segunda-feira, 27 de abril de 2009

Rindo da história


Quatro séculos de Brasil nos versos de Murilo Mendes
Marcello Scarrone

O que é isso? Tiradentes numa cadeira elétrica, Antônio Conselheiro enfiado na igreja por seis meses enquanto o Exército dispara tiros contra Canudos, Pinzón é quem descobre o Brasil, mas a colônia portuguesa paga o Caminha para difundir outra versão? A história nacional virada de cabeça pra baixo, seus protagonistas retratados de forma irônica e irreverente, os fatos mais importantes revisitados com humor!

Quando Murilo Mendes publica, pela Editora Ariel, sua História do Brasil (1932), o país vive o momento dramático da luta sangrenta entre os paulistas e o governo federal, que se seguiu ao golpe de 1930. Talvez por isso a releitura leve e fantasiosa dos fatos nacionais feita pelo poeta mineiro não encontrou muito sucesso na época. Conservado na Divisão de Obras Gerais da Biblioteca Nacional, o livro, que só voltou a ser editado em 1991, exibe uma linda capa de Di Cavalcanti, na qual desfilam diante dos nossos olhos índias, imperadores, presidentes e outros personagens da história pátria.

compõem seu livro, passa de um assunto a outro, de um acontecimento a outro, fazendo os leitores sorrirem e pensarem. Da divisão das capitanias, descrita como se fosse a partilha do país nas mãos das multinacionais, à ambígua decisão de D. Pedro I no fatídico dia (“Eu fico, mas vou/falar com a marquesa./Já volto pra ceia./Falando em comidas/eu fico, pois não”). “O farrista” é o apelido dado ao anjo protetor do país e sempre ausente (“Quando o almirante Cabral/ pôs as patas no Brasil/o anjo da guarda dos índios/estava passeando em Paris/Quando ele voltou de viagem/o holandês já está aqui”), enquanto todo o Segundo Reinado é condensado numa rápida e arguta pincelada (“Uma vasta sonolência/invade toda a fazenda/O imperador de pijama/lê o Larousse na rede/O fato é que com essa calma/ cinqüenta anos se agüentou”).


Raro como edição, o livro é único (ou quase) dentro da produção do autor, que a partir de 1934, tocado pela morte de um amigo, se volta para o catolicismo e para uma poesia de sabor místico e espiritual, mais densa e profunda. A leveza irreverente de História do Brasil é quase renegada pelo poeta em anos posteriores, a ponto de ser excluída por ele próprio da edição completa de suas obras em 1959, por seu conteúdo “menor”. Mas aqueles versos permanecem como testemunho de amor ao país e como “um dos poucos livros nossos em que se afirma uma forte simpatia pelos oprimidos”, nas palavras do crítico Mário Pedrosa.


Entre ‘o café dos Emboabas’ e ‘o chicote de João Candido’, há espaço ainda para ‘os pombos do Pombal’ e ‘o tango de Solano Lopez’. O momento mais alto da poesia muriliana talvez se encontre na descrição da ‘força do Aleijadinho’: “A mão doente parou, / ficou suspensa no ar, / inutilizada no ar / (...) / A esculptura bem que pede / uma força bem maior / (...) / Então de dentro do corpo / do homem disforme e triste / sae uma boca de fogo, / sopra no corpo da estatua / que respira já promptinha / dá um abraço no esculptor”. E o ponto mais agudo de sua crítica às instituições e aos políticos em ‘Linhas Paralelas’: “Um presidente resolve / construir uma boa escola / numa vila bem distante. / Mas ninguém vai nesta escola: / não tem estrada pra lá. / Depois ele resolve / construir uma estrada boa / numa outra vila do Estado. / Ninguém se muda pra lá / porque lá não tem escola”.


Mas com certeza todo o humor e a ironia do poeta, nos moldes da melhor produção modernista, concentram-se no poema-piada ‘Homo Brasiliensis’, que proclama em alto e bom tom: ”O homem é o único animal que joga no bicho”.

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

Nenhum comentário:

Postar um comentário