Medicina na Idade Média: Doutor Sinistro
Amputações sem anestesia, sangrias e estranhos remédios que misturavam fezes de pombo e saliva. Conheça a fantástica, assustadora e sobrenatural medicina da Idade Média
por Moacyr Scliar
O progresso científico é necessariamente um processo descontínuo, em que avanços se alternam com períodos de estagnação. Disso, a história da medicina é um exemplo. Durante muito tempo predominou, na Antiguidade, a visão mágico-religiosa, segundo a qual doença era resultado de castigo dos deuses, de maldições ou de feitiçaria. Assim, a epilepsia era chamada “doença sagrada”: seria a manifestação da posse do corpo por divindades. Mas então, na Grécia clássica, surgem Hipócrates e seus discípulos, sustentando que a enfermidade tinha causas puramente naturais, ligadas ao modo de vida, à alimentação, ao meio ambiente. Sagrada, a epilepsia? Claro que não. Doença, sim, mas doença como outra qualquer. Claro que era preciso ter coragem para defender idéias assim, mas Hipócrates e a escola hipocrática tinham prestígio. Suas concepções foram incorporadas pela Roma imperial e desenvolvidas por Cláudio Galeno, no século 2, em uma gigantesca obra que sintetiza praticamente todo o conhecimento médico da época.
Minado pela corrupção e pela pobreza de grande parte de uma oprimida população, assediado pelos povos bárbaros, o Império Romano entrou em declínio. Nesse processo, aliás, as doenças desempenharam um papel significativo: malária, peste e varíola dizimavam populações e tropas. Contra essas doenças os médicos de então muito pouco podiam fazer.
A queda de Roma marca o começo da Idade Média. O cristianismo, perseguido no Império, será agora a religião da maioria da população. Aos pobres, aos deserdados, aos servos, aos aflitos, aos doentes, oferecia uma explicação para as pestilências e o conforto espiritual necessário em época de tanto sofrimento.
E o cristianismo tinha sua própria concepção sobre a doença. Esta é freqüentemente um resultado do pecado. Exemplo era a lepra, na qual estava implícita a maldição bíblica. Diz o Levítico, livro do Antigo Testamento: “Quem quer que tenha lepra será pronunciado impuro e deverá morar sozinho”. Verificada a doença – e o diagnóstico, como se pode imaginar, era muito impreciso, incluindo certamente outras doenças da pele –, o leproso era considerado morto. Rezava-se a missa de corpo presente e ele era enviado a um leprosário, instituição que se multiplicou na Idade Média, ou tinha de vagar pelas estradas, usando roupas características e fazendo soar uma matraca para advertir a outros de sua contagiosa presença.
Já as epidemias eram consideradas um castigo divino para os pecados do mundo (outra idéia bíblica). Mas, sendo um castigo, a doença podia funcionar como penitência e absolvição; uma vida virtuosa levaria então à cura resultante da graça divina. Ou seja: a religião proporcionava um sentido para o sofrimento. Quando em 251 a peste assolou Cartago, sob ocupação romana, no norte da África, o bispo Cipriano consolou os cristãos: morrer significa ser libertado deste mundo. Poderia representar um castigo para os pagãos e os inimigos de Cristo, mas para os servos de Deus era uma feliz partida. Verdade, estavam morrendo tanto os justos como os pecadores, porém, dizia Cipriano, os primeiros eram chamados para o gozo, os segundos para a tortura eterna. A pestilência fazia assim uma conveniente triagem.
O poder divino da cura poderia ser delegado aos reis, por exemplo. Essa foi a origem de um procedimento conhecido como “toque real”, usado no caso da escrófula, a tuberculose dos gânglios linfáticos. Essa doença, muito comum então, sobretudo em crianças, era transmitida pelo leite de vacas com mastite tuberculosa (hoje, graças à pasteurização do leite, um procedimento que mata os micróbios da tuberculose, praticamente desapareceu). A escrófula não era uma doença mortal, mas causava um grande transtorno para o paciente: os gânglios, situados em geral no pescoço, fistulizavam, isto é, formava-se um canal que ia se abrir na pele, e por ali saía uma substância viscosa, o cáseo, resultante da infecção. A criança doente era levada, em determinado dia, ao rei, que lhe punha as mãos, dizendo: “Eu te toco, Deus te cura”. Por causa disso, a doença era conhecida como mal du roi na França e the king’s evil na Inglaterra.
Pergunta: o toque real curava mesmo? Bem, o fato é que a escrófula pode regredir espontaneamente. E essas remissões ocasionais contribuíam para manter o prestígio do procedimento e do monarca que o executava. Também exerciam poder de cura as relíquias de santos e locais sagrados, para onde os doentes eram muitas vezes levados em peregrinação. Alguns desses caminhos ficaram famosos e são percorridos até hoje.
Ao lado do cristianismo e da corrente mística que ele carregava, a Idade Média herdou tradições e práticas supersticiosas surgidas com o declínio do Império Romano. Acreditava-se, por exemplo, que as doenças eram causadas por emanações de regiões insalubres, os chamados miasmas. A denominação “malária” vem daí, significa “maus ares”. A propósito, essa concepção não estava totalmente equivocada. De fato, o mosquito transmissor da malária se prolifera em regiões pantanosas, em que o odor não é dos melhores.
Se havia superstições para explicar as doenças, havia também aquelas que visavam promover a cura. O livro De Medicina Praecepta (“Acerca dos Preceitos da Medicina”), escrito por Serenus Sammonicus, famoso médico da Roma antiga, recomenda que os doentes usem um amuleto com a palavra mágica abracadabra. Sextus Placidus, médico do século 5, tratava de febres com uma felpa de madeira de uma porta por onde passou um eunuco. O “doutor” Marcellus Empiricus, que viveu na França entre os séculos 4 e 5, cuidava de lesões oculares tocando-as com três dedos e cuspindo. O encantamento valia também para venenos.
Era comum também a associação entre as doenças e os astros ou constelações. Assim, Aquário estava ligado aos joelhos, Libra aos rins, Peixes aos pés. Saturno, o planeta mais distante e de rotação mais lenta (a astronomia e a indústria de telescópios também não eram tão evoluídas), condicionava o surgimento da melancolia. Também se recorria à numerologia – os números correspondentes ao nome do paciente indicariam se o prognóstico da doença era favorável ou não.
Em relação à medicina como ciência, e até mesmo em relação às medidas higiênicas, havia desconfiança – quando não franca hostilidade. Tertuliano dizia que o Evangelho tornava desnecessária a especulação científica. Para São Gregório de Tours, era blasfêmia consultar médico em vez de ir à tumba de São Martinho. Avisava São Jerônimo àqueles cuja pele mostrava-se áspera pela falta de banho: quem se lavou no sangue de Cristo não precisava lavar-se de novo.
Os médicos, poucos, não inspiravam muita confiança. Escolas de medicina só surgiram no final da Idade Média; até então o aprendizado era empírico e excluía importantes conhecimentos, como o da anatomia. Dissecar cadáveres era uma prática severamente restrita, sobretudo por motivos religiosos. Considerava-se que a sacralidade do corpo de Cristo estendia-se aos demais corpos, vivos ou não. Em conseqüência a medicina continuava baseando-se nos trabalhos de Galeno, que não associava doenças a órgãos ou sistemas e na qual erros de anatomia não eram raros.
As raras cirurgias, conduzidas sem anestesia e sem qualquer assepsia, eram praticadas por barbeiros. Até hoje existe, diante de antigas barbearias inglesas, uma espécie de mastro com listras brancas e vermelhas, lembrando essa antiga atividade: o vermelho simboliza o sangue e o branco as bandagens usadas nos operados. Os barbeiros também faziam a sangria, um dos procedimentos mais comuns à época (leia quadro na página 42). A sangria era usada para tratar a “pletora”, uma situação na qual o corpo tinha excesso de sangue. O tratamento clínico não era muito melhor. John Arderne, autor de uma Arte da Medicina e médico de reis da Inglaterra, tratava cólicas renais como um emplastro quente untado com mel e fezes de pombos.
Mas engana-se quem pensa que a medicina estagnou completamente nessa época. Na Espanha muçulmana, médicos árabes e também judeus (os dois grupos então conviviam em paz) inspiravam-se em Hipócrates e Galeno para introduzir importantes progressos na cirurgia, na oftalmologia, na farmácia. Avicena (Ibn Sina), por exemplo, que viveu de 980 a 1037, foi autor de uma importante obra, o Canon, que até o século 17 serviu como texto básico das escolas de medicina. Mas a cristandade tinha escasso acesso a esse conhecimento. A biblioteca de Carlos Magno, famosa por sua extensão, continha um único texto sobre medicina, De Curandis Morbis (“A cura das doenças”), de Serenus Sammonicus, famoso médico de Roma antiga. Apenas no mosteiro medieval o conhecimento médico da Antiguidade grega era preservado; ali, sob a guarda dos monges, tal conhecimento não se transformaria em heresia ou apelo ao paganismo.
A ineficácia dos procedimentos mágicos ou religiosos era compensada com a caridade. Foi assim que surgiram na Idade Média as instituições precursoras dos modernos hospitais, os xenodochia, asilos para doentes (e também para viajantes) nos quais os pacientes recebiam, se não o tratamento adequado pelo menos conforto espiritual. No final da Idade Média as coisas começaram a mudar. O ensino da medicina torna-se mais institucionalizado. Nessa época surge a famosa escola de Salerno (Itália), que funcionou do século 10 ao 12. Eram quatro anos de estudo mais um de prática sob a supervisão de um médico. O mais famoso professor em Salerno foi Constantino Africanus, que viveu no século 11 de Cartago, então uma cidade árabe.
Na Escola de Salerno foi elaborado o Regimen Sanitatis Salernitanum, um código de saúde que continha regras simples, práticas e sensatas para uma vida saudável. Detalhe curioso: essas recomendações eram em versos, para serem mais facilmente lembradas. Salerno e depois Montpellier, no sul da França, eram os pilares da educação médica na época.
Mas a medicina ainda não era uma área autônoma. Era ensinada da mesma forma que filosofia ou direito, com muitas referências aos mestres e seus textos e pouca observação ou experimentação. A anatomia continuava ausente do currículo e só apareceria na Renascença. Mas a cirurgia já era largamente praticada em Salerno. Quem operava deveria adotar, previamente, certas precauções: evitar o coito, o contato com mulheres menstruadas e alimentos cujo cheiro pudesse “corromper” o ar, tal como a cebola. Uma outra inovação de Salerno foi a licença para que mulheres pudessem praticar a medicina. Santa Hildegarda, uma abadessa beneditina, escreveu vários tratados médicos. E Trótula ficou conhecida como parteira.
O fim da Idade Média foi marcado pelas pestilências. Epidemias naturalmente já tinham sido registradas, tanto no Oriente como na Grécia e no Império Romano. Tucídides em Atenas (430 a.C.) e Galeno em Roma (164) faziam menção a elas, sem falar no próprio Hipócrates. Mas os movimentos populacionais, a miséria, a promiscuidade e a falta de higiene dos burgos, os conflitos militares, tudo isso criou condições para explosivos surtos epidêmicos. O exemplo mais conhecido são as repetidas epidemias de peste. Doença causada por uma bactéria, Pasteurella pestis, a peste é em geral transmitida por pulgas de ratos.
Manifesta-se por febre, aumento dos gânglios linfáticos (bubões), que podem supurar, ou por pneumonia grave, ou por septicemia. Apesar dos antibióticos, ainda hoje a mortalidade é alta. Ao final da Idade Média as viagens marítimas e o aumento da população urbana favoreceram a eclosão de surtos de peste bubônica. A Peste Negra, que começou em 1347, matou grande parte da população européia de então (ver “A Grande Peste”, em Aventuras na História 1).
O Ocidente medieval estava despreparado para enfrentar a peste. Por outro lado, a doença coincidiu com o início de importantes mudanças econômicas, sociais e culturais e, em certa medida, até contribuiu com elas. A enorme hecatombe paradoxalmente valorizou a mão-de-obra. Os servos já não estavam tão presos às terras do senhor feudal e muitos deles mudaram-se para as cidades, onde novos ramos de atividades se desenvolviam. O comércio, inclusive o marítimo, desenvolveu-se muito, as ciências e as artes progrediram e tudo isso repercutiu na prática médica. Acabou o tabu em relação aos estudos anatômicos, a medicina tornou-me mais prática e mais científica. Era a modernidade que tinha início e sob o signo dela ainda vivemos.
Isso não quer dizer que crendices e superstições em relação a doenças tenham desaparecido. A ciência não tem explicação para tudo, muito menos para os mistérios do corpo humano. Enquanto esses enigmas persistirem, muitas pessoas continuarão recorrendo ao sobrenatural para diminuir a angústia que a enfermidade sempre causa, na Idade Média ou em qualquer outra época.
Sangria, sanguessugas, ventosas
“A vida humana está no sangue”, diz a Bíblia, uma afirmativa que a medicina medieval levava muito a sério, complementando-a: a vida humana está no sangue, e as ameaças à vida também. Que ameaças eram essas? Em primeiro lugar, o “excesso” do próprio sangue, que podia resultar em riscos à saúde. Mas o sangue era apenas um dos quatro humores que, segundo a medicina hipocrática, regulariam o funcionamento do organismo e também o temperamento. Os outros três humores eram a linfa, a bile amarela e a bile negra. Aos quatro humores correspondiam quatro temperamentos: o sanguíneo, vivaz e energético; o linfático ou fleugmático, contido, reservado; o colérico, capaz de se irritar facilmente; e o melancólico, predisposto à tristeza. Dos quatro humores, o sangue era o único a que se podia facilmente ter acesso; assim, os outros eram “evacuados” através dele. E como se retirava o excesso de sangue? De três maneiras.
Uma era a sangria pura e simples, que consistia em cortar uma veia do braço. Esse procedimento foi usado até meados do século 20 para tratar o edema agudo de pulmão, uma situação em que a falência do coração faz o sangue se acumular perigosamente nos pulmões.
A outra maneira era pelas sanguessugas. Esses curiosos vermes nutrem-se do sangue de mamíferos, para o que dispõem de “dentes” especiais. Secretam, além disto, uma substância que dificulta a coagulação do sangue – este, então, flui livre. Essa substância, aliás, serve de base para medicamentos anticoagulantes, usados quando o sangue, por excesso de gorduras, fica “grosso”. Sanguessugas ainda são utilizadas hoje em tratamentos de reimplantes de membros, por exemplo, para reestabelecer o fluxo sanguíneo dos membros amputados. E o terceiro processo eram as ventosas: copos de vidro nos quais criava-se vácuo (mediante aquecimento) e que colocados sobre escarificações, ou seja, arranhões fundos na pele, aspiravam sangue.
Saiba mais
A História e suas Epidemias, de Stefan Cunha Ujvari, Senac
Armas, Germes e Aço, de Jarred Diamond, Record
História do Medo no Ocidente, de Jean Delumeau, Companhia das Letras
Os dois primeiros tratam da evolução das epidemias em diferentes épocas. Já a terceira obra descreve o pânico das pessoas diante de ameaças à saúde
Revista Aventuras na Historia
Amputações sem anestesia, sangrias e estranhos remédios que misturavam fezes de pombo e saliva. Conheça a fantástica, assustadora e sobrenatural medicina da Idade Média
por Moacyr Scliar
O progresso científico é necessariamente um processo descontínuo, em que avanços se alternam com períodos de estagnação. Disso, a história da medicina é um exemplo. Durante muito tempo predominou, na Antiguidade, a visão mágico-religiosa, segundo a qual doença era resultado de castigo dos deuses, de maldições ou de feitiçaria. Assim, a epilepsia era chamada “doença sagrada”: seria a manifestação da posse do corpo por divindades. Mas então, na Grécia clássica, surgem Hipócrates e seus discípulos, sustentando que a enfermidade tinha causas puramente naturais, ligadas ao modo de vida, à alimentação, ao meio ambiente. Sagrada, a epilepsia? Claro que não. Doença, sim, mas doença como outra qualquer. Claro que era preciso ter coragem para defender idéias assim, mas Hipócrates e a escola hipocrática tinham prestígio. Suas concepções foram incorporadas pela Roma imperial e desenvolvidas por Cláudio Galeno, no século 2, em uma gigantesca obra que sintetiza praticamente todo o conhecimento médico da época.
Minado pela corrupção e pela pobreza de grande parte de uma oprimida população, assediado pelos povos bárbaros, o Império Romano entrou em declínio. Nesse processo, aliás, as doenças desempenharam um papel significativo: malária, peste e varíola dizimavam populações e tropas. Contra essas doenças os médicos de então muito pouco podiam fazer.
A queda de Roma marca o começo da Idade Média. O cristianismo, perseguido no Império, será agora a religião da maioria da população. Aos pobres, aos deserdados, aos servos, aos aflitos, aos doentes, oferecia uma explicação para as pestilências e o conforto espiritual necessário em época de tanto sofrimento.
E o cristianismo tinha sua própria concepção sobre a doença. Esta é freqüentemente um resultado do pecado. Exemplo era a lepra, na qual estava implícita a maldição bíblica. Diz o Levítico, livro do Antigo Testamento: “Quem quer que tenha lepra será pronunciado impuro e deverá morar sozinho”. Verificada a doença – e o diagnóstico, como se pode imaginar, era muito impreciso, incluindo certamente outras doenças da pele –, o leproso era considerado morto. Rezava-se a missa de corpo presente e ele era enviado a um leprosário, instituição que se multiplicou na Idade Média, ou tinha de vagar pelas estradas, usando roupas características e fazendo soar uma matraca para advertir a outros de sua contagiosa presença.
Já as epidemias eram consideradas um castigo divino para os pecados do mundo (outra idéia bíblica). Mas, sendo um castigo, a doença podia funcionar como penitência e absolvição; uma vida virtuosa levaria então à cura resultante da graça divina. Ou seja: a religião proporcionava um sentido para o sofrimento. Quando em 251 a peste assolou Cartago, sob ocupação romana, no norte da África, o bispo Cipriano consolou os cristãos: morrer significa ser libertado deste mundo. Poderia representar um castigo para os pagãos e os inimigos de Cristo, mas para os servos de Deus era uma feliz partida. Verdade, estavam morrendo tanto os justos como os pecadores, porém, dizia Cipriano, os primeiros eram chamados para o gozo, os segundos para a tortura eterna. A pestilência fazia assim uma conveniente triagem.
O poder divino da cura poderia ser delegado aos reis, por exemplo. Essa foi a origem de um procedimento conhecido como “toque real”, usado no caso da escrófula, a tuberculose dos gânglios linfáticos. Essa doença, muito comum então, sobretudo em crianças, era transmitida pelo leite de vacas com mastite tuberculosa (hoje, graças à pasteurização do leite, um procedimento que mata os micróbios da tuberculose, praticamente desapareceu). A escrófula não era uma doença mortal, mas causava um grande transtorno para o paciente: os gânglios, situados em geral no pescoço, fistulizavam, isto é, formava-se um canal que ia se abrir na pele, e por ali saía uma substância viscosa, o cáseo, resultante da infecção. A criança doente era levada, em determinado dia, ao rei, que lhe punha as mãos, dizendo: “Eu te toco, Deus te cura”. Por causa disso, a doença era conhecida como mal du roi na França e the king’s evil na Inglaterra.
Pergunta: o toque real curava mesmo? Bem, o fato é que a escrófula pode regredir espontaneamente. E essas remissões ocasionais contribuíam para manter o prestígio do procedimento e do monarca que o executava. Também exerciam poder de cura as relíquias de santos e locais sagrados, para onde os doentes eram muitas vezes levados em peregrinação. Alguns desses caminhos ficaram famosos e são percorridos até hoje.
Ao lado do cristianismo e da corrente mística que ele carregava, a Idade Média herdou tradições e práticas supersticiosas surgidas com o declínio do Império Romano. Acreditava-se, por exemplo, que as doenças eram causadas por emanações de regiões insalubres, os chamados miasmas. A denominação “malária” vem daí, significa “maus ares”. A propósito, essa concepção não estava totalmente equivocada. De fato, o mosquito transmissor da malária se prolifera em regiões pantanosas, em que o odor não é dos melhores.
Se havia superstições para explicar as doenças, havia também aquelas que visavam promover a cura. O livro De Medicina Praecepta (“Acerca dos Preceitos da Medicina”), escrito por Serenus Sammonicus, famoso médico da Roma antiga, recomenda que os doentes usem um amuleto com a palavra mágica abracadabra. Sextus Placidus, médico do século 5, tratava de febres com uma felpa de madeira de uma porta por onde passou um eunuco. O “doutor” Marcellus Empiricus, que viveu na França entre os séculos 4 e 5, cuidava de lesões oculares tocando-as com três dedos e cuspindo. O encantamento valia também para venenos.
Era comum também a associação entre as doenças e os astros ou constelações. Assim, Aquário estava ligado aos joelhos, Libra aos rins, Peixes aos pés. Saturno, o planeta mais distante e de rotação mais lenta (a astronomia e a indústria de telescópios também não eram tão evoluídas), condicionava o surgimento da melancolia. Também se recorria à numerologia – os números correspondentes ao nome do paciente indicariam se o prognóstico da doença era favorável ou não.
Em relação à medicina como ciência, e até mesmo em relação às medidas higiênicas, havia desconfiança – quando não franca hostilidade. Tertuliano dizia que o Evangelho tornava desnecessária a especulação científica. Para São Gregório de Tours, era blasfêmia consultar médico em vez de ir à tumba de São Martinho. Avisava São Jerônimo àqueles cuja pele mostrava-se áspera pela falta de banho: quem se lavou no sangue de Cristo não precisava lavar-se de novo.
Os médicos, poucos, não inspiravam muita confiança. Escolas de medicina só surgiram no final da Idade Média; até então o aprendizado era empírico e excluía importantes conhecimentos, como o da anatomia. Dissecar cadáveres era uma prática severamente restrita, sobretudo por motivos religiosos. Considerava-se que a sacralidade do corpo de Cristo estendia-se aos demais corpos, vivos ou não. Em conseqüência a medicina continuava baseando-se nos trabalhos de Galeno, que não associava doenças a órgãos ou sistemas e na qual erros de anatomia não eram raros.
As raras cirurgias, conduzidas sem anestesia e sem qualquer assepsia, eram praticadas por barbeiros. Até hoje existe, diante de antigas barbearias inglesas, uma espécie de mastro com listras brancas e vermelhas, lembrando essa antiga atividade: o vermelho simboliza o sangue e o branco as bandagens usadas nos operados. Os barbeiros também faziam a sangria, um dos procedimentos mais comuns à época (leia quadro na página 42). A sangria era usada para tratar a “pletora”, uma situação na qual o corpo tinha excesso de sangue. O tratamento clínico não era muito melhor. John Arderne, autor de uma Arte da Medicina e médico de reis da Inglaterra, tratava cólicas renais como um emplastro quente untado com mel e fezes de pombos.
Mas engana-se quem pensa que a medicina estagnou completamente nessa época. Na Espanha muçulmana, médicos árabes e também judeus (os dois grupos então conviviam em paz) inspiravam-se em Hipócrates e Galeno para introduzir importantes progressos na cirurgia, na oftalmologia, na farmácia. Avicena (Ibn Sina), por exemplo, que viveu de 980 a 1037, foi autor de uma importante obra, o Canon, que até o século 17 serviu como texto básico das escolas de medicina. Mas a cristandade tinha escasso acesso a esse conhecimento. A biblioteca de Carlos Magno, famosa por sua extensão, continha um único texto sobre medicina, De Curandis Morbis (“A cura das doenças”), de Serenus Sammonicus, famoso médico de Roma antiga. Apenas no mosteiro medieval o conhecimento médico da Antiguidade grega era preservado; ali, sob a guarda dos monges, tal conhecimento não se transformaria em heresia ou apelo ao paganismo.
A ineficácia dos procedimentos mágicos ou religiosos era compensada com a caridade. Foi assim que surgiram na Idade Média as instituições precursoras dos modernos hospitais, os xenodochia, asilos para doentes (e também para viajantes) nos quais os pacientes recebiam, se não o tratamento adequado pelo menos conforto espiritual. No final da Idade Média as coisas começaram a mudar. O ensino da medicina torna-se mais institucionalizado. Nessa época surge a famosa escola de Salerno (Itália), que funcionou do século 10 ao 12. Eram quatro anos de estudo mais um de prática sob a supervisão de um médico. O mais famoso professor em Salerno foi Constantino Africanus, que viveu no século 11 de Cartago, então uma cidade árabe.
Na Escola de Salerno foi elaborado o Regimen Sanitatis Salernitanum, um código de saúde que continha regras simples, práticas e sensatas para uma vida saudável. Detalhe curioso: essas recomendações eram em versos, para serem mais facilmente lembradas. Salerno e depois Montpellier, no sul da França, eram os pilares da educação médica na época.
Mas a medicina ainda não era uma área autônoma. Era ensinada da mesma forma que filosofia ou direito, com muitas referências aos mestres e seus textos e pouca observação ou experimentação. A anatomia continuava ausente do currículo e só apareceria na Renascença. Mas a cirurgia já era largamente praticada em Salerno. Quem operava deveria adotar, previamente, certas precauções: evitar o coito, o contato com mulheres menstruadas e alimentos cujo cheiro pudesse “corromper” o ar, tal como a cebola. Uma outra inovação de Salerno foi a licença para que mulheres pudessem praticar a medicina. Santa Hildegarda, uma abadessa beneditina, escreveu vários tratados médicos. E Trótula ficou conhecida como parteira.
O fim da Idade Média foi marcado pelas pestilências. Epidemias naturalmente já tinham sido registradas, tanto no Oriente como na Grécia e no Império Romano. Tucídides em Atenas (430 a.C.) e Galeno em Roma (164) faziam menção a elas, sem falar no próprio Hipócrates. Mas os movimentos populacionais, a miséria, a promiscuidade e a falta de higiene dos burgos, os conflitos militares, tudo isso criou condições para explosivos surtos epidêmicos. O exemplo mais conhecido são as repetidas epidemias de peste. Doença causada por uma bactéria, Pasteurella pestis, a peste é em geral transmitida por pulgas de ratos.
Manifesta-se por febre, aumento dos gânglios linfáticos (bubões), que podem supurar, ou por pneumonia grave, ou por septicemia. Apesar dos antibióticos, ainda hoje a mortalidade é alta. Ao final da Idade Média as viagens marítimas e o aumento da população urbana favoreceram a eclosão de surtos de peste bubônica. A Peste Negra, que começou em 1347, matou grande parte da população européia de então (ver “A Grande Peste”, em Aventuras na História 1).
O Ocidente medieval estava despreparado para enfrentar a peste. Por outro lado, a doença coincidiu com o início de importantes mudanças econômicas, sociais e culturais e, em certa medida, até contribuiu com elas. A enorme hecatombe paradoxalmente valorizou a mão-de-obra. Os servos já não estavam tão presos às terras do senhor feudal e muitos deles mudaram-se para as cidades, onde novos ramos de atividades se desenvolviam. O comércio, inclusive o marítimo, desenvolveu-se muito, as ciências e as artes progrediram e tudo isso repercutiu na prática médica. Acabou o tabu em relação aos estudos anatômicos, a medicina tornou-me mais prática e mais científica. Era a modernidade que tinha início e sob o signo dela ainda vivemos.
Isso não quer dizer que crendices e superstições em relação a doenças tenham desaparecido. A ciência não tem explicação para tudo, muito menos para os mistérios do corpo humano. Enquanto esses enigmas persistirem, muitas pessoas continuarão recorrendo ao sobrenatural para diminuir a angústia que a enfermidade sempre causa, na Idade Média ou em qualquer outra época.
Sangria, sanguessugas, ventosas
“A vida humana está no sangue”, diz a Bíblia, uma afirmativa que a medicina medieval levava muito a sério, complementando-a: a vida humana está no sangue, e as ameaças à vida também. Que ameaças eram essas? Em primeiro lugar, o “excesso” do próprio sangue, que podia resultar em riscos à saúde. Mas o sangue era apenas um dos quatro humores que, segundo a medicina hipocrática, regulariam o funcionamento do organismo e também o temperamento. Os outros três humores eram a linfa, a bile amarela e a bile negra. Aos quatro humores correspondiam quatro temperamentos: o sanguíneo, vivaz e energético; o linfático ou fleugmático, contido, reservado; o colérico, capaz de se irritar facilmente; e o melancólico, predisposto à tristeza. Dos quatro humores, o sangue era o único a que se podia facilmente ter acesso; assim, os outros eram “evacuados” através dele. E como se retirava o excesso de sangue? De três maneiras.
Uma era a sangria pura e simples, que consistia em cortar uma veia do braço. Esse procedimento foi usado até meados do século 20 para tratar o edema agudo de pulmão, uma situação em que a falência do coração faz o sangue se acumular perigosamente nos pulmões.
A outra maneira era pelas sanguessugas. Esses curiosos vermes nutrem-se do sangue de mamíferos, para o que dispõem de “dentes” especiais. Secretam, além disto, uma substância que dificulta a coagulação do sangue – este, então, flui livre. Essa substância, aliás, serve de base para medicamentos anticoagulantes, usados quando o sangue, por excesso de gorduras, fica “grosso”. Sanguessugas ainda são utilizadas hoje em tratamentos de reimplantes de membros, por exemplo, para reestabelecer o fluxo sanguíneo dos membros amputados. E o terceiro processo eram as ventosas: copos de vidro nos quais criava-se vácuo (mediante aquecimento) e que colocados sobre escarificações, ou seja, arranhões fundos na pele, aspiravam sangue.
Saiba mais
A História e suas Epidemias, de Stefan Cunha Ujvari, Senac
Armas, Germes e Aço, de Jarred Diamond, Record
História do Medo no Ocidente, de Jean Delumeau, Companhia das Letras
Os dois primeiros tratam da evolução das epidemias em diferentes épocas. Já a terceira obra descreve o pânico das pessoas diante de ameaças à saúde
Revista Aventuras na Historia
Esse tópico me fascina e me tira completamente a vontade de viajar em uma maquina do tempo!!! rs
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