segunda-feira, 13 de abril de 2009

O demônio no inferno verde


No embate pela expansão da fé católica na Amazônia, o mundo místico do padre Samuel Fritz se defrontou com as crenças locais e a disputa por fronteiras
Eduardo Gusmão de Quadros

“Intruso impertinente”. Foi esta a expressão usada pelo escritor Euclides da Cunha (1866-1909) para definir a presença humana no alto Amazonas. A anotação em seu diário de viagem, escrito em 1905, revela as enormes dificuldades de sobrevivência naquela região. Para o famoso autor de Os Sertões, a Amazônia lembrava então um verdadeiro “inferno verde”.

A expressão poderia ter sido cunhada dois séculos antes para definir o padre Samuel Fritz (1654-1725), que esteve no meio da floresta amazônica com a missão de catequizar os indígenas do Império espanhol. Na época, a região estava sob o domínio dos reis de Castela, de acordo com o Tratado de Tordesilhas, de 1494. Mas a Coroa lusitana considerou indevida a intensa atividade do padre jesuíta em áreas tão próximas às da colônia portuguesa, e o sacerdote acabou preso e envolvido em disputas territoriais.

O confronto por causa dos limites entre os impérios espanhol e português foi complexo. O tratado assinado na vila de Tordesilhas dividiu as terras “descobertas e por descobrir” entre os dois reinos ibéricos. O acordo estabelecia uma linha que corria do Pólo Sul ao Pólo Norte, passando a trezentos e setenta léguas das Ilhas de Cabo Verde. Mas o que garantiria a obediência dos outros reis? Por que os reis da Espanha e de Portugal seriam os únicos donos de toda a Terra? Os próprios signatários, nas suas expedições, descumpriram o que fora acordado. Na prática, os limites foram definidos pela ocupação e pela conquista militar, e boa parte da Amazônia passou a pertencer ao reino português – e, posteriormente, ao Brasil. Paralelamente, a União Ibérica deixara as colônias ibero-americanas sob a administração do mesmo rei no período 1580-1640. Assim, as fronteiras eram relativas. Por isso, o lusitano Pedro Teixeira pôde armar uma expedição em Belém do Pará para navegar até a cidade de Quito, no Peru.

Durante a viagem, de 1637 a 1638, o capitão Pedro Teixeira teria edificado um marco e tomado posse, para a Coroa portuguesa, dos territórios até a fronteira da Província dos Índios Omáguas. Com as lutas pela restauração do reino português, o ato não foi reconhecido oficialmente e os limites permaneceram incertos. O marco divisório, se foi de fato erigido, desapareceu rapidamente, pois nunca foi encontrado.


Samuel Fritz viajou para a região do alto Amazonas quase cinqüenta anos depois da expedição de Teixeira. Apesar da indefinição das fronteiras permanecer, sua forma de tomar posse do território era diferente. Ele era um religioso – seu interesse primordial estava na conquista das almas, e não das terras. Com afinco, e praticamente sozinho, ele trabalhou por quase quarenta anos no meio dos nativos para cumprir o que considerava ser seu dever missionário. Fritz se instalou na bacia do Rio Solimões em fins de 1686. O trabalho catequético progrediu, e cerca de quarenta aldeias missionárias foram rapidamente organizadas. Mas as distâncias enormes, os caminhos fluviais perigosos e o clima quente e úmido deixaram o sacerdote jesuíta gravemente doente. Místico que era, o padre enfrentou a situação como uma provação do demônio. Resistiu até que, quase inconsciente, foi colocado pelos índios numa canoa, e eles desceram a corrente do Amazonas procurando ajuda. Foram na direção dos povoados portugueses.

Esta viagem seguiu um roteiro que levanta suspeitas quanto aos reais motivos do sacerdote. Padre Fritz tivera notícia de que uma tropa lusitana estaria próxima, colhendo “drogas do sertão” – as especiarias do sertão brasileiro. O grupo encontrou o acampamento, mas ele já estava deserto. Em vez de perseguirem a tropa ou tomarem o rumo de uma das aldeias jesuíticas, subiram o Rio Urubu, onde havia uma aldeia missionária dirigida pelos religiosos da Ordem de Nossa Senhora das Mercês. Esta ordem tinha estreita ligação com a Coroa espanhola, e por isso o Estado do Maranhão e Grão-Pará foi o único em todo o Império português a tolerar sua presença. Por que o desvio, se o mais fácil seria continuar descendo o curso do Amazonas?

Quando a tropa portuguesa retornava, passou por aquela aldeia e encontrou o padre Samuel Fritz quase agonizante. Percebendo a gravidade do seu estado de saúde, o também jesuíta João Garzoni, capelão da tropa, optou por enviá-lo ao Colégio da Companhia de Jesus, em Belém, para melhor tratamento. Mas, para as autoridades, o padre Fritz era mais um espião do que um missionário.

Os lusitanos acusavam o sacerdote jesuíta de espionar os avanços da ocupação portuguesa. O padre Fritz se defendia argumentando que era muito difícil subir os rios na época das cheias em direção aos povoados espanhóis, principalmente estando doente e sem forças. Além disso, sua maior preocupação era voltar o quanto antes para a catequese dos índios, e não ficar colhendo informações no Pará.


O avanço das tropas lusitanas atrapalhava o trabalho dos missionários enviados pela Espanha. A lei que vigorava no Império português permitia o “resgate” dos índios, isto é, sua compra como escravos no caso de serem prisioneiros de guerra destinados à morte. Pela documentação existente, constata-se que não era raro uma tropa retornar com grupos de indígenas cativos. Muitas populações nativas eram atingidas pelos ataques, e elas buscavam proteção através da mediação dos religiosos.

Se o motivo imediato fora sua doença, sua estada em Belém não deixou de ser uma boa oportunidade para Fritz reclamar daquelas ações violentas, inclusive porque, para ele, o terreno por onde estavam avançando pertencia ao soberano espanhol. Parece que o governador não gostou muito das reivindicações do sacerdote jesuíta, e o manteve preso no Colégio de Santo Alexandre até que viesse uma decisão dos órgãos metropolitanos. O cronista das missões jesuíticas no Maranhão e Grão-Pará, padre Bettendorff (1627-1698), registrou a grande impaciência de Samuel Fritz durante os dezoito meses de prisão a que fora submetido: ele reclamava da “grande perda de almas que causava sua dilatada detenção”. Bettendorff dizia que não poderia liberá-lo, mas que tivesse paciência, pois a resposta real deveria chegar logo.

O missionário da região da Boêmia a serviço do Império espanhol obteve uma relativa vitória com a chegada da resposta. O governador do Estado do Maranhão, Artur Sá de Menezes (1687-1690), foi instruído a recolocar Fritz na área onde missionava, deixando-o bem provido de víveres. Mas o cabo responsável por sua escolta adentrou bastante o Rio Solimões, e quando deixou o padre, disse-lhe que todas as terras pelas quais tinham passado pertenciam ao rei de Portugal, proibindo-o de exercer qualquer atividade nelas. Após tanto tempo de negociação e expectativa, Fritz estranhou aquela atitude, registrando em seu Diário a resposta que dera: sua vocação não era brigar por terras, mas zelar pela salvação e tranqüilidade dos pobres índios.

Esta resposta absolutamente espiritual só era possível naquele contexto místico que cercava a dedicação de Fritz às suas missões por tantas décadas. Ele se via como um enviado de Deus à região. Por outro lado, seria equivocado isolar essa dimensão espiritual. A ruptura entre o que é religioso e o que é mundano – de modo simplificado, aquilo que é chamado de secularização –, só ocorrerá bem mais tarde no continente latino-americano. Até que isso acontecesse, a realidade era que a dimensão religiosa englobava as demais áreas da vida social. Principalmente para aqueles que abraçavam a vida consagrada, na fé deveria residir a principal fonte de significação das práticas sociais. Assim devem ser entendidos os registros que Fritz deixou de suas atividades, bem como a cartografia que produziu. Basta observar os símbolos religiosos inseridos nesses mapas: servem para demonstrar como a verdade cristã vencia o domínio de Satanás até naquelas regiões longínquas.


Uma batalha espiritual era travada na fronteira dos dois impérios. Os missionários não eram ingênuos e articulavam com os reinos aos quais serviam proteção para seu trabalho catequético. No caso do padre Fritz, a diplomacia não foi suficiente. As mais de quarenta aldeias que fundou se envolveram em uma guerra que eclodiu no ano de 1709. Os portugueses destruíram boa parte por não aceitarem o novo domínio. Providenciaram ainda o envio urgente de missionários obedientes ao rei lusitano para a reconquista da alma indígena.

A essa altura, Samuel Fritz já se tornara um herói mitificado pelos nativos. Até mesmo o cabo Pinheiro, da tropa lusitana que o encontrou no Rio Urubu, confessou ter grande medo de dirigir-lhe a palavra, devido às informações que ouvira enquanto subia o rio. Verdade que desde jovem já possuía certa tendência mística, testemunhada por seus colegas da Companhia de Jesus, que, em uma ocasião, vendo o estado miserável de sua vida, chamaram-no de São Pacômio. Pacômio foi o fundador da vida conventual nos desertos do Egito antigo, sendo sua vida um exemplo de mortificação.

Os “desertos” de Fritz estavam nas densas florestas do alto Amazonas. Ali, seus recém-convertidos tenderam a santificá-lo. Ou, em direção oposta, a demonizá-lo. Quem conta é o próprio padre, admirado com as reações provocadas por sua partida. Algumas aldeias previam a destruição próxima, outras, que logo chegaria o momento de libertação do jugo. Até os negros dos quilombos amazônicos propagaram que o jesuíta seria um libertador!

As próprias categorias de santo ou demônio, citadas no Diário, não correspondem aos dados fornecidos. Ele parece ter se tornado um messias, uma espécie de salvador. Fenômeno curioso: vindo da Europa para anunciar o salvador da humanidade, ele próprio acabou por se tornar um. As crenças dos povos amazônicos não estavam sob o controle estrito do clero. Mas a idéia de messias pertence aos referenciais judaico-cristãos. Talvez fosse melhor pensar na atuação de Samuel Fritz como a de um grande chefe indígena. Para os povos da região, era comum ver seus chefes como deuses. Seriam “homens-deuses”, algo que pode ser difícil de compreender na primeira tentativa, mas que não deixa de se aproximar da concepção tradicional dos personagens santos.

Com os conflitos político-militares destruindo seu trabalho, Fritz optou por migrar com muitas tribos para os lugares mais recônditos do “inferno verde”. Parece que, mais do que territórios e riquezas, ele queria se dedicar à expansão de um só reino: o Reino dos Céus.

Eduardo Gusmão de Quadros é professor da Universidade Estadual de Goiás e autor da tese “Embaixadores de dois reinos: missionários e fronteiras na região amazônico-caribenha”.

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

Nenhum comentário:

Postar um comentário