domingo, 10 de maio de 2009

‘Chico Ciência’ e sua obra


Constituição de 1937 reflete as idéias da época e o pensamento político de um homem só: o jurista que a criou para Getulio Vargas
Paulo Sérgio da Silva

A instauração do Estado Novo, em 1937, representou uma profunda transformação para as instituições nacionais e as relações de poder que se mantinham praticamente inalteradas desde a proclamação da República, em 1889. O regime de exceção capitaneado por Getulio Vargas (1882-1954) se prolongaria por oito anos. Ao longo desse período, sob o argumento das armas e da propaganda, a sociedade brasileira foi varrida por um vendaval de profundas mudanças. Se a idéia era conciliar uma aparência de democracia com ações políticas que evidentemente a contrariavam, a solução jurídica para tornar viável o projeto de Getulio era o estabelecimento de preceitos legais que sustentassem conceitualmente essas contradições. Um novo texto constitucional, feito sob medida para esses novos tempos, foi outorgado à nação.

Ao contrário das anteriores (a de 1891 e a de 1934), a Carta de 1937 não seguiu a metodologia republicana clássica – ou seja, um anteprojeto elaborado por alguma comissão e posteriormente aprovado pelo Congresso. Foi obra individual do jurista Francisco Campos, o qual, por sua façanha, receberia o apelido de “Chico Ciência”.

Francisco Luís da Silva Campos nasceu em 1891 em Dores do Indaiá, Minas Gerais. Graduou-se em Direito pela Faculdade Livre de Direito de Belo Horizonte (1914) e entrou para a vida política em 1919, quando foi eleito deputado estadual pelo Partido Republicano Mineiro (PRM). A partir daí, trilhou uma carreira ascendente, tendo ocupado cargos importantes no governo de Minas. Em 1930, participou das articulações que levaram ao movimento armado que conduziu Getulio Vargas ao poder. Depois de chefiar o recém-criado Ministério da Educação e Saúde, foi nomeado por Getulio consultor geral da República e, mais tarde, secretário de Educação do Distrito Federal.

Conhecido partidário de convicções antiliberais, Francisco Campos tornou-se um dos elementos centrais nos preparativos da implantação do Estado Novo. Às vésperas do golpe de 10 de novembro de 1937, Vargas fez dele seu ministro da Justiça, encarregando-o de elaborar uma nova Constituição. O jurista entendia que a instabilidade social se instaurara no país. A revolta comunista de 1935 reforçava seu ponto de vista. Para ele, o liberalismo democrático, centrado na crença da liberdade de expressão e de pensamento, entrara em franca decadência, como evidencia a coletânea de textos de sua autoria publicada na obra O Estado Nacional (1940) e que expressa bem tal convicção.

Segundo ele, a Carta de 1937 viria para atender “às legítimas aspirações do povo brasileiro à paz política e social, profundamente perturbada por conhecidos fatores de desordem, resultantes da crescente agravação dos dissídios partidários” que colocavam “a Nação sob a funesta iminência da guerra civil”. O “estado de apreensão criado no País pela infiltração comunista, que se torna dia a dia mais extensa e mais profunda” estava a exigir “remédios, de caráter radical e permanente”.

Para Francisco Campos, o Estado liberal, fazendo crer ser um regime político democrático, acabava resultando efetivamente em ditaduras ou democracias deformadas. Com o discurso retórico de repulsa a regimes fortes, possibilitava a demagogia, a luta de partidos e a luta de classes. Assim, ficava restrito ao triste papel de atender aos interesses de uma classe, de um partido ou de um reduzido grupo de indivíduos que exploravam o poder em prejuízo da coletividade.
Pela ótica da doutrina liberal, conforme entendia o jurista, o fim último do Estado eram a proteção e a garantia das liberdades individuais, ou seja, a nação subordinava-se ao bem-estar dos indivíduos, que a utilizavam como meio de garantia e de favorecimento pessoal. Neste sistema, os valores nacionais, os ideais materiais e morais da sociedade não são contemplados. Superando aquilo que Francisco Campos considerava um retrocesso, a nova Constituição estipulava, ao lado dos direitos individuais, o reconhecimento aos direitos da nação e do povo.

Ainda na visão de Campos, o rádio, a imprensa e a propaganda em geral seriam capazes de levar a opinião pública a um “estado de delírio” e de “alucinação coletiva”, facilitando a adesão da população ao ideário subversivo, notadamente às idéias socialistas. Um antídoto contra esse perigoso processo, na sua opinião, era o cultivo do “mito da personalidade”: a política de massas que se inaugurava incluía o clamor por um “César” capaz de conduzi-las.

A idéia não era uma exclusividade brasileira. Não por acaso, a Constituição de Campos passaria a ser chamada pelos seus críticos de “polaca”, numa referência à outorgada pelo marechal de Jozsef Pilsudski (1867-1935), líder do golpe militar que o levou ao poder na Polônia em 1921. O apoio popular, em função da simpatia pessoal do ocupante do poder, tornara-se, em muitos países, a principal força motriz da unidade política.

O jurista considerava que a população se tornara incapaz de fazer racionalmente suas escolhas políticas. Convertera-se em mera massa de manobra, ao sabor do contágio das emoções. Entendia que a centralização autoritária do poder era a decisão mais acertada, conforme fica patente no artigo 73 da sua Constituição: “O Presidente da República, autoridade suprema do Estado, coordena a atividade dos órgãos representativos, de grau superior, dirige a política interna e externa, promove ou orienta a política legislativa de interesse nacional, e superintende a administração do País.”

Francisco Campos via no condutor do golpe de 1937 um astuto e dedicado chefe de Estado, identificando-o como fundador de um novo regime e guia da nacionalidade. Era o homem providencial, o ungido, que, impondo sua vontade dura ao caos político nacional – segundo ele provocado pelas lutas políticas entre a esquerda, representada pela Aliança Nacional Libertadora, e a direita, pela Aliança Integralista Brasileira –, levaria o Brasil à grandeza, à riqueza e à paz social.

Fiel aos ares das transformações por que passava o mundo, a nova Carta estaria voltada para a realidade política brasileira e global. Pretensas garantias ou conquistas, como “o sufrágio universal, a representação direta, o voto secreto e proporcional, a duração rápida do mandato presidencial, eram meios impróprios, senão funestos, aos ideais democráticos”.

A essência da democracia residiria no reconhecimento de que o Estado é constituído pela vontade dos destinatários de seu poder, ou seja, o povo, conforme declarava e reconhecia a Constituição de 1937. Só que isso não implicava, nas palavras de Francisco Campos, que “o sufrágio universal fosse o sistema primordial das decisões políticas nem a de que o Presidente da República devesse exercer o seu cargo por um curto período de tempo, não podendo ser reeleito”. Previa-se a submissão do Estado Novo a um plebiscito, a ser marcado por Getulio – o que, na prática, nunca ocorreu. E que, em seqüência, as eleições para presidente da República passariam a ser indiretas, nos seguintes termos:

“Art 82 – O Colégio Eleitoral do Presidente da República compõe-se:
a) de eleitores designados pelas Câmaras Municipais, elegendo cada Estado um número de eleitores proporcional à sua população, não podendo, entretanto, o máximo desse número exceder de vinte e cinco;
b) de cinqüenta eleitores, designados pelo Conselho da Economia Nacional, dentre empregadores e empregados em número igual;
c) de vinte e cinco eleitores designados pela Câmara dos Deputados e de vinte e cinco designados pelo Conselho Federal, dentre cidadãos de notória reputação.”

Abrindo espaço para as manifestações democráticas da população brasileira, nela previu-se, em vez de eleições, o plebiscito – escolhido como um dos meios mais adequados aos costumes, à tradição e às particularidades do meio político e social do país. No entendimento do jurista, a vontade do povo, preponderante sobre todos os valores sociais, é que deveria determinar o momento e a pertinência ou não da renovação e de prazos jurídicos artificialmente estabelecidos, entre estes o mandato presidencial. A “verdadeira democracia” não se definiria, dessa forma, em função de meios, processos, técnicas ou mecanismos que “fabricam a opinião”.

“Se o ideal democrático não se realizar entre nós em medida maior que no passado, o mal não estará no regime, mas nos homens incumbidos de operá-lo. Estou certo, porém, de que, ainda admitindo defeitos de seu funcionamento, as novas instituições democráticas do Brasil, mais do que as anteriores, assegurarão garantias efetivas à realização do bem público. E a democracia, como qualquer forma de governo, só pode ser julgada pela soma de bem público que seja capaz de produzir. Não há outro teste ou meio de verificação da bondade ou da conveniência de uma forma de governo. Os frutos dirão da árvore”.

Confirma-se, assim, o pressuposto de que as regras jurídicas, como todas as criações humanas, refletem a sua época e o pensamento de seus autores. No caso da Carta de 1937, fica evidente a estreita relação entre o texto constitucional e a orientação antiliberal de Francisco Campos. Obra e criador formam aí um binômio complexo e indissociável, no qual o entendimento de uma remete, necessariamente, à compreensão da mentalidade do outro.

Paulo Sérgio da Silva é pesquisador do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança da Universidade Estadual Paulista (GEDES-UNESP) e autor de A Constituição brasileira de 10 de novembro de 1937: um retrato com luz e sombra. (Ed. UNESP, 2008 – no prelo).

Saiba Mais - Bibliografia:

CAMPOS, Francisco. O Estado Nacional: sua estrutura, seu conteúdo ideológico. Rio de Janeiro: José Olympio, 1940.

BRASIL. Constituição brasileira de 10 de novembro de 1937. Brasília: Senado Federal, 1999.

SCHWARTZMAN, Simon. (org.) Estado Novo: um auto-retrato (Arquivo Gustavo Capanema). Brasília: UnB, 1983.

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

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