quarta-feira, 27 de maio de 2009

No reino da violência


Para manter a ordem nas regiões auríferas, a Coroa portuguesa tentou de várias maneiras, ao longo do século XVIII, desarmar a população de Minas Gerais
Liana Maria Reis

No ano de 1751, na Vila de Nossa Senhora da Conceição do Sabará, capitania das Minas Gerais, João da Rocha Lima enfrentava uma disputa judicial com o capitão Domingos Rodrigues pela morte de seu escravo, o negro africano Salvador, de nação Angola. Lima havia emprestado o escravo algemado e amarrado a Rodrigues para que mostrasse a ele como chegar a um determinado quilombo. Esperava que Salvador fosse devolvido nas mesmas condições. Não foi isto que ocorreu. Testemunhas chamadas a depor contaram que Rodrigues, após realizar a diligência ao quilombo, teria matado Salvador, entrando em seguida na vila carregando duas cabeças cortadas, sendo uma delas a do africano. A sentença foi dada no ano seguinte. Rodrigues foi condenado à prisão pelo prejuízo material causado a João da Rocha Lima, que perdeu um escravo de sua propriedade.

Situações como essa revelam uma realidade na qual a violência fazia parte do cotidiano de milhares de homens e mulheres, escravos, libertos, livres, brancos, negros e mestiços que habitavam as vilas e arraiais das Minas. Demonstram, também, a manifestação do poder pessoal e abusos dos administradores, devido à posição privilegiada no exercício dos cargos que ocupavam. O próprio sistema escravista tinha a violência como elemento constitutivo e institucionalizado: pressupunha manter o indivíduo como propriedade de outrem, devendo submeter-se ao poder e à vontade de seu senhor. Como mercadoria, o escravo poderia ser vendido, trocado, deixado de herança, castigado, preso e morto por seu proprietário ou pelo Estado.

Com a descoberta do ouro, no último quartel do século XVII, na região das Minas Gerais, e do diamante, em 1729, nas proximidades da atual cidade de Diamantina, a Coroa portuguesa passou a preocupar-se com o controle e vigilância das regiões auríferas, implantando um aparato político-administrativo de cunho fiscal e tributário para melhor arrecadar e submeter as populações ali residentes às suas leis, visando garantir seu domínio sobre terras tão ricas.



À cobiça da Coroa somou-se a sede de enriquecimento de homens e mulheres de todas as condições sociais e de culturas diversas que, desde os primeiros anos do século XVIII, se dirigiram para a região das Minas Gerais.

A política de desarmamento da metrópole portuguesa para a capitania no período colonial foi contraditória e, com o desenrolar do processo histórico, foi se tornando mais rigorosa, até incluir, nas penalidades legais, senhores e homens brancos e livres. Inicialmente, o Regimento de 1548 permitia o porte de armas – espada, besta, espingarda, lança e chuço – aos habitantes da América portuguesa, para sua defesa e segurança. Moradores brancos e proprietários eram obrigados a adquirir armas nos armazéns régios, num prazo de um ano, o que indica a expansão do mercado de armamentos para a burguesia européia. Era expressamente proibida a confecção de armamentos e pólvora na Colônia, bem como, aos ferreiros, latoeiros, funileiros e caldeiros, ensinar aos índios e escravos os segredos do seu ofício.

O temor residia no fato de que fossem feitas, internamente, armas de ferro, o que parece ter ocorrido em meados do século XVIII, na região central do território mineiro. Com a descoberta das minas, manteve-se apenas a nobres, residentes nas cidades, o privilégio de portarem armas de fogo, como também espadas à cinta, mas abriam-se exceções para os escravos que acompanhavam seus senhores em longas jornadas pelos perigosos caminhos coloniais, povoados por quilombolas, assaltantes, índios bravios e animais ferozes. Já na primeira década do século XVIII, a ordem do governador d. Pedro de Almeida, em 1719, reforçava a proibição a escravos (africanos e crioulos, isto é, nascidos no Brasil), libertos negros e mestiços, que compunham o grosso da população, de usarem pistolas, clavinas, bacamartes, espingardas, facas, punhais, espadas e adagas.


Com o transcorrer do tempo, o crescimento da população em Minas Gerais, associado à ocorrência de inúmeros motins e ao surgimento de dezenas de quilombos, provavelmente contribuiu para aumentar o clima de insegurança e a criminalidade. Espalhavam-se os conflitos armados, os roubos e as desavenças entre os habitantes dos inúmeros arraiais e vilas da capitania. É possível classificar os crimes em quatro tipos, de acordo com o bem jurídico ofendido: contra o Estado, contra a ordem pública, contra a pessoa e contra a propriedade. O porte ilegal de armas, embora enquadrando-se no crime contra o Estado, de fato, poderia ser também considerado um crime contra a ordem pública e contra a pessoa, ao favorecer – nos logradouros públicos, por exemplo – brigas, ferimentos e assassinatos.

Diante dessa realidade, os administradores passaram a incentivar e premiar a delação (marca característica da legislação colonial portuguesa) e tornar mais rigorosas as punições pelo uso ilegal de armas, prendendo escravos, libertos e livres pobres, mandando açoitar publicamente cativos e alforriados, além de impor penas pecuniárias, calculadas em oitavas de ouro, para libertar escravos da prisão. Os comerciantes e as negras de tabuleiro – vendedoras ambulantes que percorriam os caminhos e arraiais – eram constantemente acusados pelos administradores de facilitar todo tipo de contrabando, incluindo ouro, diamantes, armas, pólvora e balas para escravos e quilombolas. Os comerciantes, livres e brancos, estavam na verdade interessados em vender seus produtos, a despeito da condição social dos compradores. Era um comércio ilícito que, por essa razão, poderia trazer maiores lucros para os comerciantes. Da mesma forma, por circularem diariamente por ruas e caminhos, mantendo relações com toda a população para vender suas mercadorias, muitas negras de tabuleiro aproveitavam para se prostituir e lucrar com o comércio ilícito da venda de armamentos. Há que se considerar, ainda, as relações pessoais e afetivas estabelecidas entre vendedores e a sociedade, que interferiam no sucesso das transações.

A ameaça à “tranqüilidade pública” foi aumentando e até os instrumentos de trabalho dos escravos – como, por exemplo, os facões para corte de capim – passaram, com o tempo, a representar um perigo e uma ameaça à ordem colonial escravista. Assim, cientes dessa realidade e da impossibilidade de controle sobre a complexa população mineira, o rei d. João V decretou uma ordem régia, em 1722, ampliando a proibição a todas as pessoas, de qualquer condição social, fossem negros, mulatos, brancos, escravos, alforriados, pobres ou ricos. Ninguém podia “trazer consigo faca, adaga, punhal, sovetão ou estoque ainda que seja de marca, thezoura grande, nem outra qualquer arma, ou instrumento se com a ponta se puder fazer ferida penetrante, nem trazer pistolas, ou armas de fogo mais curtas de que a Ley permite”.


A legislação proibitiva do porte de armas foi se repetindo ao longo do século XVIII, fato que demonstra o seu não-cumprimento. Se, por um lado, ter armas e contar com uma guarda pessoal de escravos armados era símbolo de poder pessoal e demonstração de prestígio para os senhores, no confronto com outros proprietários, por outro, para cativos e camadas pobres da população, isso poderia significar a manutenção da liberdade e sobrevivência. Deve-se considerar que as armas confeccionadas de forma mais artesanal, como porretes e azagaias (lança curta de arremesso, muito comum em África), deveriam ser mais usadas por escravos e pela população mais empobrecida, enquanto a espingarda de pederneira e as pistolas eram usadas pelos nobres, militares e senhores.

Havia muitos grupos sociais interessados no comércio ilícito de armas, entre eles administradores – militares e camaristas –, comerciantes, escravos, senhores, quilombolas e criminosos. Essa rede de relações inviabilizou o sucesso da política de desarmamento implementada por Portugal para a capitania das Minas e contribuiu para o crescimento da violência ao armar os vários segmentos da população numa região aurífera, de intensa disputa por ricas terras. Para desespero das autoridades, os interesses pessoais predominaram sobre os interesses régios, identificados, naquela realidade, com os interesses públicos. Isso não impediu a continuidade da exploração colonial sobre as Minas Gerais, mas certamente a dificultou e a desgastou, ao longo do Setecentos.


Liana Maria Reis é professora do Departamento de História da PUC/MG, doutora em história social pela Universidade de São Paulo e co-autora do Dicionário histórico Brasil Colônia-Império (Ed. Autêntica, Belo Horizonte).

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

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