre que liga um continente a outro mas também uma ponte metafísica entre o homem e Deus. Acredita-se que esse deserto triangular tenha servido de refúgio para os antepassados das três grandes religiões monoteístas. Diz a Bíblia que, no Sinai, Moisés recebeu sua missão de Deus, cuja voz saiu de dentro de uma sarça ardente, e depois disso andou pelo deserto com seu povo por 40 anos. Quando criança, Jesus fugiu com a família para o Sinai para escapar da ira do ciumento rei Herodes. Os primeiros cristãos esconderam-se de seus perseguidores romanos nas ermas montanhas da península, onde fundaram algumas das primeiras comunidades monásticas.

O mais antigo mosteiro em contínua atividade do mundo, Santa Catarina, foi erguido no sopé do monte Sinai, onde se acredita que Moisés tenha recebido os Dez Mandamentos. Ele é o cerne espiritual do Sinai. "Essa região é a única no mundo onde temos ícones do século 6 até o presente", diz padre Justin, monge do mosteiro. De batina preta, barba a meio caminho da cintura delgada e semblante exaltado, tudo nele lembra o próprio Moisés descendo com as tábuas de pedra. O mosteiro é envolto em picos montanhosos de faces afogueadas. Em meio à basílica, à biblioteca e a outras estruturas, o monge apontou para outra construção, com um pequeno crescente no topo: uma mesquita.

Segundo a tradição monástica, no século 7 o profeta Maomé também se refugiou no Sinai. Hoje os monges vivem ao lado de beduínos muçulmanos que trabalham no mosteiro, e padre Justin diz que essa convivência ilustra algo de especial nesse lugar em que os opostos se encontram. "Quando analisamos os conflitos do mundo atual, vemos que muitos giram em torno do Oriente Médio e de tensões que existem aqui há milênios", diz ele. "Por isso, o Sinai é um símbolo importantíssimo, pois temos cristãos fervorosos e muçulmanos muito fervorosos; somos divididos pela língua, pela religião, pela cultura e por tantas coisas que podem gerar conflito e, no entanto, reina aqui surpreendente harmonia."

O segredo é simples, supõe ele: "Acho que existe uma reverência comum pelo Sinai como uma montanha sagrada". Ou seja, o interesse comum suplanta as diferenças.

Catorze séculos atrás, Maomé concordava. Depois de coabitar no mosteiro com os religiosos, ele fez um voto de proteção aos "monges do monte Sinai e […] aos cristãos em geral", do qual padre Justin guarda uma cópia manuscrita na antiga biblioteca. Maomé declarou: "Sempre que os monges, em suas viagens, pousarem em qualquer montanha, morro, aldeia ou outro lugar habitável, no mar, em desertos, em qualquer convento, igreja ou casa de oração, estarei no meio deles". E mais a propósito: "Ninguém tomará armas contra eles, mas, ao contrário, por eles os muçulmanos farão guerra".

Um jovem radical - um dentista, por incrível que pareça - decidiu, em 2002, formar um grupo terrorista no Sinai. Os detalhes de suas atividades iniciais só vieram à tona depois de questionáveis interrogatórios por autoridades egípcias, que, dizem, utilizaram tortura. Mas a história é familiar em seus aspectos gerais: Khalid Al Masaid formou a Tawhid wa Jihad ("Unidade e Guerra Santa") para revidar contra Estados Unidos e Israel, que, a seu ver, haviam humilhado o mundo árabe. Al Masaid via o acordo de paz que o Egito firmara com Israel em 1979 como um conluio com o Ocidente. Esse acordo levou à criação da Força Multinacional e Observadores, um grupo em prol da manutenção da paz nas fronteiras entre Egito e Israel. Para Al Masaid, os militantes da paz eram mais que uma afronta: eles barravam-lhe uma possível ajuda palestina. O dentista precisava de seguidores, jovens hostis dispostos a atacar autoridades, turistas, Israel, o próprio Egito. Encontrou-os entre os residentes no Sinai.

Aponte terrestre do Sinai deu passagem a profetas e peregrinos, mercadores de artigos e de ideias. E, como todas as pontes, ela também tem valor estratégico na guerra. Exércitos marcharam através de suas dunas desde que os homens começaram a lutar: faraós com seus carros de combate, persas, gregos, romanos. Conquistadores islâmicos e sua nêmesis, os cruzados europeus. Turcos otomanos, britânicos. Todos levaram a areia do Sinai na sola.

O mais recente episódio de guerra foi entre egípcios e israelenses e moldou a vida atual na península. Modelou a topografia - casamatas e trincheiras ainda se cruzam no horizonte - e também, de modo mais inesperado, a paisagem humana. Embora a atual trégua tenha começado há 30 anos, muitos egípcios continuam achando que os beduínos, esses pastores do deserto que são mais de metade dos 360 mil habitantes do Sinai, colaboram com o inimigo. Acontece que os beduínos não demonstram lealdade a governo nenhum, egípcio ou não-egípcio.

Quando deixo o monte Sinai, um policial me faz parar no acostamento em um dos principais postos de controle da polícia egípcia. Ele diz que é "do Egito", o que, no Sinai, significa que ele é do Cairo, e quer carona para atravessar a península. Atos como esse são comuns no Egito, onde a polícia é imbuída de um poder universal. Mais surpreendente é o que acontece quando passamos por um aqueduto que as autoridades do país instalam no Sinai, parte de um programa que os moradores chamam de "cairificação" da península. "Nunca dê carona a eles", diz o policial, indicando uma família de beduínos com suas cabras. Balança a cabeça pelo retrovisor. "Eles são traiçoeiros. Não são seres humanos.

Ao contrário dos que reverenciam os beduínos em muitos outros países árabes - pense na realeza saudita se sacudindo na tradicional dança beduína da espada ou no líder líbio armando uma tenda durante uma visita a Paris -, os egípcios nunca prezaram as tribos do deserto. Os beduínos migraram do leste; os habitantes do Nilo vieram do oeste. Os beduínos percorreram vastos territórios, enquanto a cultura do Nilo é agrária, valoriza o cultivo e a quietude e desconfia das andanças nômades.

Na década de 1970, depois que Israel tomou o Sinai na Guerra dos Seis Dias, o governo israelense - também incomodado com cidadãos sem documentos que não respeitam fronteiras - fixou os beduínos no lugar com empregos, pagando-lhes, entre outras coisas, para cuidar das imensas reservas naturais do Sinai.

Em Israel, eu conhecera Dan Harari, funcionário da burocracia que governou o sul do Sinai durante a administração israelense. No escritório de sua casa havia uma foto dele sentado a uma destoante escrivaninha instalada em pleno deserto, assinando cheques para uma fila de beduínos que continuava além da moldura. "Sabíamos que não tínhamos condições de controlá-los", disse, "por isso, resolvemos usar o conhecimento que eles tinham do lugar". Deu certo, comentou Harari, contando histórias sobre um beduíno que ele "amou como a um irmão". Depois que Israel cedeu o controle do Sinai em 1982, o governo egípcio cancelou o programa para os beduínos e, para se assenhorear daquelas terras valiosas, criou a Autoridade para o Desenvolvimento do Turismo.

Perto de uma nascente nas montanhas, converso com uma miúda anciã beduína chamada Salima. Ela acha que deve ter uns 70 ou 80 anos. Pensa nos conquistadores que se revezaram na península mais ou menos como nas estrias que se alternam nas ravinas ao redor de sua tenda de peles de cabra: apenas marcam a volúvel passagem do tempo. "Era melhor quando os israelenses estavam aqui", diz ela sacudindo em desafio a mão que empunha uma fieira de contas. O gesto é contra o policial subalterno postado a poucos metros. "Eles destruíram nossos costumes", grita ela com a bravura de sua intocável idade avançada. Seu véu agita-se com a respiração ofegante. "Eles nos tocaram da nossa terra."

Seu poço está quase seco, o chão de sua casa cobre-se de dejetos de cabra. Nos tempos de migração, ela poderia se mudar durante a estação inclemente. Agora não tem para onde ir. O policial encolhe-se diante da ira da velha. Ele entendeu o que ela quis dizer sobre a terra. E sabe bem quanto essa raiva pode se mostrar explosiva.

No coração do deserto na primavera de 2004, reuniram-se homens que traziam um curioso conjunto de equipamentos: celulares, timers de lavadora de roupa, cilindros de gás e dinamite. Os explosivos provinham do deserto, onde haviam sido descartados depois do abrandamento das tensões com Israel. Um extremista religioso chamado Yiad Salah, seguidor do dentista Al Masaid, recrutara esse pequeno grupo, que incluía um trabalhador diarista, um consertador de eletrodomésticos e um metalúrgico. Outros eram desempregados, e a maioria vinha da cidade de El Arish, na orla norte do Mediterrâneo. Em meio às dunas, os homens ensaiaram seu plano detonando explosivos na areia.

Buuummm.
Buuummm.
BUUUMMM.

As duas mulheres seminuas no palco entram no ritmo do DJ, e atrás delas a tela enorme mostra duas cerejas tremulando no caule. Acima da multidão, outras duas mulheres se enrolam e se dependuram em longos panos de seda, quase despercebidas pelos 2 mil jovens que dançam embaixo. Um ar de expectativa domina o clube Pacha, uma expectativa misturada a álcool e desodorante. Todos olham para um cano no alto até que - sim, finalmente - dele jorram bolhas e espuma branca. De algum lugar, de toda parte, aparecem jovens em traje de banho ou roupas íntimas que pulam na espuma, depois se atiram na piscina do clube. "Onde conseguiu as dançarinas?", pergunto a Adly El Mestekawy, o dono do clube. "Elas não são egípcias."

El Mestekawy ri balançando-se ao ritmo da música. "Rússia", responde

Depois de o Egito reaver o controle do Sinai, empresários do delta do Nilo esenvolveram o litoral com rapidez, importando do Cairo valores culturais, mão de obra, matéria-prima, ritmos. A península tem um dos melhores pontos de mergulho do mundo, e atrai jovens da Europa e de mais longe. As pastagens dos beduínos deram lugar a hotéis internacionais, clubes, lojas, bares. A cultura tradicional curvou-se à suntuosidade. O Sinai rachou-se, e a fratura entre a costa e o interior pode ter fendido a crosta da Terra.

El Mestekawy, natural do Cairo, foi pioneiro na transformação de Sharm el Sheikh, próximo ao extremo sul da península. Em seu escritório, longe do baticum da pista de dança, ele desdobra uma gigantesca fotografia local de 20 anos atrás: não se vê cidade nenhuma. A foto mostra apenas uma atarracada construção cinzenta, algumas tendas, o mar e o interminável deserto. "Estamos aqui", diz ele apontando o bloco cinzento. "E onde estão os beduínos agora?", pergunto. El Mestekawy abana a mão na direção oeste. "Nas montanhas", responde.

Nos calçadões vizinhos, milhares de turistas, de óculos de sol à meia-noite, aglomeram-se sob palmeiras eletrificadas bebericando mango smoothies (iogurte batido com manga). Os únicos egípcios servem drinques e distribuem folhetos. Eles têm autorização de trabalho e podem passar pelos postos de controle na entrada da cidade.

A cena na praia no dia seguinte poderia estar acontecendo em Ibiza ou Saint-Tropez, exceto por um lembrete de que de fato estamos no Oriente Médio: banhistas de topless esforçam-se para ignorar a solitária figura coberta dos pés à cabeça por um niqab, o véu preto das mulheres muçulmanas. Ela está sentada em uma laje de ônix enquanto o marido se esbalda nas ondas.

O assistente de El Mestekawy, Timi, leva-me num utilitário esportivo para ver o próximo empreendimento do chefe. Ao dobrarmos uma esquina, assoma um imenso castelo de areia.

"O maior do mundo", diz Timi. Quando estiver terminado, será uma área de lazer marítimo, com aquário, parque aquático e restaurantes.

Subimos ao castelo, driblando os operários cairotas que trabalham na obra - que, aliás, não é feita de areia, mas de coral fossilizado. No topo, uma vista para o mar Vermelho e seus tesouros: mil espécies de peixe, recifes de coral, manguezais. Esse belo e frágil ecossistema submarino deu a partida no desenvolvimento da área, e agora o Sinai passou à frente do Cairo e do Egito continental como principal destino turístico do país. A população de Sharm el Sheikh decuplicou em 20 anos, enquanto o número de turistas passou de 8 mil por ano a mais de 5 milhões.

Quando o Egito assumiu o Sinai, o Estado, ávido por patentear a posse do território, demoliu acampamentos e habitações de beduínos para abrir caminho aos investidores do Cairo. Hoje 100% do litoral de Sharm el Sheikh pertence ao ramo imobiliário. As tribos beduínas respeitam um princípio chamado wadaa al-yad - literalmente, "pôr as mãos" -, segundo o qual um homem possui a terra quando cuida dela, irrigando-a ou plantando árvores. Assim, alguns beduínos construíram alicerces de concreto ao lado de suas casas, esperando que aquele sinal de permanência pudesse sensibilizar o governo. Mas também ali passaram os tratores.

Um poderoso líder tribal beduíno, o xeque Ishaysh, não arredou pé de seu acampamento no litoral norte de Sharm el Sheikh, no vilarejo de Nuweiba. "Vieram com um homem rico que disse ter comprado minha terra", conta Ishaysh. Nada disso, falou o xeque. O homem rico não cavou poços, não plantou árvores. "Vou morrer aqui, eu disse a eles." Ishaysh conseguiu prevalecer sobre os incorporadores, mas muitos de seus compatriotas partiram para o interior.

Enquanto isso, a cairificação não ficou só em cimento e canos. Poucos já estudaram de perto os beduínos do Sinai, mas Clinton Bailey, um respeitado antropólogo, passou quatro décadas entre as tribos. Sua conclusão é desoladora. "Na década de 1970 havia muitos poetas compondo poemas tradicionais com conteúdo contemporâneo. Hoje não há nem um sequer que mereça o nome de poeta", diz. "Ninguém mais ensina as filhas a tecer tapetes e cortinas para a tenda. Os rapazes sabem cada vez menos sobre as relações entre as tribos. A dieta não é mais típica. Poucos agora conhecem histórias e contos tribais."

Chegar a El Arish, onde mora a maioria dos que ensaiaram o plano no deserto, não é fácil. As estradas que ligam o sul ao norte do Sinai são consideradas "de segurança", e proibidas a visitantes. Contornei-as seguindo para o oeste da península, declarando nos postos de controle que ia para o Cairo; entrei na fila da balsa que atravessa o canal de Suez até a capital e me desviei em direção à costa do Mediterrâneo.

O norte parece separado em muitos aspectos além do burocrático. Até a paisagem não tem semelhança com as montanhas róseas do sul. Dunas sucedem-se até o horizonte, invadem estradas e distorcem a perspectiva do observador. Tudo parece muito distante no norte do Sinai.

O governo egípcio já considerou bastante promissor o litoral norte. Uma geração atrás, El Arish brilhava como uma joia no Mediterrâneo, com praias largas e renques de palmeira em que nasciam tâmaras carnudas. A cidade caiu nas graças do Estado, e boas escolas foram erguidas em meio a resorts e estabelecimentos comerciais. Geograficamente, El Arish é mais adequada que o sul para a indústria do turismo, com seu mar raso e sua topografia plana que desemboca em praias arenosas em vez de montanhas íngremes despencando em recifes de coral.

Mas há duas décadas a explosão imobiliária do sul desviou todos os recursos do norte. E tumultos em Gaza, a 48 quilômetros de distância, afastaram os últimos turistas estrangeiros.

Hoje quem entra em El Arish tem a sensação de estar em um banquete fantasma, com parte da comida ainda nos pratos e cadeiras vazias onde deveriam estar os convidados. Passo por um posto de turismo fechado e por um calçadão com resorts de frente para o Mediterrâneo abandonados. No centro da cidade, rapazes na calçada fitam a rua como quem espera em vão por alguma coisa. Mais de nove em cada dez pessoas entre 20 e 30 anos dali não têm emprego fixo, muito menos esperança de conseguir licença para trabalhar em resorts do sul.

Quem chega a El Arish depois de ter passado várias semanas em outras partes do Egito não demora a notar algo estranho: parece não haver mulheres. Em outras partes do Sinai, todas as divisões sociais se baseiam em classe e tradição, e não em religião, e as mulheres aparecem em público tanto quanto os homens. Mas El Arish resvalou para uma vertente conservadora do islamismo que mantém as mulheres em casa, quase sempre cobertas. Esse é o meio no qual Iyad Salah recrutou seus conspiradores, entre eles os irmãos Flayfil, Muhammad e Suleiman.

Encontro a casa dos Flayfil em um vilarejo pobre na periferia de El Arish. Um menino vai correndo chamar o idoso xeque Ahmed Flayfil, que entra piscando no pátio esbranquiçado de luz solar. Ele não se senta nem serve chá, desrespeitando assim o costume beduíno. Depois de me fitar por um bom tempo, indaga: "Você veio aqui perguntar sobre meus filhos mortos?"

Vim.

O xeque suspira e crava os olhos nas dunas infinitas. Na cidade, pessoas contaram que os filhos dele tinham deixado crescer longas barbas e se retiravam para fazer suas orações no deserto em vez de ir à mesquita. O xeque renegara os filhos. Por fim, ele diz: "Eles morreram".

E sai sem dizer nenhuma outra palavra.

Houve mais duas bombas naquela noite de outubro. Em Nuweiba, Asser El Badrawy estava na sacada de seu hotel olhando para o norte, na direção de um acampamento de mochileiros. Viu um violento deslocamento de ar subir do acampamento. Instantes depois chegou o som da explosão. Embaixo, na praia, seus hóspedes, quase todos israelenses, viraram-se e viram uma pequena nuvem em forma de cogumelo se formando acima do local da explosão. Uma bomba nuclear, pensou El Badrawy. Aquela nuvem não fazia sentido no pacífico Sinai. Então, na irracionalidade daquele instante, ele correu para o banheiro e se escondeu, esperando a rajada de vento que nunca chegou.

Na estrada à margem do acampamento, um homem havia tentado entrar de carro, mas se assustou no último momento ao ver um guarda chegar com uma lanterna. O homem deu ré com pressa e o carro atolou numa duna de areia. O homem saiu, afastou-se e detonou o carro por controle remoto. Em um acampamento próximo, outro motorista estacionou perto de um restaurante com teto de folha de palmeira e explodiu seu veículo, destruindo o restaurante e várias cabanas de bambu. A explosão matou dois israelenses e um beduíno. Esse motorista também se afastou sem ser visto.

O terceiro alvo era o Hilton, mais ao norte, na fronteira com Israel. Os dois homens no veículo que se aproximou do saguão - o líder, Salah, e o diarista Suleiman Flayfil - poderiam ser qualquer coisa: novos hóspedes chegando, empregados do hotel, entregadores. No interior do Hilton, os hóspedes dançavam, comiam ou dormiam. Salah e Flayfil estacionaram e saíram andando. Dentro do carro, um pacote de dinamite ligado a um timer de lavadora contou seus últimos segundos. O veículo explodiu com tremenda força, destruindo todo o lado oeste do hotel e trazendo ao chão como avalanche dez andares com tudo o que havia dentro. Carros no estacionamento foram atirados para longe e se incendiaram. Estilhaços de vidro e móveis voaram em todas as direções. Escadas espiraladas de concreto juncaram o terreno.

A bomba matou 31 pessoas e feriu muitas mais, entre elas israelenses, egípcios e russos. E também matou Salah e Flayfil: o timer detonou a bomba antes que deixassem a área do hotel. O governo egípcio reagiu com sua peculiar forma de investigação, prendendo milhares de suspeitos - os números vão de 2,5 mil a 5 mil -, incluindo muitos beduínos da região de El Arish.

Dez meses após as explosões, o irmão Flayfil sobrevivente, Muhammad, morreu em um tiroteio com a polícia. Três outros beduínos suspeitos - Younes Mohammed Mahmoud, Osama Al Nakhlawi e Mohammed Jaez Sabbah - foram capturados e condenados à morte por tribunais de segurança do Estado, sem direito a recurso.

Próximo a El Arish, no mesmo vilarejo de tijolos de barro onde o pai dos Flayfil, os repudiara, conheço os pais de Osama Al Nakhlawi em sua pequena e asseada casa. Eles sentam-se no chão de uma sala simples e servem chá. Falam com tranqüilidade, mas ficam apertando as mãos, ora as próprias, ora as do cônjuge. "Qualquer um que eles acharam suspeito prenderam", diz a mãe de Osama. A polícia egípcia afirma que o filho dela montou as bombas. Ela desdobra uma carta manuscrita que ele escrevera havia pouco tempo, e o papel, de tão gasto, parece um pano mole em suas mãos. Na carta, Osama lamenta o tratamento dado a sua tribo beduína.

"Nós, filhos do Sinai", escreveu ele na prisão, "somos tratados com racismo e discriminação em comparação com os filhos do vale do Nilo. […] Algumas autoridades nos acusam de sermos leais aos judeus e, ao mesmo tempo, nos levam a julgamento dizendo que matamos judeus."

Muitos em El Arish acham que a reação violenta do governo às bombas só fez dividir ainda mais a população - justamente o objetivo dos que as detonaram. E, de fato, em 2005 mais homens-bomba atacaram em Sharm el Sheikh, matando dezenas pessoas no Dia da Revolução do Egito. Foi uma clara agressão às autoridades egípcias, e não a Israel. Al Massaid, o dentista fundador do grupo, morreu em um tiroteio com a polícia egípcia, mas seus seguidores voltaram a agir no feriado de primavera em 2006, na cidade de Dahab, matando pelo menos 23 pessoas.

Tudo isso poderia ter sido desejado pelos que explodiram o Hilton em Taba. Mas houve outra consequência, essa impremeditada.

Na época em que dirigiu o projeto de desenvolvimento do sul do Sinai, Dan Harari, o burocrata que preenchia os cheques para os beduínos, assinara licenças para a construção do Hilton Taba. Conhecia bem o lugar. Depois que Israel se retirou em 1982, Harari encontrara novo emprego em Elat, do outro lado da fronteira. Trabalhava como chefe do Corpo de Bombeiros.

Na noite de 7 de outubro, ao ouvir a explosão, ele mudou de roupa em seu carro, trocando a camisa comum que usava no feriado pelo amassado uniforme cinzento. Quando chegaram os três caminhões do Corpo de Bombeiros da cidade e o bombeiro que estava de folga, Shachar Zaid, Harari subiu no caminhão principal e ligou a sirene. "Vi as pessoas. Vi a fumaça", diz ele. "Sabia que havia gente que eu precisava salvar."

Os guardas egípcios na fronteira postavam-se com seus fuzis automáticos, prontos para disparar. Da perspectiva deles, parecia que o mundo virara de cabeça para baixo. O hotel jazia em ruínas e uma multidão convergia aos gritos na direção deles. Depois de breve hesitação - um vaivém de perguntas e respostas gritadas -, os soldados egípcios tomaram uma decisão memorável: suspendendo a soberania de seu país, eles baixaram as armas e abriram caminho para a entrada dos caminhões de Israel.

No local do desastre, os bombeiros israelenses trabalharam ao lado de seus colegas árabes para apagar o fogo e retirar corpos dos escombros. Descobriram que uma importante fonte de água para os caminhões, a piscina do hotel, estava vazia, e por isso o trabalho foi abrasador e lento.

Israelenses e egípcios, tanto as vítimas como seus salvadores, foram mais parecidos que diferentes naquelas horas. Os que trabalharam no salvamento compartilharam alimentos e água - um gesto que, no Oriente Médio, encerra um retumbante simbolismo. O primeiro-ministro de Israel, Ariel Sharon, elogiou o presidente egípcio, Hosni Mubarak, pela cooperação de seu país, e os dois se comprometeram a "continuar a cooperação na luta sem tréguas contra o terror".

Agora o governo egípcio, como lhe é peculiar, recorre ao autoritarismo puro e simples. Policiais do Cairo cobrem a península e parecem surgir aonde quer que duas ruas se cruzem ou que duas pessoas se encontrem, atentos para manter os nativos do Sinai e os estrangeiros separados. Há quem clame por um caminho mais brando. O Grupo Internacional para Crises, uma renomada ONG para prevenção e resolução de conflitos, publicou em 2007 um relatório exortando o governo egípcio a "alterar uma estratégia de desenvolvimento que é discriminatória e ineficaz para atender as necessidades locais". Clinton Bailey, o especialista em beduínos, diz que o governo deveria seguir um provérbio desse povo: "Quem amordaça um falcão tem de alimentá-lo".

Os visitantes estão voltando. No dia das explosões em Taba, havia 15 mil israelenses na península. Depois disso os números despencaram, mas no dia em que cheguei ao Sinai, durante o feriado da Páscoa judaica de 2007, 1,7 mil israelenses cruzaram a fronteira para passear.

No Sinai as pessoas se misturam de modos inesperados, seja em um topo de montanha sagrado, seja em acampamentos na praia. Os terroristas do Hilton Taba tentaram aproveitar essa mescla: com uma bomba, poderiam atacar os ocidentais que dirigiam o hotel, os egípcios que ali trabalhavam e os israelenses hospedados. Mas o plano deu errado em um sentido: as bombas, em certo grau, fundiram esses grupos díspares em um só povo atingido, e as vítimas trabalharam juntas para salvar vidas após o desastre.

Cada ato de confiança no Oriente Médio é relativo. Mas, como os monges e os beduínos no monte Sinai, as pessoas de Taba têm interesses comuns - mesmo que seja apenas dançar na discoteca de um hotel - e com isso se fazem menos vulneráveis ao poder divisor do terrorismo.

Foi por isso que o bombeiro Shachar Zaid transpôs uma das mais disputadas fronteiras da história para trabalhar ao lado de bombeiros egípcios. "Esse foi nosso modo de dizer aos terroristas: vocês não conseguiram o que queriam", diz ele. "E, de fato, eles não conseguiram."

Revista National Geographic Brasil

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